UFRGS
13/03/2019
Muito se fala em resistência bacteriana aos atuais antibióticos, mas outros microorganismos, os fungos, também têm se tornado resistentes aos medicamentos que prometem combatê-los. Nas últimas décadas, as infecções fúngicas tornaram-se um problema de saúde pública, já que há poucos antifúngicos existentes no mercado, e muitos fungos demonstram baixa sensibilidade a eles. Esse problema atinge, em especial, pessoas vivendo com HIV, transplantados, idosos e outros indivíduos com sistema imunológico deprimido. Nesses grupos, as infecções tornam-se persistentes e difíceis de serem combatidas, o paciente tem que se submeter a várias linhas de tratamento para obter resultados eficazes e pode ter complicações de saúde.
A partir dessa problemática, Gabriella da Rosa Monte Machado, do Grupo de Pesquisa em Micologia Aplicada da UFRGS, trabalhou, no seu doutorado, com 17 novos compostos para verificar quais deles poderiam apresentar ação antifúngica. Gabriella usou 11 derivados de cloroacetamidas e 6 derivados de quinolinas e testou-os frente a 51 fungos dos gêneros Candida, Fusarium, Microsporum e Trichophyton. A escolha desses microorganismos foi motivada pelo potencial patogênico deles: são gêneros que causam grande parte das infecções fúngicas que afetam os seres humanos.
A pesquisadora explica que os compostos testados no estudo são todos sintetizados em laboratórios – tanto da UFRGS, quanto de instituições parceiras – a partir de substâncias já existentes: “Com base em compostos cuja ação contra vários microorganismos já está bem descrita na literatura, o pesquisador tenta desenvolver alguma substância parecida, mudando algum grupamento na sua estrutura, por exemplo”. As cloroacetamidas utilizadas no estudo vieram da Universidade Federal de Minas Gerais, trazidas pelo co-orientador de Gabriella, Saulo Fernandes de Andrade, que foi pesquisador da instituição. Já as quinolinas foram sintetizadas por Denise Diedrich, outra pesquisadora do grupo, durante seu doutorado-sanduíche na França.
A primeira etapa do trabalho, chamada de screening, avaliou quais dessas 17 novas substâncias têm potencial antifúngico. A partir desse “filtro”, Gabriella seguiu a pesquisa com três cloroacetamidas e uma quinolina, que apresentaram melhores resultados. Passou, então, para a fase seguinte: os testes de toxicidade. Para avaliar a toxicidade em mucosas, ela fez testes usando a membrana de ovos de galinha. Nessa etapa, duas das cloroacetamidas apresentaram potencial irritante; sobraram, assim, uma cloroacetamida e uma quinolina. Esses dois compostos passaram por outros testes, usando orelhas de porco (para avaliar a irritação na pele) e larvas do besouro T. molitor (para verificar se o uso sistêmico dos compostos era seguro). A quinolina também foi testada em linfócitos humanos para investigar a genotoxicidade, isto é, se a substância poderia induzir mutações cromossômicas. Na fase seguinte, a pesquisadora simulou uma infecção fúngica em discos de unhas de porco. Nesses discos, foi aplicada uma formulação à base de esmalte contendo a quinolina.
Os resultados da pesquisa são promissores: a cloroacetamida foi eficaz sobre os fungos dos gêneros Microsporum e Trichophyton, e a quinolina apresentou um alto potencial sobre o gênero Trichophyton. Os dois compostos não provocaram irritação ou alergia em mucosa nem danos ou alterações na pele e ainda apresentaram segurança para uso sistêmico. O estudo apontou outros benefícios da quinolina: não induziu alterações no material genético das células humanas e demonstrou boa biodisponibilidade oral (percentual de aproveitamento de uma substância pelo organismo). Além disso, no teste com unhas de porco, a quinolina reduziu de forma significativa o número de células fúngicas quando incorporada em uma formulação à base de esmalte.
Com esses resultados, a pesquisadora avalia que os compostos têm um bom potencial como candidatos a novas terapias para tratamento de infecções fúngicas. No entanto, para que essas substâncias possam chegar ao mercado, é necessário ainda efetuar diversos testes de toxicidade em mamíferos e humanos. A farmacêutica explica que o grupo de pesquisa ainda não está realizando essas etapas, mas elas devem entrar em breve no projeto de um novo aluno do Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas. Atualmente pós-doutoranda no grupo de pesquisa, Gabriella está trabalhando com novos compostos derivados do fármaco clioquinol frente aos fungos do gênero Fusarium.
