UFRGS
19/10/2020

(Foto: Gustavo Diehl – Secom/UFRGS)

Registrada em 1952 no bairro Menino Deus, em Porto Alegre, a borboleta Vanessa carye é uma das mais de 800 espécies devidamente catalogadas e armazenadas no Laboratório de Ecologia de Insetos (LEI) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A caixa de vidro, cuidadosamente manuseada por Flora Dresch, estudante do curso de Ciências Biológicas e bolsista de iniciação científica no LEI, traz apenas dois exemplares da Vanessa carye, o segundo registro foi no Morro Santana em 2004.

De 1993 até agora, a coleção do programa que estuda a fauna de borboletas do sul da Mata Atlântica e do Pampa dobrou de tamanho. Estima-se que devam existir mais de 900 espécies no estado. Helena Piccoli Romanowski, coordenadora do projeto, pontua que, do total de registros, 400 ocorreram na Região Metropolitana. “A América do Norte tem menos de 800 espécies; a Europa, cerca de 500; e a Austrália, 400. Registrar toda essa riqueza na nossa região é um resultado importantíssimo.”

O “paraíso das borboletas” é composto por dois biomas: Mata Atlântica e Pampa. A diversidade de fauna e flora desses ambientes se encontraram na Região Metropolitana de Porto Alegre, permitindo que algumas espécies de borboletas sejam registradas em determinada data e nunca mais sejam vistas. É o caso da Vanessa carye. “Eu nunca vi uma dessas, porque aqui não é área de ocorrência delas, vivem em ambientes mais frios. Talvez com o aquecimento global seja cada vez menos provável avistarmos essas borboletas aqui”, explica Lucas Augusto Kaminski, bolsista PNPD-Capes, do Programa de Pós-Graduação em Biologia Animal, cientista e pesquisador colaborador no LEI.

O bioma Pampa se conecta com a “diagonal seca” na América do Sul, uma sequência de biomas secos e abertos, que inclui a Caatinga, o Cerrado e o Chaco. “Essas áreas possuem uma dinâmica antiga e relativamente estável, permitindo que as borboletas diversifiquem nesses biomas”, diz Lucas. Por outro lado, as florestas úmidas, como a Mata Atlântica e a Amazônia, são compostas por outras espécies de borboletas. Com as mudanças climáticas, principalmente em decorrência do desmatamento, as florestas estão secando, e os ambientes estão mudando. Com o desequilíbrio, a floresta úmida se tornará seca, e a “diagonal seca” virará deserto. Algumas áreas de floresta mais secas se tornarão caatinga, alterando a vegetação.

“Os nossos estudos têm percebido isso, pois em áreas em que a mudança climática está mais extrema, as borboletas já não podem mais ‘correr’. O cerrado, agora, está cada vez mais seco, o que desloca a fenologia , e isso provocará extinções em massa desses organismos”, prevê Lucas.

Paraíso das borboletas, será?

Diante desse cenário, considerar o Rio Grande do Sul como o ‘paraíso das borboletas’ não é tão positivo assim. A imprevisibilidade do clima e o aumento do desmatamento tornam os ciclos cada vez menos estáveis, quebrando o processo evolutivo de insetos, como o das borboletas. Esse achado vai de encontro ao negacionismo climático sobre o aquecimento global. “Ter um banco de dados como este é precioso, é fundamental. Se estamos pensando em mudanças climáticas, precisamos primeiro saber quais sãos os padrões existentes. Uma hipótese a ser testada é verificar se, com o aquecimento da Mata Atlântica, as espécies que ocorrem em latitudes tropicais estão, cada vez mais, ocorrendo em Porto Alegre”, salienta Lucas.

O grupo de pesquisa tem registrado situações de degradação ambiental sérias e que vêm aumentando em um curto espaço de tempo. “Inúmeros locais que visitamos há mais de 20 anos hoje já não contam mais com ambientes saudáveis, capazes de suportar a fauna nativa, seja devido à urbanização, ao desmatamento, aos avanços sem limites de monoculturas e/ou ao uso intensivo e indiscriminado de agrotóxicos. E este quadro se repete no Pampa, no Planalto das Araucárias, na Serra do Sudeste, na Planície Costeira, em áreas de Mata Atlântica…”, registra Helena.

