UFRGS
02/10/2020

(Foto: Denise Helfenstein)

A literatura científica tem apontado o tempo de uso de mídias digitais como causa de psicopatologias (transtornos mentais e sintomas, ansiedade, depressão) ou, então, de uma pior saúde mental em geral. De forma contraintuitiva, um estudo da UFRGS sobre a influência das telas na saúde psicológica de crianças e jovens mostrou que mídias digitais praticamente não causam problemas de saúde mental. Os pesquisadores observaram que sintomas já existentes acarretam maior uso dessas mídias. Ou seja, o estudo aponta que a mídia digital é usada porque o usuário está ansioso, e não o contrário.

A pesquisa busca coletar informações sobre o estado psíquico e investigar as trajetórias de cognição e saúde mental dos jovens. Para analisar essa relação, o grupo de pesquisadores mediu o desenvolvimento cognitivo e variáveis de saúde mental de 2,5 mil jovens de escolas municipais de Porto Alegre e de São Paulo em duas marcações no tempo: entre 2010/2011 e 2013/2014. O artigo Screen time and psychopathology: investigating directionality using cross-lagged panel modelsresultante do estudo, encontra-se em fase de preprint e é assinado por professores da UFRGS, da USP e da Unifesp que colaboram com o projeto “Coorte Brasileira de Alto Risco para Transtornos Psiquiátricos”, do Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento para Crianças e Adolescentes (INPD). Giovanni Salum, professor da Faculdade de Medicina e do Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Ciências do Comportamento da UFRGS (PPG Psiquiatria), é o atual vice-coordenador do Instituto e um dos autores do artigo.

Uma das pesquisadoras do projeto, Patrícia Bado, pós-doutoranda no PPG Psiquiatria pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA/UFRGS), conta que diversos trabalhos apontam uma relação forte ou direta entre a psicopatologia apresentada por jovens e o uso que eles fazem das telas. “Muitos estudos mostram que [as duas variáveis] têm relação, mas não deram um modelo que mostrasse o que puxa o que, qual é a causa”, esclarece ela.

Modelo de pesquisa

A pesquisadora conta que esses estudos geralmente eram pontuais e analisavam um caso mais específico. Já o modelo aplicado pela Coorte, nomeado ‘cross-lagged model’ (modelo painel cruzado), tenta estimar a influência de uma variável na outra ao longo do tempo e também se diferencia por ter um vasto banco de dados longitudinal, os quais podem ser “limpos” e corrigidos quando analisados. Patrícia explica que isso é possível porque as variáveis podem ser comparadas com elas mesmas em diferentes pontos no tempo. Por exemplo, os estudos costumavam relacionar dois fatores – o uso de mídias digitais e a saúde mental – em uma pessoa ou grupo de análise.

A variação dos dois elementos era dada somente como causa e efeito, ou seja, se a pessoa usava mais mídias digitais e tinha a saúde mental agravada, concluía-se que a causa era o uso de telas. Porém comparando-se uma variável com ela própria, dependendo da variação que ela tem, pode-se quebrar a causalidade direta entre, nesse caso, o tempo de tela e a saúde mental. “É possível estimar o quanto quem usa mais telas tem uma predisposição para pior saúde mental ou o quanto quem tem uma saúde mental pior usa mais telas. Consegue-se estimar a direção, a causalidade entre esses efeitos”, afirma Patrícia. É justamente no fato de os sintomas também progredirem sozinhos que o estudo mostra como a influência das telas na saúde mental é pequena.

As setas indicam relação e direção, causalidade. Não há seta entre o tempo de tela em “t0” e a psicopatologia em “t1” por ser muito fraca a associação entre elas, como aponta o estudo

Seleção da amostra

A amostra de 2,5 mil jovens foi obtida em 2010, a partir de questionários e entrevistas com os pais e responsáveis para os quais os pesquisadores apresentaram o projeto, que busca ampliar o conhecimento sobre saúde mental na infância e proporcionar diagnósticos precoces. Ao fim da seleção, parte dos participantes era considerada de alto risco para desenvolver alguma psicopatologia, e outra parte foi selecionada aleatoriamente. “Por isso se chama Coorte de Alto Risco, porque algumas crianças foram selecionadas com base num escore de alto risco alcançado com os questionários” esclarece a pesquisadora.

