Agência FAPESP
03/09/2020

O impacto da disseminação sistemática de desinformação na eficácia das medidas de combate à pandemia no Brasil, Estados Unidos e Reino Unido é tema de projeto selecionado em chamada internacional. Resultados preliminares foram apresentados por Renan Leonel (foto), pesquisador na Faculdade de Medicina da USP, em entrevista à Agência FAPESP (foto: Paulo Henrique Leonel)

Karina Toledo | Agência FAPESP – Antes restrito a grupos articulados em torno de interesses religiosos ou econômicos específicos e aos amantes de teorias da conspiração, o negacionismo científico tem ganhado corações e mentes nos últimos anos por intermédio das redes sociais. Com a chegada da COVID-19, o fenômeno se intensificou e o que era a contracorrente tornou-se, em alguns casos, discurso oficial e política de Estado.

Teria esse processo de institucionalização do negacionismo na figura de líderes políticos comprometido a eficácia das medidas de combate à pandemia em países como Brasil, Estados Unidos e Reino Unido? Essa é a hipótese que vem sendo investigada pelo pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) Renan Leonel, em parceria com colegas da Columbia University (Estados Unidos) e da University of Vienna (Áustria).

O projeto, intitulado Viral agnotology: COVID-19 denialism amidst the pandemic in Brazil, United Kingdom, and United States (Agnotologia viral: negação da COVID-19 em meio à pandemia no Brasil, Reino Unido e Estados Unidos), concorreu com outras 1.300 propostas de todo o mundo e foi selecionado em uma chamada lançada pelo Social Science Research Council of New York (SSRC), em parceria com a Herny Luce Foundation. A iniciativa tem como objetivo apoiar projetos inovadores que, em meio à pandemia, fazem uso de métodos de pesquisa remota para lançar luz sobre os efeitos de curto e longo prazo da COVID-19 em uma série de questões.

À Agência FAPESP, Leonel explicou que o termo agnotologia, cunhado nos Estados Unidos, se refere ao estudo dos fenômenos de produção política e cultural da desinformação. Trata-se de um processo socialmente induzido e que visa a promoção deliberada da ignorância ou da incerteza na opinião pública acerca de determinado tópico. Nos últimos anos, o pesquisador tem se dedicado a estudar, com apoio da FAPESP, o fenômeno oposto: como cientistas produzem conhecimento, criam processos culturais para viabilizar a sua circulação, estruturam práticas coletivas de lidar com evidências científicas e como essas informações são disseminadas na sociedade.

“Meu ambiente de estudo é a sociologia do conhecimento, ou seja, a produção de conhecimento em ambientes culturalmente e politicamente delimitados, como hospitais, laboratórios ou institutos de pesquisa. A sociologia da ignorância estuda a produção de desinformação e mecanismos de descrédito da ciência oficial em um ambiente de caos, sem controle. Mas me interessei em propor o projeto por entender que a produção de ignorância em si está se tornando um ator capaz de comprometer os instrumentos de produção do conhecimento. A partir do momento que existe uma estrutura tão forte e tão presente na sociedade como as redes sociais, cientistas, divulgadores científicos e jornalistas de ciência passam a ter um trabalho adicional. Além de comunicar a ciência, é preciso comunicar claramente à sociedade o que não é ciência.”

Leia a seguir os principais trechos da entrevista concedida pelo pesquisador à Agência FAPESP.

A produção de conhecimento na área de saúde foi seu objeto de estudo ao longo de toda a pós-graduação. Por que agora, durante a pandemia, você optou por analisar o fenômeno oposto?
Renan Leonel– A ideia inicial era investigar, em parceria com um colega da Columbia University, onde fiz um estágio de pós-doutorado, os resultados gerados pela pandemia em termos de produção do conhecimento. Mas nos deparamos com uma verdade inconveniente: a gravidade da crise causada pela COVID-19 provocou uma verdadeira explosão de desinformação, à qual a sociedade vem reagindo, em alguns casos, de forma inesperada. Decidimos então estudar a contrapartida da produção de conhecimento, que é a produção de ignorância. Nos Estados Unidos, esse campo de estudo ganhou o nome de agnotology. O termo foi proposto pela primeira vez em um livro publicado pelo historiador da Stanford University Robert N. Proctor, cujo título é Agnotologia: a construção e a desconstrução da ignorância.