Destruição de habitat, uso indiscriminado de agrotóxicos e aquecimento global são fatores que impactam diretamente a sobrevivência das espécies de borboletas e, em consequência, dos insetos. “É bom estarmos cientes de que isso nos impacta também, é uma ameaça para nós: insetos são polinizadores, insetos são extremamente importantes para a manutenção de estrutura de solo, são alimento para outras espécies, ajudam a controlar plantas, sem insetos nós não vivemos. Esses fatores também são ameaças para nós. Tudo caminha para uma situação em que as coisas não vão ficar nada bem”, enfatiza o cientista.

Banco de dados aberto

O primeiro registro da Coleção de Lepidoptera da UFRGS é de 1947, material original do extinto Instituto de Ciências Naturais da Universidade. Atualmente, os mais de 15 mil exemplares estão abrigados no Laboratório de Ecologia de Insetos (Instituto de Biociências/Departamento de Zoologia), sendo um dos principais grupos de pesquisa sobre borboletas no Brasil.

Os mais de 40 anos de tradição dessa pesquisa resultam em um banco de dados físico aberto para investigações variadas, disponível a cientistas do estado, do Brasil e do mundo. As mais de 900 espécies de borboletas possuem o registro de nome, data e local de coleta, permitindo ao pesquisador identificar padrões ao longo do tempo.

Helena enumera as etapas do estudo de comunidades de borboletas. “Os pesquisadores fazem amostragens, coletam as espécies, analisam as proporções, quantas de cada espécie estão no local, o quanto a comunidade está equilibrada. Esse banco de dados vai servir para o futuro, uma vez que a coleção está no Departamento sob os cuidados de professores, estudantes e voluntários”.

As borboletas são um dos grupos de animais mais estudados por serem organismos modelos e, dado seu apelo estético, são também ferramentas para educação ambiental. Além disso, sinalizam a saúde do ambiente e o que ocorre com os outros grupos de seres vivos.

A diversidade de borboletas presentes no sul do Brasil permite aos pesquisadores conhecerem novas espécies, entenderem o que determina a escolha de cada uma quanto ao local em que vive e como vive. Entretanto, a perda de espécies é um aspecto identificado pelos pesquisadores do LEI. “Olhar para esses dados, com o passar dos anos, permite-nos investigar variações, ciclos, número de espécies, interferências climáticas, caminhos percorridos. Com os dados podemos tomar providências em relação às mudanças climáticas, por exemplo”, salienta Lucas.

O grupo de pesquisa já esteve em mais de 40 regiões do estado gaúcho e arredores (Argentina, Paraguai e Uruguai), com amostra de mais de 130 localidades. Um dos principais resultados dos trabalhos é o conhecimento de quais são as espécies de borboletas que ocorrem no sul do Brasil, uma vez que a fauna do hemisfério Sul do planeta é pouco conhecida.

Na coleção da UFRGS é possível encontrar a menor espécie, a Zizula cyna, que mede entre 1 e 2 centímetros, e a maior, a Caligo (borboleta-coruja), que varia entre 11 e 13 centímetros. Algumas espécies são bandeiras para a conservação, como é o caso da Campoleta (Euryades corethrus): espécie endêmica no Sul do país. “Essa espécie foi objeto de estudo de doutorado de Guilherme Atencio. O Rio Grande do Sul deve ser, provavelmente, o último refúgio dela, que está ameaçada de extinção”, explica Helena.

Pseudolucia parana, registrada na Capital, foi identificada como uma espécie que, atualmente, só ocorre em morros graníticos. “Temos registro dela em quatro locais, um deles é o Morro Santana, atrás do Campus do Vale”, diz a coordenadora. O grupo também registrou um novo gênero, a Prenda clarissa, espécie de borboleta ameaçada e encontrada apenas nos campos de altitude do Sul.

