Jornal da USP
13/04/2020
Por José Alexandre Marzagão Barbuto, professor do Instituto de Ciências Biomédicas da USP
Vivemos uma situação única. Todo o planeta se vê ameaçado por uma doença cujo comportamento é ainda, essencialmente, desconhecido: a covid-19. Para essa doença, causada por um vírus, provavelmente de origem em morcegos e nunca antes identificado como causa de doença em seres humanos, o Sars-CoV-2, muita coisa ainda deve ser determinada:
- dados de capacidade de disseminação, evolução clínica, complicações e letalidade têm que ser aprendidos à medida que se observa uma realidade que se modifica a cada dia. Explicações que parecem fazer sentido no contexto de um determinado país falham ao se tentar aplicá-las a outros;
- taxas de letalidade (calculadas por “aproximação”, uma vez que o são quando ainda não se conhece o resultado final da maior parte dos casos confirmados) crescem a cada dia – tanto para países como a Alemanha, onde a taxa observada inicialmente foi abaixo de 0,5% e só agora ultrapassou 1%, quanto para países, como a Itália, onde ela já ultrapassou os 12%;
- mecanismos fisiopatológicos precisam ser buscados por analogia com aqueles de outras doenças, causadas por agentes semelhantes, mas, por isso, podem conter inferências nem sempre corretas.
Enfim, é impossível fazer afirmações “certas” sobre a covid-19! Mas, ao mesmo tempo, a agressividade da doença impõe que, além de medidas de saúde pública – cuja eficácia pode ser mais bem prevista, uma vez que já existe considerável experiência mundial acumulada no controle de epidemias –, sejam também definidas as estratégias para o cuidado direto dos pacientes. Neste último ponto, andamos de fato tateando no escuro…
Todavia, é importante que se diga, aproximamo-nos, a cada dia que passa, um pouco mais da “claridade”. Nesse sentido, vale realçar o sucesso, ao menos aparente, das medidas de contenção da disseminação da doença no Brasil. Se observarmos o gráfico abaixo, em que o aumento do número de casos confirmados em diferentes países foi “emparelhado” a partir de aproximadamente 400 em cada país, veremos que no Brasil tem ocorrido um claro retardamento do aumento do número de casos.
Mesmo sendo impossível afastar outras explicações para este retardo, o fato é que ele ocorreu, dando mais tempo às autoridades de saúde para se prepararem para uma eventual e possível “explosão” de pacientes, e aos pesquisadores do mundo inteiro, para estudarem alternativas de tratamento e cuidado dos pacientes.
É exatamente neste ponto que acredito ser muito importante chamar a atenção de todos para um “obstáculo” normalmente ignorado pela maior parte das pessoas: a distância entre o “laboratório”, onde se desenvolve a pesquisa biomédica, e o “paciente”. A descoberta, no laboratório, de uma determinada via, de um determinado mecanismo, de um determinado alvo terapêutico não significa que essa via, esse mecanismo ou esse alvo terão relevância na clínica. No organismo, uma via ou mecanismo pode perder significado, ao ser colocado no contexto de um tecido diferente, um alvo terapêutico pode se mostrar elusivo e um tratamento a ele dirigido pode provocar efeitos adversos imprevistos: a “vida real” é muito mais complexa do que os modelos que somos capazes de estabelecer e a partir dos quais elaboramos nossas estratégias terapêuticas.
Apesar disso, até hoje, não há “curto-circuito” possível: é preciso partir de dados experimentais, de modelos animais e de observações clínicas; é preciso elaborar e confirmar as hipóteses in vitro, em modelos animais e, por fim, no ser humano; e, só então, pode-se propor, com alguma segurança, uma explicação fisiopatológica e, mais relevantemente, uma estratégia terapêutica.
