Jornal da USP
19/05/2020

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Por Otaviano Helene, professor do Instituto de Física da USP

A pandemia de covid 19 obrigou praticamente todos os países a suspenderem as atividades em suas escolas e universidades, afetando diretamente mais do que 1,5 bilhão de crianças e jovens. Como escolas são centros de interação humana e de atividade social, seu fechamento afetará gravemente não apenas o aprendizado, mas, também, o desenvolvimento de crianças e jovens em todos os seus aspectos. As consequências disso são e serão bastante grandes[1].

As enormes desigualdades sociais e econômicas do Brasil se manifestarão plenamente no retorno às aulas, com alguns grupos sociais tendo pequenas perdas, graças às condições culturais e econômicas de seus familiares e daqueles com os quais permaneceram em contato durante o período de isolamento, e outros que, afastados das escolas, apresentarão graves retrocessos nos desenvolvimentos sociais e escolares.

Quando esses retrocessos se manifestarem na forma de abandono dos estudos, troca de escola ou reprovação, ainda que apenas em uma ou algumas disciplinas, as perdas terão sido irrecuperáveis.

Para minimizar as consequências do isolamento social, aulas e outras atividades a distância têm sido adotadas. Mas estas não beneficiarão a todas as pessoas de forma igual: se, por um lado, reduzirão as perdas, por outro, acirrarão as desigualdades, uma das principais características negativas do sistema educacional brasileiro.

Ensino a distância como algo a mais, sim; como substituto do presencial, não

O sistema educacional tem incorporado todos os recursos que surgiram ao longo do tempo, inclusive de ensino a distância, como rádio, televisão, gravadores de som, vídeos, mimeógrafo, apostilas, fotocópias e, mais recentemente, sites, blogs, conversas em grupo, palestras gravadas etc.

Esses recursos têm sido adotados sempre que significam alguma coisa a mais e talvez não haja nenhuma pessoa que se dedique à educação e que seja contrária a um aumento das emissões educativas no rádio e na televisão, nem contra a reprodução e divulgação de materiais educacionais de qualquer forma. Mas, entretanto, esses recursos não são aceitáveis como substitutos de recursos melhores.

Portanto, ao mesmo tempo em que devemos reconhecer os esforços de docentes e estudantes que, neste período especial e difícil, têm adotado recursos para minimizar os danos que a suspensão das aulas tem causado, devemos evitar que essas atividades sejam entendidas como equivalentes às – e substitutas das – atividades presenciais.

Atividades presenciais são insubstituíveis

Com o objetivo de orientar a forma da retomada das atividades depois do fim dos confinamentos e isolamentos, é importante lembrar aspectos fundamentais do ensino presencial, em especial na forma que eles existem nas boas universidades.

O ambiente oferecido pelas instituições educacionais é especialmente adequado ao processo de ensino e aprendizado e planejado para eliminar ou reduzir qualquer fator que possa concorrer com as atividades didáticas, propiciando todas as condições para concentração dos estudantes. Durante o período de uma aula típica, há apenas um assunto em pauta e professores e estudantes se esforçam para que a atenção não seja desviada para outros assuntos. Tais condições não são propiciadas pelo EaD ou pelo estudo em casa, inclusive porque são raros os casos de jovens que têm espaço e condição para criar ambientes nos locais de moradia que permitam concentrar a atenção nos estudos durante horas seguidas, ainda que tenham equipamentos eletrônicos disponíveis.

O ambiente universitário oferece condições de estudo, aprendizagem e desenvolvimento intelectual que nenhum outro ambiente consegue propiciar; durante o período letivo, evita-se qualquer outra atividade que concorra com aquelas.

Vale lembrar também que, diferentemente do que pensa aquele que hoje (maio de 2020) ocupa a cadeira de ministro da Educação, nenhum outro ambiente como o que temos nas universidades de qualidade é igualmente saudável, sob todos os aspectos: o melhor lugar que um jovem pode estar é em uma universidade presencial e de qualidade.

O ambiente educacional presencial é fundamental para reduzir os efeitos das diferenças sociais, econômicas e culturais dos estudantes, com contribuições positivas para todos. Abrir mão desse recurso servirá para intensificar ainda mais a desigualdade do nosso sistema educacional, uma vez que estudantes mais desfavorecidos têm, como já afirmado, menores ou muito menores possibilidades de dispor, no local de moradia, de tempo e espaço adequados à concentração e ao estudo.

A interação entre estudantes, entre estes e os professores, as discussões presenciais permanentes e os frequentes trabalhos em grupo, propiciados pelo ensino presencial, são fundamentais para o aprendizado. O acesso imediato a professores, individualmente ou em grupo, comum nos ambientes universitários, é parte integrante do processo de aprendizado.

Aulas práticas, frequência a laboratórios de pesquisa, acesso imediato a publicações especializadas, estágios supervisionados e trabalhos de campo são atividades essenciais em muitos cursos e só podem ser oferecidas na quantidade e qualidade necessárias no ensino presencial.

O desenvolvimento do conhecimento depende da presença dos estudantes nas universidades

Programas de iniciação científica, estágios, monitorias e trabalhos de pós-graduação são importantes tanto para os estudantes como para o desenvolvimento da pesquisa acadêmica, como das atividades de extensão de serviços à sociedade. A interação entre estudantes, entre estes e os professores, assim como o contato sistemático de ambos com os objetos de conhecimento, são essenciais no processo educativo e no desenvolvimento do conhecimento.

Uma universidade contribui tanto para a formação de profissionais nas mais diversas áreas como para o desenvolvimento cultural e científico dos estudantes e para sua integração na – e contribuição à – sociedade. As típicas atividades estudantis adicionais às meramente curriculares encontradas nas universidades são essenciais para se construir um país.

Omissão grave

As instituições educacionais em geral tomaram providências para facilitar o acesso a recursos de comunicação durante o período de confinamento provocado pela covid-19, especialmente por meio eletrônico, para limitar as perdas possíveis das atividades educacionais e de aprendizado. Mas essas facilidades atingem apenas aquelas pessoas que têm acesso a computadores e celulares, sistemas adequados de comunicação e condições no local de moradia para acompanhá-las. Com raríssimas exceções, essas instituições esqueceram-se totalmente daquelas pessoas sem recursos materiais e ambientais, como local e tempo adequados ao estudo. Praticamente nenhum esforço foi feito para reduzir as dificuldades desses estudantes.

Se essas instituições se preocuparam, corretamente, em reduzir os danos do isolamento de parte dos estudantes, foram totalmente omissas ao desconsiderar as necessidades daquelas que mais perderão com o isolamento.

Reduzir as perdas

Para que as perdas provocadas pelo isolamento social não levem a um acirramento das dificuldades dos mais frágeis e a um aumento das já enormes desigualdades da sociedade brasileira e do nosso sistema educacional, é fundamental que as universidades cuidem para que todas as pessoas possam ter iguais chances de recuperação. Para isso, são necessários a retomada das aulas e de outras atividades presenciais e o cumprimento dos programas e ementas dos cursos e disciplinas. Considerar as atividades a distância durante o período de restrição de movimento como dias letivos marginalizará muitos estudantes e contribuirá para o aumento de reprovações e de abandono de curso.

[1] Ver, por exemplo: https://en.unesco.org/covid19/educationresponse/consequences.

[2] Imagem de soumen82hazra por Pixabay.

Como citar este artigo: Jornal da USP. Após o final dos isolamentos, reduzir as perdas.  Texto de Otaviano Helene. Saense. https://saense.com.br/2020/05/apos-o-final-dos-isolamentos-reduzir-as-perdas/. Publicado em 19 de maio (2020).

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