O conhecimento sobre a fauna e a flora é fundamental para qualquer lugar. No caso das borboletas, são capazes de sinalizar a saúde do ambiente e o que acontece com os outros grupos de seres vivos. A perda de diversidade e abundância de insetos poderá provocar efeitos em cascata nas redes alimentares e pôr em risco os serviços dos ecossistemas. “É impossível imaginar a vida humana sem insetos sobre a terra”, afirma Helena. “Esse é o papel do cientista: fazer pesquisa. Mas também, acima de tudo, o debate científico sobre o que está acontecendo é a real ciência”, finaliza Lucas.

A coleção e o banco de dados são abertos para pesquisadores e interessados mediante contato com o LEI. O acesso é realizado no Laboratório com o acompanhamento de um pesquisador da UFRGS. Verifique as informações sobre o banco de dados e o contato de como acessá-lo durante a pandemia de covid-19 AQUI.

Por que as borboletas?

Lucas Kaminski é cientista e escolheu essa profissão assim que entrou no curso de graduação em Ciências Biológicas da UFRGS no segundo semestre de 1998. Ele retorna 21 anos depois para a instituição para pesquisar Ecologia e Evolução, mas tudo começou pela admiração aos insetos, em particular, com a paixão pelas borboletas. “Eu ia na casa do meu avô para recortar reportagens de jornais sobre insetos, colocava em uma pasta de ecologia e animais; fiz isso na minha infância e adolescência toda”.

Decidido a dar continuidade à paixão pelos insetos, agora seguindo o rigor científico, Kaminski encontrou apoio junto às pesquisas de Helena. “O laboratório sempre foi muito aberto para os alunos, eu comecei a minha carreira acadêmica muito cedo: ingressei no grupo de pesquisa logo que iniciei o curso de graduação. Na minha iniciação científica, entendi o que era a carreira acadêmica, que isso era uma possibilidade e que era o que eu queria fazer”, revela ele.

Flora Desch e Demitreo Duarte Machado, estudantes do 7º semestre do curso de Ciências Biológicas, também compõem a equipe de pesquisa do Laboratório de Ecologia de Insetos. Flora, bolsista de iniciação científica, está no laboratório há um ano e meio e pesquisa a borboleta Zebra (Arawacus separata). Demitreo começou como voluntário e está no Laboratório pelo mesmo período de Flora. Os dois sempre gostaram de insetos. “Em 2019, criei várias borboletas, cheguei a 200 lagartas diferentes. Esse tipo de pesquisa que fazemos aqui (pesquisa básica) acontece, praticamente, em universidades públicas”, diz Flora. Para Demitreo, as brincadeiras de infância envolviam observação, cuidado e anotações sobre os insetos. “Tenho interesse em seguir nessa atividade, trabalhar com pesquisa voltada às borboletas. Aqui no Laboratório montamos um grande quebra-cabeça, pois cada trabalho desenvolvido é uma peça que vai se encaixando para entendermos um panorama mais geral”, orgulha-se ele.

O Laboratório de Ecologia de Insetos da UFRGS é tradicional no estudo de lepidópteros , tornando-se um espaço para a qualificação e a formação de cientistas voltados a essa área de estudo. “O primeiro professor a trabalhar com isso foi Aldo Mellender de Araujo, do Departamento de Genética. Formado em Genética Humana na Inglaterra, voltou para cá disposto a trabalhar com uma linha de genética ecológica com borboletas. Ele foi o orientador de bacharelado da professora Helena, que trabalhou com borboletas. Posso dizer que ela foi filha, e eu sou neto do Aldo”, brinca Lucas.

Helena tem trabalhado com populações e comunidades de insetos, mais especificamente com foco em borboletas desde 1979, enquanto estudante. Em 1991, passou a integrar a equipe docente da UFRGS, realizando trabalho de campo, atividades de laboratório e simulações matemáticas. De lá para cá, orientou cerca de 150 estudantes, sendo mais de 45 em nível de pós-graduação, na sua maioria, hoje, vinculados a diversas instituições de ensino, pesquisa e gestão ambiental.

