Jornal da USP
05/06/2020

Produto ajuda a entender a ação do coronavírus – Imagem: Divulgação/TissueLabs

A TissueLabs, a startup brasileira da Incubadora USP/Ipen-Cietec que atua na fabricação de órgãos e tecidos em laboratório, direcionou toda sua equipe científica para o desenvolvimento de uma plataforma que permite estudar a covid-19 no epitélio pulmonar, um dos tecidos mais afetados pela doença, ao que tudo indica até agora. Chamada de MatriWell™, o produto está sendo distribuído gratuitamente para pesquisadores que estudam o novo coronavírus, permitindo que sejam personalizados o tipo e a origem das células usadas. Assim, é possível utilizar células de pacientes com comorbidades, isto é, outras doenças, como asma e DPOC (Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica), para criar tecidos tridimensionais personalizados, e investigar como o vírus age nesses pacientes específicos, ou como as medicações de que eles fazem uso interferem na evolução da covid-19.

Com o uso da plataforma, a célula fica exposta exatamente ao mesmo microambiente em que ficaria se ela estivesse no pulmão. E isso significa que é possível ter resultados muito mais fiéis ao mundo fora do laboratório – hoje, a cada oito drogas que vão para ensaios clínicos, só uma é aprovada, e isso acontece também porque as fases de estudos in vitro são muito pouco representativas do tecido humano. “Com este tipo de plataforma, esperamos aumentar o número de medicamentos aprovados, reduzindo custos com material, recursos humanos e até o uso de animais”, comemora o CEO da TissueLabs e pesquisador da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) Gabriel Liguori.

Liguori conta que um dos hidrogéis fabricados pela empresa é para pulmão, então a equipe já tinha algum conhecimento em matrizes para o órgão. “Mas eram para cultivo de tecido parenquimatoso, de células em três dimensões. Quando falamos de cultivo de epitélio pulmonar, ou seja, o tecido que vai estar em contato com o vírus, que é o que gostaríamos de estudar melhor, não podemos cultivar a célula da mesma maneira que os tecidos parenquimatosos.” Isso porque, explica ele, no epitélio pulmonar as células estão dispostas em duas dimensões e, no topo delas existe o ar, do fluxo do pulmão, e na base, a matriz extracelular, ou seja o tecido de apoio.

Quando é feita uma cultura tradicional nas placas, por exemplo, com essas células epiteliais, tem-se um microambiente muito diferente do que a célula vai encontrar no tecido real. Elas ficam em contato direto com o plástico da placa, que tem uma extrema dureza, enquanto que, no nosso corpo, os tecidos são da ordem de mil a um milhão de vezes mais moles, e só isso já é um fator que faz toda diferença para as células. “Elas se comportam de maneira bem diferente do ambiente nativo. E no plástico elas também não têm gradientes de citocinas, componentes de nutrientes, oxigênio, ficando imersas em líquido e sem contato com o ar”, explica. Por isso, a startup desenvolveu a plataforma, que tenta imitar o mais próximo possível, in vitro, o que a célula encontra no tecido pulmonar. “É um inserto que a gente coloca dentro da placa de cultura onde as células são cultivadas, no topo de um hidrogel com matriz extracelular. Ou seja, a base da célula está em contato com a matriz que ela teria contato no tecido do paciente e, no topo, fica em contato com o ar”.

Em uso

A plataforma MatriWell™ já está disponível gratuitamente. Qualquer pesquisador que trabalhe com covid-19 pode solicitar o produto pelo site e, em até três semanas, recebe 12 dispositivos para diferentes tipos de estudos. Trata-se do material em si, e não um modelo ou projeto que poderia ser reproduzido. “Como já há a matriz celular, temos que mandar pronto”, diz Liguori, ao relatar que já há grupos de cientistas fazendo uso dela em suas pesquisas, coletando os primeiros resultados, que parecem ser promissores.

“Uma pesquisa da Unifesp, por exemplo, está tentando entender como as medicações usadas para hipertensão, e que são inibidores enzima ECA, interferem na expressão dessa proteína (ECA), que é a mesma que fica no topo da célula e permite ao vírus entrar”, conta.

