UFRGS
18/09/2020
A música nos toca.
Ao ouvir a primeira música do Conjunto Farroupilha, veio-me à memória todas as sensações, os cheiros e os gostos dos domingos de manhã no sítio dos meus avós. Um dia ensolarado, um banho de rio, um passeio pelos ‘carreiros’ feitos pelos bois com os meus primos. Tantas risadas e alegrias ressurgidas de uma musicalidade registrada na infância. Era do rádio a pilha que vinham as músicas tradicionalistas gaúchas que ouvíamos no sul de Santa Catarina. Anos depois, hoje moradora da capital do Rio Grande do Sul, eu me deparo com as riquezas que a pesquisa coordenada pela professora Luciana Prass, do Grupo de Estudos Musicais (GEM/UFRGS), vem descobrindo desde 2013, sobre a trajetória do Maestro Tasso Bangel, membro fundador do Conjunto Farroupilha.
O resgate à memória dos trabalhos realizados pelo maestro Tasso Bangel é o principal objeto de pesquisa do grupo. Mais de 600 fotografias, inúmeras horas de entrevistas, discografia completa, partituras, vídeos, áudios, recortes de jornais e artigos científicos compõem o site dedicado ao estudo. “A música e o ser humano têm uma relação ancestral, nos conectando para além das nossas famílias. A canção tem uma carga afetiva, nos permitindo rememorar vivências de anos atrás, de uma outra época, relembrar marcos da nossa vida. Música é memória”, diz Luciana.
Desenvolvida pelo GEM/UFRGS, criado nos anos 1990 pela professora Maria Elizabeth Lucas, a pesquisa sobre Tasso Bangel iniciou em 2013 quando o próprio maestro, compositor e arranjador foi ao encontro da professora com os documentos que hoje estão sob a guarda da UFRGS no Arquivo do Instituto de Artes. “O grupo de pesquisa surgiu sem imaginarmos. Um dia, o maestro Tasso chegou no Instituto de Artes da UFRGS com uma mala. Nela havia fotos, materiais, e ele me falou: ‘Professora Luciana, me disseram que talvez a senhora se interesse. Sou Tasso Bangel, do Conjunto Farroupilha, e sei que a senhora trabalha com música popular. Queria ver se você quer isso e eu gostaria de ajudar aqui. Eu trabalho com arranjos’. O fato é que eu não o conhecia”, conta Luciana.
Os olhos treinados da professora correram pelas partituras da mala que o maestro trouxera, e, naquela hora, ela constatou que aquela pessoa detinha muito conhecimento. “Nós começamos a conversar, e eu fui entendendo quem ele é, uma pessoa muito especial. Então cadastrei o projeto de pesquisa, fiz várias entrevistas com ele e comecei a entender o conhecimento musical dele”, diz a pesquisadora.
O campo de estudo aplicado ao projeto com o maestro Tasso Bangel é a etnomusicologia , que tem o propósito de estudar a música a partir dos aspectos culturais e sociais das pessoas que a vivem. Essa área científica começou a ser explorada na UFRGS nos anos 1990 pela professora Maria Elizabeth Lucas, após retornar do doutorado realizado no Texas, tendo como orientador o professor e pesquisador Gerard Béhague (1937/2005). “Hoje a etnomusicologia está preocupada em devolver para as comunidades o conhecimento musical, compartilhar a autoria dos projetos desenvolvidos com pessoas e grupos sociais. Por isso, o maestro Tasso integra essa pesquisa, permitindo-nos conviver com ele enquanto é estudado. Nesse processo de interação, temos a possibilidade de refletir sobre a musicalidade, os saberes, e a diversidade que é a música, além de conhecer as razões para ele fazer aquela música”, explica Luciana.
Ao trabalhar com etnomusicologia, a UFRGS vem construindo um espaço que transpassa a música erudita, permitindo que o universo acadêmico conheça mais sobre outros tipos musicais. Neste caso, o projeto de pesquisa está reunindo informações profundas sobre a atuação do maestro Tasso na música rio-grandense, brasileira e internacional, ele que formou e integrou inúmeros grupos ao longo de mais de 70 anos de atuação profissional, como o Conjunto Farroupilha, o grupo Tom da Terra e a Camerata Pampeana. Tudo está sendo gradualmente disponibilizado no site do projeto “Tasso Bangel e o eterno aprender”.
Conjunto Farroupilha e a tradição gaúcha
Tudo começou em 1948 com a ideia de Inah Vital – solista da orquestra da Rádio Farroupilha, de Porto Alegre – de montar um grupo vocal que mesclasse vozes femininas e masculinas. Tasso José Bangel, então com 17 anos, estudava instrumentação e regência no Instituto de Bellas Artes, hoje Instituto de Artes da UFRGS. Somaram-se a eles Danilo Vidal de Castro, Alfeu de Azevedo (depois substituído por Sidney Morais) e Estrela d’Alva.