A pesquisa com borboletas na Universidade tem duas vertentes importantes: a formação de pesquisadores, que começa, muitas vezes, na iniciação científica, e a pesquisa básica. Os exemplos de vida acadêmica de Helena, Lucas, Flora e Demitreo mostram que o LEI é um espaço fundamental para os estudantes entenderem o que é a pesquisa e a sua importância para a construção do conhecimento coletivo. “A primeira vez que saí a campo foi em abril de 1999, no Parque Estadual de Itapuã. Foi muito emocionante pensar que era possível alguém ir a campo e fazer isso como profissão, registrar e pesquisar insetos”, relembra Kaminski. Para os estudantes Flora e Demitreo, espaços como o LEI são imprescindíveis para a divulgação da ciência e para a pesquisa no Brasil. “Sentimos orgulho de fazer parte desse projeto”.

Helena reforça que não existe dissociação entre ciência básica, prática e setor produtivo. “Todos nós dependemos de todos nós. Uma coisa não funciona sem a outra. Conhecimento é válido em si mesmo, necessário para qualquer setor da sociedade. Entender como a vida funciona é fundamental para ela persistir, para que nós persistamos”.

Na sua história, o LEI realiza o levantamento da biodiversidade de borboletas do sul da Mata Atlântica e do Pampa com metodologia padronizada desde 1993. Os estudantes ali formados são agentes ativos da elaboração de pesquisa voltada à ciência básica, que dá subsídios aos órgãos ambientais na orientação para políticas públicas. “As pessoas perguntam: para que serve estudar borboletas? Não é para que que serve! Toda vida tem direito a existir e continuar, se não entendemos o mundo ao nosso entorno, não nos compreenderemos, assim as chances de sabermos fazer bom uso e nos integrarmos com o mundo em que vivemos serão mínimas”, frisa Helena.

Sinergia e interação. O mundo é constituído por sistemas harmônicos que conversam entre si numa proposta mútua de colaboração e crescimento. No universo dos insetos, essa relação, chamada de mutualismo, pode ser de colaboração e/ou de exploração, que no final das contas constrói laços positivos para todas as espécies envolvidas na interação mutualista. Nesse mesmo universo, conhecido como planeta Terra, nós, seres humanos dotados de consciência, interagimos de diversas maneiras, entretanto, nem sempre essa relação tem saldo positivo para todas as espécies.

O que fazer para a preservação das borboletas?

  1. Conservar os seus habitats;
  2. Plantar nos jardins espécies nativas;
  3. Minimizar o uso de agrotóxicos;
  4. Praticar uma agricultura baseada em práticas sensíveis e sustentáveis, que não seja baseada em monoculturas;
  5. Respeitar o código de preservação da vegetação nativa;
  6. Aprender que campo nativo é vegetação nativa, importante enquanto mata nativa.

Mais

O Laboratório de Ecologia de Insetos (LEI) conta com financiamento do CNPq e da Capes como fomentadores da pesquisa no Brasil.

Acesse os endereços abaixo e saiba mais.

FanPage do LEI: https://www.facebook.com/labecologiadeinsetosufrgs/

Banco de dados do LEI: http://www.ufrgs.br/zooborboletas/index.php?option=com_content&view=article&id=9&Itemid=10

Pós-Graduação em Biologia Animal: https://www.ufrgs.br/ppgban/

Departamento de Zoologia: https://www.ufrgs.br/zoologia/

Instituto de Biociências: https://www.ufrgs.br/biociencias/

* Esta reportagem foi produzida (entrevistas e fotos) em fevereiro de 2020, antes da suspensão das atividades presenciais na UFRGS por conta da pandemia. [1]

[1] Texto de Nicole Trevisol.

Como citar esta notícia: UFRGS. Rio Grande do Sul, o ‘paraíso das borboletas’: projeto aponta mais de 900 espécies no estado. Texto de Nicole Trevisol. Saense. https://saense.com.br/2020/10/rio-grande-do-sul-o-paraiso-das-borboletas-projeto-aponta-mais-de-900-especies-no-estado/. Publicado em 19 de outubro (2020).

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