Qual é a hipótese que vocês investigam no projeto apoiado pelo SSRC?
Leonel – Quando elaboramos a proposta, em abril, Estados Unidos, Brasil e Reino Unido eram os campeões mundiais em casos de COVID-19. Embora sejam três democracias com sistemas de saúde estruturados, era possível perceber que, nesses locais, a sociedade não estava aderindo às recomendações da Organização Mundial da Saúde e demais órgãos internacionais com o mesmo empenho observado no restante do mundo democrático. Partimos do pressuposto que esse comportamento estaria relacionado com a produção de desinformação e com o surgimento de um novo movimento: o negacionismo científico como política de Estado, incorporado no discurso oficial. Levantamos então a hipótese de que esse processo de oficialização do negacionismo na figura de líderes políticos teria comprometido, nesses três países, a eficácia das medidas de combate à pandemia. No Reino Unido, o fenômeno foi mais acentuado nos primeiros meses, mas no Brasil e nos Estados Unidos ainda segue forte. No âmbito internacional, praticamente não há projetos de pesquisa sobre a produção cultural de desinformação sobre a COVID-19 que incluem o Brasil. O fato de termos incluído o país como um estudo de caso relevante no projeto acho que foi um dos fatores que despertaram o interesse do SSRC.

Como vocês têm investigado a produção de ignorância nesses países e quais são os resultados já obtidos?
Leonel – Fizemos uma extração com o software Article API de todos os artigos de jornal relacionados aos temas de interesse publicados até 23 de julho nos principais jornais impressos de cada país. Dos Estados Unidos entraram The New York Times, The Wall Street Journal e USA Today; do Brasil foram incluídos O Globo, O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo; e, do Reino Unido, Metro, The Sun e Daily Mail. Os resultados foram semelhantes em número de documentos nos três países – entre 12,5 mil e 15 mil textos publicados, incluindo reportagens, artigos de opinião, editoriais e entrevistas – e isso facilitou uma comparação. Por meio de ferramentas computacionais usadas para análise qualitativa de grandes conjuntos de dados, construímos uma lista de palavras-chave que nos permitiu extrair desse conjunto apenas os textos mais relevantes para a análise das narrativas que pretendemos abordar na pesquisa. Foi possível observar que, no início da pandemia, a capacidade hospitalar, principalmente a disponibilidade de leitos de Unidade de Terapia Intensiva [UTI], foi um dos temas em destaque na mídia. No Reino Unido, os principais jornais ressaltaram a importância do NHS [National Health Service, o sistema público de saúde do país] e seu papel no tratamento do primeiro-ministro [Boris Johnson chegou a ser internado em unidade de terapia intensiva após contrair a COVID-19]. Já nos Estados Unidos, onde o sistema de saúde é privado e responde à demanda do mercado, a preocupação era com a capacidade do país de ofertar leitos às pessoas que não tinham condições de pagar o valor de mercado. Não existe uma estrutura hospitalar baseada na lógica da universalidade da saúde pública. A cidade de Nova York, por exemplo, tem muitos hospitais e quase todos privados. Os jornais de lá deram destaque para o fato de que parte importante do que se atendeu pela saúde pública foi graças às políticas da gestão anterior, que criou o Medicare [um seguro de saúde gerido pelo próprio governo norte-americano e destinado a determinadas faixas de idade e renda]. No Brasil, a capacidade do Sistema Único de Saúde [SUS] de atender a demanda por leitos de UTI e as assimetrias regionais da rede pública de saúde também foram temas importantes, mas a postura do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia e seu impacto sobre a eficácia das políticas de combate à COVID-19 que estavam sendo implementadas foram os principais destaques. Mais de 70% dos textos faziam menção a Bolsonaro. O Brasil também foi o país em que mais se publicou sobre a cloroquina e a hidroxicloroquina. Mas, claro, nossos dados vão até julho e com o avançar da pandemia tudo isso tem mudado muito rapidamente. Em agosto começamos o levantamento das informações veiculadas nos meios digitais e redes sociais. Usando as mesmas ferramentas para análise qualitativa de dados, estamos extraindo informações de interesse do Twitter, de alguns blogs e estamos estudando a viabilidade de incluir o Facebook. A ideia é mapear como as redes sociais responderam às informações veiculadas pela mídia oficial, ou seja, em que medida a desinformação é produzida como uma contrapartida do discurso oficial da grande mídia. O que temos observado é que esse fenômeno tem ocorrido nos três países de forma muito semelhante – no Brasil, a população ativa nas redes é um pouco menor do que a norte-americana, mas bem maior do que a britânica – e parece estar ligado ao surgimento de movimentos de extrema direita. Aqui no Brasil encontramos um enorme cardápio de desinformação, que vai desde a defesa do isolamento vertical – algo que nem sequer possui consenso na literatura científica – até o uso de cloroquina e de vermífugo para prevenir a doença. Não por acaso somos um dos países que menos sucesso teve no achatamento da curva epidêmica. Para a opinião pública internacional já está evidente que, no Brasil, a ação de movimentos organizados no ambiente digital comprometeu as já frágeis políticas públicas de combate à pandemia.

