Jornal da USP
08/05/2020
Enquanto as infecções e mortes por covid-19 seguem aumentando no Brasil, os índices de adesão ao distanciamento social seguem diminuindo de forma generalizada pelo País. É o que aponta a quarta Nota Técnica publicada pela Rede de Pesquisa Solidária, formada por cientistas da USP e outras instituições de pesquisa.
O documento analisou como as políticas públicas para o distanciamento foram implementadas e seguidas por aqui e em mais quatro países, Itália, Espanha, Argentina e Estados Unidos. Os dados indicam que os locais que adotaram medidas mais rígidas tiveram efeitos melhores na adesão à quarentena.
Além disso, a pesquisa aponta também a importância da coordenação política entre estados e o governo federal, assim como entre os próprios estados. Quanto mais coeso for o anúncio de medidas de distanciamento, maior será a resposta positiva da população. Por outro lado, a flexibilização desordenada das medidas pode agravar os efeitos da pandemia.
O distanciamento em diferentes países
As medidas de rigidez das políticas utilizadas para a comparação entre países foram baseadas no índice Oxford Covid-19 Government Response Tracker (OXCGRT), combinadas com medidas do poder público para aplicar as recomendações de que os cidadãos permaneçam em casa. Os dados de adesão ao distanciamento foram comparados a partir de indicadores do Google Mobility.
Como mostra a Figura 1, que ilustra a situação dos países em 11 de abril, os diferentes níveis de rigidez das políticas públicas estão fortemente associados ao nível de adesão ao isolamento. Na Espanha e Itália foram adotadas notificações, multas e até prisões a quem violasse as regras. Já a Argentina, além dessas mesmas medidas, também criou um disque-denúncia especialmente para isso.
Como resultado, estes três países conseguiram reduzir a mobilidade de forma mais eficaz. Nos Estados Unidos e no Brasil, as medidas de distanciamento têm sido semelhantes. Porém, os dados apontam que os estadunidenses têm respeitado mais as recomendações, o que coloca o Brasil no último lugar quanto ao nível de adesão entre os países analisados.
Quanto às sub-regiões de cada país, as evidências sugerem que a adesão ao distanciamento foi significativamente maior na Lombardia (Itália), Madri (Espanha), Catalunha (Espanha) e na Província de Buenos Aires (Argentina) do que nos estados brasileiros e nos norte-americanos.
Estados brasileiros
Para analisar a evolução e o conteúdo das diferentes medidas adotadas pelos Estados brasileiros, os pesquisadores utilizaram o Índice de Rigidez das Políticas de Distanciamento Social (RPDS), que avalia cada área de política pública de acordo com três escalas: a força da suspensão das atividades, variando de 0 a 2 conforme a intensidade menor ou maior; a abrangência geográfica das medidas (0 a 1); e a escala de abrangência das medidas em nível setorial, que mede se houve flexibilização para setores não essenciais (0 a 1, sendo 1 o caso de apenas setores essenciais continuarem em atividade).
A comparação dessas medidas adotadas pelos estados entre 12 de março e 20 de abril revela que governos estaduais adotaram alterações parciais nas políticas de distanciamento social. Em geral, essas políticas mantiveram-se em vigor no período analisado. Entretanto, parte dos estados começou a flexibilizar ou sinalizar futuras flexibilizações das medidas a partir da segunda semana de abril, sobretudo, ao permitir a retomada de atividades nos setores comerciais e industriais. Estados como Acre, Goiás, Rio Grande do Sul, Sergipe e Tocantins tiveram alguma flexibilização das medidas de distanciamento na última semana.
Na combinação das três escalas, Goiás e Ceará foram os Estados que implementaram medidas mais rígidas de distanciamento social (em preto). Praticamente toda a região Sudeste adotou medidas mais restritivas, juntamente com a maioria dos Estados da região Norte (verde-escuro). Tocantins e Mato Grosso do Sul adotaram medidas mais brandas de distanciamento social (verde mais claro).
A adesão à quarentena alcançou níveis mais altos no dia 28 de março. Gradualmente, entretanto, nota-se uma redução do distanciamento social. A partir de 11 de abril, o nível de distanciamento caiu significativamente.