Longo como esse caminho pode parecer, ainda há mais uma etapa no caminho da “tradução” da pesquisa para a clínica: a aplicação de uma estratégia terapêutica em ampla parcela da população depende ainda de várias fases de desenvolvimento farmacêutico ou tecnológico, dependendo do tratamento, que muitas vezes podem ser absolutamente limitantes. Enfim, o caminho é muito longo!
Obviamente que o “aproveitamento” ou o “redirecionamento” de um medicamento, com propriedades farmacodinâmicas e farmacocinéticas conhecidas pode encurtar muito o caminho e, numa situação como a que estamos vivendo diante da covid-19, seria a “saída” rápida, muito desejada, e é exatamente o que se está buscando ao redor do mundo!
Dados obtidos ao longo dos anos em situações patológicas semelhantes, hipóteses fisiopatológicas suportadas por dados experimentais e clínicos em doenças causadas por agentes semelhantes, resultados obtidos in vitro de atividade de determinados medicamentos contra o vírus, tudo se soma e deve alimentar o desenvolvimento de estudos muito bem elaborados e controlados para se determinar a validade das hipóteses, mas, em última análise, para se poder oferecer aos doentes um tratamento eficaz e à população em geral, esperança e segurança.
Entretanto, não se pode ignorar que a covid-19 tem comportamento atípico, quando comparada a outras viroses que se tem usado como análogas. Tal atipicidade pode levar a erros, que na melhor das hipóteses poderiam atrasar a descoberta ou definição do melhor tratamento, mas que, na situação mais catastrófica, podem levar ao agravamento do quadro clínico em pacientes submetidos a tais tratamentos.
Não pretendendo apontar para todos as possíveis armadilhas, mas, como ilustração, vale mencionar a relativa resistência de crianças, normalmente um grupo bastante suscetível a viroses respiratórias, à covid-19. Não se tem explicação certa para isso, mas, considerando-se o quadro patológico que se observa em pacientes com covid-19 que desenvolvem quadros pulmonares graves, que é caracterizado por lesões microvasculares, e o fato de que o Sars-CoV-2 é um vírus novo, mas de um grupo de agentes infecciosos que já vem causando infecções respiratórias em humanos há bastante tempo, é possível especular que adultos – e quanto mais idosos maior a chance de isso acontecer – tenham anticorpos contra o vírus, não neutralizantes, mas capazes de reagir contra o vírus e portanto capazes de provocar uma doença por imunecomplexos no pulmão de indivíduos com maior carga viral.
Embora apenas uma hipótese, ela deveria ser considerada ao se propor, por exemplo, o uso de soro de indivíduos convalescentes para o tratamento da doença grave. Nesse caso, idealmente, os soros usados deveriam ser controlados por ensaios de neutralização e reatividade com o Sars-CoV-2 e com outros vírus do mesmo grupo.
Essa cautela não é, seguramente, um chamado à inação! É, na verdade, um apelo para que os cientistas envolvidos na busca intensa e séria de soluções para este desafio gigantesco que se nos apresenta busquem apontar para o público as várias etapas entre uma hipótese (por mais sólida que ela seja) e sua confirmação clínica. E apelo para os clínicos que, em sua busca – sem dúvida angustiante – da melhor forma de tratar seus pacientes e de salvar vidas, não se deixem levar pelo impulso, mas que procurem realizar cada tentativa terapêutica no contexto de protocolos de pesquisa definidos.
Fazendo isso, a humanidade – porque este desafio não é restrito a um país ou outro – será capaz de vencer a covid-19 muito mais rapidamente e terá aprendido, da maneira mais eficaz, o valor do trabalho colaborativo.
[1] Imagem de Gerd Altmann por Pixabay.
Como citar este artigo: Jornal da USP. O Sars-CoV-2, a covid-19 e nossa resposta. Texto de José Alexandre Marzagão Barbuto. Saense. https://saense.com.br/2020/04/o-sars-cov-2-a-covid-19-e-nossa-resposta/. Publicado em 13 de abril (2020).