Por que o impacto da desinformação foi maior aqui?
Leonel – O Brasil foi o mais impactado pela produção sistemática de desinformação por ter uma educação para a ciência bem menos consolidada que a britânica e norte-americana, além de uma população com menos anos de estudo em média. Além disso, os instrumentos de comunicação científica, que são necessários para contrabalancear a produção de ignorância e fazer a informação chegar até as pessoas, são mais frágeis no país. Nosso levantamento mostra que os jornais brasileiros não tinham uma abordagem sólida no que se refere às evidências científicas sobre o novo coronavírus. Boa parte da comunicação científica no Brasil foi feita por pessoas de fora dos órgãos oficiais, como youtubers, blogueiros e comentaristas convidados pelos veículos de imprensa. Os Estados Unidos têm meios de comunicação científica bem mais antigos e estruturados, o que se deve ao fato de terem um sistema nacional de ciência e tecnologia bem maior e que recebe muito mais dinheiro. Mas os dois países são semelhantes no que se refere à desconfiança da população na comunicação científica oficial, ou seja, na ciência comunicada pela grande mídia.

Quais outras similaridades e diferenças se destacam na comparação entre os países?
Leonel – Algo que me chamou a atenção foi o comportamento em relação ao uso da máscara, que se mostrou uma tecnologia barata e eficaz para reduzir a disseminação do vírus. Eu arrisco dizer que nos Estados Unidos e no Reino Unido a população não aderiu à prática de forma tão ampla e rápida como no Brasil. Pela análise dos jornais observamos que aqui o uso da máscara está atrelado à necessidade dos brasileiros de sair para trabalhar. Muitos não puderam se dar ao luxo de uma quarentena prolongada e a máscara acabou sendo uma questão de sobrevivência e parece ter sido uma política pública que de fato ajudou a reduzir o impacto da pandemia. Já nos Estados Unidos a adesão foi bem menor, com exceção de cidades como Nova York, que experimentou a tragédia de perto. A análise dos jornais também mostra que a questão foi politizada pelo presidente Donald Trump, que dizia ser um hábito de países orientais, um hábito chinês. Lá usar máscara passou a ser uma atitude em favor dos chineses e contra o american way of life. Mas outros fatores influenciaram, como o fato de a população americana ter mais condições de permanecer protegida em casa. O governo concedeu um auxílio emergencial de US$ 1,2 mil por pessoa no início da pandemia. A máscara acabou se tornando algo secundário nos Estados Unidos, enquanto aqui a adotamos como um elemento para convivência no espaço público, pois não tivemos a opção de não conviver no espaço público. Isso evidencia a influência de questões socioeconômicas no comportamento individual de enfrentamento da pandemia. Diante da gravidade da situação e em condições precárias de vida, as pessoas deram um jeito de se proteger. Formaram redes de solidariedade para produzir máscaras, doar cestas básicas e isso ajudou a reduzir o impacto da pandemia no país, que tinha espaço para ser muito maior. A existência do SUS e a possibilidade de expandir rapidamente o número de leitos de UTI também foram muito importantes para controlar a mortalidade. Poderíamos ter nos saído muito melhor se não houvesse uma produção tão forte e oficializada de desinformação.