“Inah era uma cantora incrível. Segundo nos contou o maestro Tasso, ela disse que queria um conjunto vocal, e esses cinco integrantes formaram o Conjunto Farroupilha”, conta a pesquisadora. O sucesso foi imediato. O ineditismo de ser o primeiro grupo vocal brasileiro a mesclar vozes masculinas e femininas está atrelado ao espalhamento do movimento tradicionalista gaúcho. “O grupo começa de maneira revolucionária na questão de gênero – porque incluía mulheres –, e também se torna porta-voz da cultura tradicionalista, que recém iniciava, proposta por Paixão Cortes e Barbosa Lessa”, comenta Luciana.
Pelas asas da Varig (Viação Aérea Rio-Grandense), o Conjunto Farroupilha levou a nascente música tradicionalista gaúcha aos estados brasileiros pelo mundo afora, alcançando os Estados Unidos, a Europa, a China e a Rússia. “O primeiro disco gravado por eles foi Gaúcho, com composições de Paixão Cortes e Barbosa Lessa, a partir do folclore regionalista, e traz canções como Gauchinha Bem Querer e Boi Barroso. O disco faz muito sucesso, e o conjunto é chamado para fazer uma transmissão na Rádio Tupi. Eles se tornam uma grande atração no palco ao vivo e são convidados para a primeira transmissão de TV do Brasil (setembro de 1950) em São Paulo”, relembra a professora.
Deste momento em diante, o Conjunto Farroupilha decide se mudar para o sudeste brasileiro e fazer programas musicais na TV Tupi, de São Paulo, e na TV Excelsior, no Rio de Janeiro. Eram os anos 1960, o conjunto tinha dois programas de TV por semana, tendo status de um grupo midiático. Os músicos começam a viajar mundo afora com a Varig e levam a música, que hoje chamamos de “gauchesca”. Pilchados , usam a sonoridade do acordeon e do violão para expressar uma temática ligada ao campo, à zona rural, ao chimarrão, à prenda. “Hoje há uma crítica ligada ao lugar da mulher nessas canções tradicionalistas, mas na época o grupo tinha uma importância muito forte, que era levar uma musicalidade do Rio Grande do Sul para o centro do país e para o exterior, e foi o que fizeram. As pessoas ficaram encantadas, se identificavam, eles eram muito especiais e, ainda, entendiam muito a questão do marketing”, diz Luciana.
A versatilidade do Conjunto Farroupilha fez com que as interpretações fossem para além da música tradicionalista, passando pela Bossa Nova até as músicas regionais de todo o Brasil (baião, moda de viola, etc). Eles não cabiam em um rótulo e toda essa descoberta tem sido levantada, analisada, documentada e disponibilizada de maneira gratuita pelo grupo de pesquisa formado pela professora e por um coletivo de bolsistas de iniciação científica, muitos dos quais, de maneira voluntária. “Trabalhar com ele (Tasso) tem mostrado que nós ainda, na área da música, costumamos focar o centro do país (no caso da música popular) e, muitas vezes, não temos conhecimento sobre os movimentos e grupos do Rio Grande do Sul. Não se trata de bairrismo: estudar a história do Conjunto Farroupilha nos mostra a riqueza que nós temos de aspectos relativos à história da música popular no Brasil que podem ser contadas a partir do nosso estado, e de Porto Alegre”, complementa a pesquisadora.
Além de Tasso Bangel, o Grupo de Estudos Musicais tem entrevistado outros músicos atuantes que revelam terem sido influenciados pelo Conjunto Farroupilha e têm nesse grupo uma espécie ícone, meta, inspiração, referência.
Identidade e memória
A imagem positiva da bombacha, do chimarrão, que hoje atrelamos à identidade gaúcha, é forte no Brasil e no mundo em decorrência do movimento tradicionalista, deve-se em parte ao trabalho do Conjunto Farroupilha. “Sem dúvida o grupo foi um dos responsáveis por difundir os costumes e as tradições do Rio Grande do Sul, além de influenciar outros cantores nacionais e internacionais”, explica Luciana.
Ao grupo de pesquisa focado no maestro Tasso Bangel coube a função de rememorar e registrar esses feitos de maneira científica. Segundo Luciana, é necessário avançar no Brasil na preservação da memória: “À medida que as pessoas vão envelhecendo, vamos perdendo as informações. Se ouvirmos a música do Farroupilha com os ouvidos da época deles, vamos perceber como era majestoso e revolucionário”.
As canções do Conjunto Farroupilha são hoje usadas em sala de aula na UFRGS. “Os estudantes estranham e questionam coisas importantes, como o machismo nas letras de algumas canções do repertório, por exemplo. Mas então conversamos, e eles conseguem entender o quanto foi importante, no caso do Farroupilha, ter mulherescantando e sendo protagonistas do grupo, viajando o mundo, sendo profissionais da música naquela época. Precisamos recuperar essa dimensão, entender o contexto histórico, para vermos que hoje eu posso cantar a minha composição feminista porque houve outras mulheres antes de mim que abriram esse espaço”, afirma a professora.