Com isso, o estudo conclui que o grau de rigidez das políticas contribui para os níveis de adesão da população, e também observa que a população não responde imediatamente ao anúncio das medidas de suspensão das atividades, demorando dias ou semanas para que tenham efeito. Os dados ainda indicam que a partir de 4 de abril, mesmo com o crescimento contínuo das infecções e mortes em todos os Estados do País, a adesão ao distanciamento caiu de forma geral, inclusive em estados que não flexibilizaram as medidas.
Projeções para próximas semanas
Por fim, a pesquisa utilizou os dados levantados para projetar os possíveis cenários para as próximas semanas, conforme diferentes diretrizes: manter as medidas de distanciamento em vigor atualmente; flexibilização de setores selecionados; flexibilização ampla; e adoção de medidas mais robustas e maior fiscalização.
No primeiro cenário, espera-se que a adesão ao distanciamento continue diminuindo. Consequentemente, a transmissão do vírus continuará aumentando, assim como o número de mortes. Ainda assim, este cenário é melhor do que a flexibilização total ou parcial das medidas.
Com possíveis flexibilizações, haveria uma recuperação econômica clara no curto prazo, por causa da reabertura de setores então paralisados. Porém, ainda não há informações consistentes sobre os ganhos econômicos a longo prazo. Por outro lado, é certo que os custos sociais seriam altos, consequência do aumento do nível de mobilidade e aceleração do contágio da doença.
Já quanto ao cenário de recrudescimento das medidas, o estudo aponta que a adoção conjunta das medidas de fechamento de escolas, comércios e indústrias, bem como medidas que proíbem aglomerações, resultaria em taxas de isolamento significativamente superiores às obtidas com adoções parciais de uma ou mais dessas medidas.
Os países e regiões que impuseram punições ao descumprimento do distanciamento social, como a Itália, a Espanha e a Argentina, ainda que nem sempre no momento adequado, obtiveram taxas de adesão significativamente maiores. Num cenário com políticas de distanciamento mais fortes, certamente haverá custos menores em termos de vidas perdidas, uma vez que a curva epidemiológica de transmissão da covid-19 será revertida mais rapidamente.
Sobre a rede
A Rede de Pesquisa Solidária é uma iniciativa de pesquisadores para calibrar o foco e aperfeiçoar a qualidade das políticas públicas dos governos federal, estaduais e municipais que procuram atuar em meio à crise da covid-19 para salvar vidas. O alvo é melhorar o debate e o trabalho de gestores públicos, autoridades, congressistas, imprensa, comunidade acadêmica e empresários, todos preocupados com as ações concretas que têm impacto na vida da população. Trabalhando na intersecção das humanidades com as áreas de exatas e biológicas, trata-se de uma rede multidisciplinar e multi-institucional que está em contato com centros de excelência no exterior, como as Universidades de Oxford e Chicago.
A coordenação científica está com a professora Lorena Barberia (Ciência Política-USP). No comitê de coordenação estão: Glauco Arbix (Sociologia-USP e Observatório da Inovação), João Paulo Veiga (Ciência Política-USP), Rogério Barbosa (Centro de Estudos da Metrópole /USP), Graziela Castello (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Cebrap), Fábio Senne (Nic.br), José Eduardo Krieger (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da USP – INCT-Incor) e Ian Prates (Cebrap, USP e Social Accountability International). O comitê de coordenação representa quatro instituições de apoio: o Cebrap, o Observatório da Inovação, o Nic.br e o Incor. A divulgação dos resultados das atividades será feita semanalmente através de um boletim, elaborado por Glauco Arbix, João Paulo Veiga e Lorena Barberia. São mais de 40 pesquisadores e várias instituições de apoio que sustentam as pesquisas voltadas para acompanhar, comparar e analisar as políticas públicas que o governo federal e os Estados tomam diante da crise.
Confira a Nota Técnica na íntegra, e ouça também a entrevista da professora Lorena Barberia ao Jornal da USP no Ar.
Com informações da Rede de Pesquisa Solidária
Como citar esta notícia: Jornal da USP. Flexibilização desordenada do distanciamento pode agravar pandemia. Saense. https://saense.com.br/2020/05/flexibilizacao-desordenada-do-distanciamento-pode-agravar-pandemia/. Publicado em 08 de maio (2020).