Fungos estão cada vez mais resistentes
A resistência fúngica aos fármacos atuais é considerada um problema de saúde pública. Gabriella esclarece que, atualmente, existem poucos medicamentos com ações antifúngicas e todos são relativamente antigos – os mais recentes datam do início dos anos 2000. O processo para desenvolver novos medicamentos é longo, já que muitos testes são necessários antes de um fármaco ser posto à disposição dos pacientes.
Além da pouca quantidade de remédios disponível, o uso indiscriminado deles agrava a resistência dos microorganismos (no Brasil, esses medicamentos são vendidos sem retenção de receita médica). “A pessoa compra um antifúngico por conta própria, toma por uma semana ou duas, acha que está melhorando e para de tomar, sendo que o tratamento para uma micose de unha, por exemplo, teria que durar de seis meses a um ano”, explica a pesquisadora. “A cada vez que o paciente com infecção fúngica fizer isso, está induzindo os isolados a desenvolverem certa resistência. Quando utilizar o medicamento novamente, já não vai fazer tanto efeito”, completa.
Parcerias tornam a pesquisa possível
Gabriella destaca a importância da colaboração entre pesquisadores para o andamento dos estudos: “Com isso, não se fica restrito só à avaliação da ação antifúngica. Conseguimos investigar, por exemplo, toxicidade, mecanismo de ação, síntese dos compostos, e isso amplia o conhecimento”. A pesquisa que resultou na sua tese de doutorado foi feita em parceria com o Instituto Federal Catarinense – Campus Concórdia, que realizou a análise de toxicidade em pele da orelha de porco, e com a Universidade Federal do Pampa, onde ocorreram os testes em células humanas.
O próprio grupo de pesquisa da UFRGS mantém uma “coleção” de fungos, chamada de micoteca. Muitas das cepas que lá estão provêm de outras instituições, como o Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), a Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) e institutos internacionais de pesquisa. Da mesma forma, os fungos também podem ser emprestados ou cedidos a pesquisadores da UFRGS e de outras instituições, explica Gabriella.
UFRGS Ciência das Mulheres
Essa matéria integra o especial UFRGS Ciência das Mulheres. Em março, em alusão ao Dia Internacional da Mulher, publicaremos matérias sobre estudos desenvolvidos por pesquisadoras da UFRGS. Elas são muitas na Universidade; então, selecionamos alguns exemplos de diferentes áreas do conhecimento para mostrar a representatividade feminina na pesquisa. Confira o depoimento de Gabriella sobre o tema:
A divulgação do que é ser pesquisador e do que se faz dentro das universidades precisa chegar à comunidade. Infelizmente, no Brasil, uma grande parcela da população desconhece o impacto que a pesquisa representa em um país em desenvolvimento. Nos últimos anos, esse cenário vem mudando, mas o acesso às informações de caráter científico e o entendimento delas ainda são muito pequenos. Outro fator importante é a grande ascensão das mulheres na ciência e na pesquisa. Ser mulher em um país como o nosso é como se você sempre precisasse provar mais, provar que é capaz, que é muito competente e que pode desenvolver uma atividade profissional de alto nível tão bem quanto um homem, ou ainda melhor. Indiretamente esse fato também faz com que as mulheres busquem constantemente a qualificação. Eu acredito que a representatividade das mulheres na ciência é um reflexo do empoderamento feminino e da busca por igualdade de gênero no mercado de trabalho. [2], [3]
[1] Foto: Gustavo Diehl/UFRGS.
[2] Título da tese: Avaliação do potencial antifúngico de novas entidades químicas frente a diferentes patógenos fúngicos de difícil tratamento. Autora: Gabriella da Rosa Monte Machado. Orientador: Alexandre Meneghello Fuentefria. Co-orientador: Saulo Fernandes de Andrade. Unidade: Programa de Pós-Graduação em Microbiologia Agrícola e do Ambiente da UFRGS.
[3] Texto de Mírian Barradas.
Como citar esta notícia científica: UFRGS. Novos tratamentos para infecções causadas por fungos. Texto de Mírian Barradas. Saense. https://saense.com.br/2020/03/novos-tratamentos-para-infeccoes-causadas-por-fungos/. Publicado em 13 de março (2019).