Como as redes sociais impactaram a produção de ignorância?
Leonel – A forma como as sociedades se organizam politicamente e culturalmente para construir agendas de conhecimento e de ignorância tem sido objeto de estudo da Sociologia desde o início do século 20. Entende-se que a produção e a disseminação do conhecimento científico não é um processo neutro. Existem escolhas políticas ao longo de toda a cadeia de desenvolvimento da ciência. Do mesmo modo, existem atores e instituições interessados em disseminar desinformação. De modo geral, a produção de ignorância tem relação com movimentos políticos que buscam legitimar uma determinada agenda de poder ou tirar o foco de algo que não lhes interessa. Por exemplo, quando o HIV emergiu como um problema de saúde pública nos Estados Unidos, na década de 1980, os ativistas tiveram um papel importante para garantir o acesso ao tratamento em um país sem sistema público de saúde. Na contramão, surgiram movimentos conservadores que buscavam estigmatizar a doença e difundir a ideia de que aquele era um problema restrito a pessoas que não se adequavam ao modelo de família norte-americano. Outro exemplo: no início do século 21, observou-se muita desinformação sobre os riscos das pesquisas com células-tronco e das novas biotecnologias voltadas à reprodução humana artificial. Esse movimento atendia a interesses de grupos políticos que defendiam os valores da família tradicional e eram contrários à reprodução independente. A produção de ignorância parece aumentar sempre que há um desgaste histórico na parceria entre governantes e cientistas, pois isso compromete a comunicação científica. A desinformação, portanto, não é uma consequência das redes sociais. A natureza do conteúdo não mudou, mas as mídias digitais aceleraram sua disseminação e elevaram o patamar de alcance, possibilitando um impacto muito maior. Hoje é muito fácil encontrar na internet material com ou sem base científica para falar sobre qualquer coisa. E as pessoas compartilham essas informações muitas vezes sem qualquer referência sobre a autoria ou qualquer controle sobre a veracidade do conteúdo. As próprias redes sociais se transformaram em um ator – um ator técnico, não humano – que interfere na disseminação do conhecimento. A teoria sociológica propõe a existência de grupos responsáveis por controlar a produção e a disseminação de conhecimento na sociedade e fazer a governança da desinformação. Mas esses atores parecem ter perdido o controle em tempos de redes sociais. Embora a produção de ignorância não seja originalmente minha área de estudo, me interessei em propor esse projeto por entender que a produção de ignorância em si está se tornando um ator que pode comprometer os instrumentos de produção do conhecimento. Como pós-doutorando na Faculdade de Medicina vejo os pesquisadores loucos atrás de dados sobre uma vacina e de outras estratégias para combater a pandemia e, enquanto isso, as pessoas estão indo na farmácia atrás de remédios que não funcionam. A partir do momento que você tem uma estrutura tão forte e tão presente na sociedade como as redes sociais, os cientistas, divulgadores científicos e jornalistas de ciência passam a ter um trabalho adicional. Além de comunicar a ciência é preciso comunicar claramente à sociedade o que não é ciência.

Existe uma vacina contra a ignorância?
Leonel – A sociologia da ignorância é um campo de estudo relativamente novo e ainda pouco conhecido, mas é uma agenda de pesquisa que ganhou força recentemente e tem enorme potencial de crescimento. Pesquisas nessa área podem ajudar a entender como o sistema de produção de ignorância funciona e subsidiar políticas públicas para combater as consequências. Precisamos criar instrumentos legais para responsabilizar os atores que deliberadamente disseminam ignorância e fazê-los assumir as consequências desse comportamento. Também é preciso refletir melhor sobre o papel das empresas que fazem a gestão desse conteúdo na internet. Além disso, a academia precisa acordar para o fato de que nossos instrumentos de comunicação científica não estão sendo eficazes. É preciso fortalecer na sociedade uma cultura pró-conhecimento, valorizar o conhecimento produzido nas universidades, fazer mais e melhores parcerias com interlocutores das plataformas digitais, que é onde a população busca, de fato, a informação hoje em dia. E esse processo passa por entender a produção de ignorância. Quando identificamos os resultados gerados pela desinformação, mostramos pelo exemplo oposto por que ciência e tecnologia são importantes.

 

Este texto foi originalmente publicado por Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

Como citar esta notícia: Agência FAPESP. Negacionismo científico: a produção política e cultural de desinformação. Texto de Karina Toledo. Saense. https://saense.com.br/2020/09/negacionismo-cientifico-a-producao-politica-e-cultural-de-desinformacao/. Publicado em 03 de setembro (2020).

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