Outra vertente em que a plataforma pode ser aplicada são os estudos que procuram entender como pacientes com DPOC, fibrose pulmonar ou com asma, por exemplo, respondem ao vírus, e se alguma medicação específica de que eles fazem uso poderia mudar a maneira como o vírus afeta a célula.

“O pesquisador consegue isolar as células específicas desses pacientes, e a gente manda a plataforma na qual ele coloca essas células para analisar como aquela doença responde ao vírus. Não só um epitélio pulmonar genérico, mas um epitélio pulmonar personalizado. Dá para simular o que for necessário”, diz o médico, acrescentando que recebe feedback destes pesquisadores que permite à plataforma ser melhorada. “A versão que estamos mandando já foi atualizada a partir de pedidos que os primeiros usuários fizeram”, diz.

TissueLabs

Médico formado na USP, ao terminar a graduação Gabriel Liguori foi direto para um doutorado na Holanda, na área de fabricação de órgãos e tecidos em laboratório, focado em produção de vasos sanguíneos. Ele estudou durante dois anos diversos métodos de produção de tecido em laboratório. Um deles chama-se bioimpressão, que é basicamente impressão 3D em que, em vez de imprimir em plástico, se imprime num hidrogel com as células-tronco ou já diferenciadas desejadas para determinado tecido. “No final do doutorado, em 2019, vi que eu queria empreender: a vontade de transformar essas pesquisas em algo aplicável foi maior, e fundei, junto com o Emerson, pesquisador de engenharia, a TissueLabs. Depois o Victor, estudante de Medicina da USP e pesquisador de um laboratório do Incor, se juntou a nós, vendendo insumos para pesquisadores com interesse na fabricação de órgãos e tecidos em laboratórios”, relembra.

“O nosso grande objetivo, lá na frente, é ser uma empresa que fabrica e comercializa esses órgãos para transplante, mas sabemos que isso vai levar um tempo”, descreve, ressaltando que pesquisadores do mundo inteiro ainda enfrentam desafios para chegar a órgãos complexos e de grande porte, como pulmões, rins, coração, que têm diversos tipos de tecido dentro deles. “Hoje conseguimos desenvolver e aplicar em modelos animais tecidos mais simples, como pele, cartilagem, valvas cardíacas e tecidos de pequeno porte como vasos sanguíneos de 1 ou 2 centímetros”, diz. Isso porque os vasos têm uma função relativamente simples, precisando apenas suportar uma pressão sanguínea e, no caso de vasos arteriais, contrair sob estímulo de substâncias como a adrenalina.

Para financiar as pesquisas, os cientistas desenvolveram um modelo de negócios baseado em insumos, disponibilizando para outros colegas os mesmos materiais que usam em suas próprias pesquisas. “Assim aprendemos mais destes materiais e conseguimos ter uma fonte de renda. Começando vendendo hidrogéis, cultura celular tridimensional e bioimpressão 3D. A pesquisa que resultou num desses hidrogéis, inclusive, foi premiada internacionalmente“, conta. Os hidrogéis, compara o médico, estão para os tecidos como os tijolos estão para o cimento na construção de uma casa. “São hidrogéis de matriz extracelular que chamamos de tecido-específicos, com um gel especial para fígado, outro para rim, e assim por diante, totalizando 16 tipos que temos hoje.”

Com o tempo, a startup abriu outra linha de produtos, como uma bioimpressora 3D para pesquisadores que trabalham com fabricação de órgãos e tecidos. “No meio dessa pandemia de covid-19 a gente viu a possibilidade de dar nossa contribuição criando um produto que fosse ajudar quem está tentando entender como funciona o novo coronavírus, possíveis vacinas e terapias.” [1]

[1] Texto de Luiza Caires.

Como citar esta notícia: Jornal da USP. Produto ajuda a entender melhor na bancada como coronavírus age em pacientes de verdade.  Texto de Luiza Caires. Saense. https://saense.com.br/2020/06/produto-ajuda-a-entender-melhor-na-bancada-como-coronavirus-age-em-pacientes-de-verdade/. Publicado em 05 de junho (2020).

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