Reunir saberes populares dentro da universidade é preservar a memória com o viés científico. No dia a dia da pesquisa (entre 2014 e 2018, presencialmente e de 2018 em diante, quando o músico retornou para São Paulo, por telefone), o grupo está em constante diálogo com o maestro Tasso. Dessas conversas e entrevistas, fatos são rememorados constantemente. É uma memória rica sendo acessada e registrada. “A cada nova conversa, ele vai ‘despertando’, lembrando um fato novo, porque tudo isso está na mente dele. Isso é muito importante, e o papel da Universidade é tornar isso público. No site, todos podem ver as fotos, ouvir os discos, ler e interpretar as partituras. São dados que não podem ficar confinados, muito menos serem perdidos”, complementa a pesquisadora.
Dados abertos na UFRGS
O conhecimento levantado pelo projeto de pesquisa “Tasso Bangel e o eterno aprender” está disponível em formato online no site www.ufrgs.br/tassobangel, constantemente atualizado com novas informações. A documentação física se encontra no arquivo do Instituto de Artes, localizado no Campus Centro, para que, em breve, outros pesquisadores tenham acesso livre e gratuito ao material. “Além da consulta que pode gerar pesquisas com outros pontos de vista, tornar disponível este material permite, por exemplo, que corais e grupos vocais se interessem em refazer e cantar novamente esses arranjos. A partitura pode parecer alguma coisa ‘morta’, mas à medida em que a tocamos, a poeira sai, e a música ali escrita se torna algo real, presente”, diz Luciana.
Esse é o principal resultado da pesquisa: devolver para a sociedade, de maneira pública e livre, dados sobre Tasso Bangel e os grupos musicais dos quais ele fez parte. Tudo isso seguindo o método científico rigoroso do campo da Etnomusicologia: entrevistas, checagem, confronto com a literatura científica. “Na internet há coisas maravilhosas, mas também muitos ‘achismos’ sobre todos os assuntos. Por isso, o nosso papel na pesquisa científica é buscar nos aproximarmos da maior quantidade de dados possível, que, no caso do maestro Tasso, será confrontada com a literatura, com os livros de história, tensionando os dados coletados de maneira oral. Hoje, se alguém for procurar dados sobre o Conjunto Farroupilha, vai encontrar no site, entre outros materiais, artigos e resumos científicos”, enaltece a pesquisadora.
Para Luciana, esse material estar em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, dentro de uma universidade federal pública e gratuita é fundamental, pois permite o acesso fácil e aberto aos dados para quem precisar. “Trata-se da nossa memória, e esses arranjos do maestro Tasso são obras de arte. As universidades são esses lugares que vão dizer que isso é importante para a sociedade”, afirma ela.
A pesquisa com Bangel nutre estudos contemporâneos, trazendo à tona discussões críticas, como as do Movimento Feminista, que questiona, por exemplo, muitas letras machistas do cancioneiro tradicionalista. É imprescindível que em uma universidade esse debate aconteça em conjunto com a recuperação de uma memória, neste caso a do Conjunto Farroupilha. “Essas realidades de diferentes épocas conversam, e é importante que a Universidade tenha esse lugar de pesquisa sobre todos os assuntos que percebemos relevantes”, finaliza Luciana.
Playlist Grupo de Pesquisa Tasso Bangel e mídias
Selecionamos algumas músicas interpretadas pelo Conjunto Farroupilha para você ouvir. Os discos completos, como também canções do Conjunto Tom da Terra, estão disponíveis no site do projeto. Busque também o Conjunto Farroupilha no Spotify.
- Prenda minha (domínio público)
- Negrinho do pastoreio (Barbosa Lessa)
- Balaio (Paixão Cortes / Barbosa Lessa)
- Piazito Carreiteiro (Luis Menezes)
- Insensatez (Tom Jobim / Vinícius de Morais)
- Por causa de você, menina (Jorge Benjor)
- Cana Verde (A Chula) (Folclore – adap. Barbosa Lessa-Paixão Cortes)
- Água de Março (Tom da Terra)
Discografia completa em https://www.ufrgs.br/tassobangel/discografia/.
Samba de uma nota só – Conjunto Farroupilha
Entrevista da Rádio UFRGS
Entrevista com o maestro gaúcho Tasso Bangel para o programa Nota Musical. Tasso estudou no Instituto de Belas Artes e no Instituto Musical Porto Alegre e, em 1948, formou o Conjunto Farroupilha. Estabeleceu-se em São Paulo e esteve ainda à frente do grupo Tom da Terra e do Sexteto Brasil Cordas. Conquistou quatro prêmios da Associação Paulista de Críticos de Arte, como grupo vocal, compositor de música de câmara e sinfônica. Na entrevista, Tasso Bangel divide com os ouvintes algumas de suas músicas e histórias. Link: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/147170. [1]
[1] Texto de Nicole Trevisol.
Como citar esta notícia científica: UFRGS. Música é memória: pesquisa resgata a produção musical de Tasso Bangel e do Conjunto Farroupilha. Texto de Nicole Trevisol. Saense. https://saense.com.br/2020/09/musica-e-memoria-pesquisa-resgata-a-producao-musical-de-tasso-bangel-e-do-conjunto-farroupilha/. Publicado em 18 de setembro (2020).