O objetivo é obter informações psicopatológicas, neuroimagéticas e genéticas, de modo que seja possível investigar trajetórias típicas e atípicas na cognição e na saúde mental de jovens. Patrícia explica que uma série de entrevistas foi realizada, coletando as variáveis psicológicas, o tempo diário despendido em frente a computador, celular, televisão, videogame e os dados escolares. Esse início foi chamado pelos pesquisadores de “t0”, e três anos depois as variáveis foram novamente mensuradas. Novas ondas de coleta seguem acontecendo. “Dessa forma é possível compreender e comparar fatores de risco e de proteção para desenvolvimento normal e saudável, o que também cria a possibilidade de intervir e prevenir logo caso haja algum problema”, conta. A partir disso também foi possível inferir como e quanto cada fator influencia em outro – no caso desse estudo, como tempo de tela e saúde mental se correlacionam.

O isolamento social e seus efeitos

Estudos recentes, segundo Patrícia, mostram que a pandemia de covid-19 e o isolamento social têm implicações na saúde mental da população em geral. Ressalvando que ainda não foi possível analisar os dados da última etapa de coleta da Coorte, apurados no contexto da pandemia, a pesquisadora afirma que o momento atual fornece um exemplo da “limpeza” dos dados, que é possível no modelo usado no estudo: “No caso do isolamento social, é difícil de relacionar as variáveis diretamente, porque, ainda que o tempo de tela e a saúde mental estejam relacionados, o contexto alterou ambas as variáveis, e elas não são simplesmente causa uma da outra. Nesse sentido, elas só se alteraram mesmo”.

Patrícia acrescenta que a quarentena é um bom exemplo de como as tecnologias digitais podem ser bem utilizadas. “É um momento muito rico para aprender sobre como usá-las. A saúde mental está baixa por causa do isolamento, somos seres sociais. As telas dificilmente são o ponto. Fica mais claro o que é o uso ruim e o que é saudável, produtivo”. Para a neurocientista, há uma tendência pessimista e carregada de medo nas pesquisas que buscam malefícios do uso de novas tecnologias. “Muitos estudos sobre as telas e a internet seriam mais um capítulo do ciclo de Sísifo , enquanto na verdade os esforços poderiam ser direcionados a entender as atividades desenvolvidas com elas, além dos benefícios. Isso foi visto também com o advento da televisão e do rádio.” Ela ressalta que se pode falar de uma maneira educativa sobre o que está sendo feito, em que ambiente a atividade está sendo desenvolvida, e qual a dinâmica ao redor das pessoas que utilizam as tecnologias.

A pesquisadora explica que pode ser mais relevante perceber como o público infantojuvenil usa as telas do que quanto ele usa. Comportamentos repetitivos, sem finalidade, procrastinação e isolamento a partir das telas acontecem quando a saúde não está muito boa. “Nosso estudo mostrou que não se fica ansioso quando se usa uma mídia digital, mas sim que se usa essa mídia por estar ansioso. Enquanto, por outro lado, é possível passar bastante tempo realizando atividades que não significam um mau estado mental, jogando com amigos, estudando ou com demais opções de lazer”, afirma.

Banco de dados disponível para uma ciência colaborativa

As informações coletadas ao longo desses anos pela Coorte Brasileira de Alto Risco para Transtornos Psiquiátricos compõem um grande banco de dados. “Os dados são abertos, não disponíveis, mas qualquer cidadão do mundo pode pedir por eles. A ideia é uma ciência colaborativa”, explica Patrícia. Ela conta que a Coorte tem um repositório online de informações no Open Science Framework – estrutura de ciência aberta –em que as pessoas podem olhar e comparar suas pesquisas. De acordo com a pesquisadora, diferentemente de trabalhar com experimentos, com esse banco se pode chegar com algumas perguntas e encontrar respostas. A amostra é vasta e derruba críticas comuns aos estudos psiquiátricos, como quando se diz que a análise foi pontual, ou que os participantes já tinham problemas e por isso fizeram parte da pesquisa. “A gente tem um dado bem interessante, um trabalho longitudinal e abrangente.” salienta. 

Ela conta que outros estudos são realizados com esses dados, investigando várias frentes, como o desempenho do público infantojuvenil nas escolas ou o quanto a genética influencia na saúde mental. Pesquisadores mais novos estão analisando os dispositivos móveis – o que atualiza a variável tempo de tela. Com a conclusão do artigo, a cientista revela que agora o projeto da Coorte pretende seguir acompanhando seus participantes, inclusive os filhos deles, para poder analisar melhor o braço genético nesse meio. Exames de sangue e de neuroimagem já foram feitos em uma subamostra na última onda de coleta.

ARTIGO CIENTÍFICO

BADO, Patrícia et al. Screen time and psychopathology: investigating directionality using cross-lagged panel models. Disponível em: https://psyarxiv.com/q8tur/. [1]

[1] Texto de Thiago Sória.

Como citar esta notícia científica: UFRGS. Uso de mídias digitais por muito tempo pode não prejudicar a saúde mental. Texto de Thiago Sória. Saense. https://saense.com.br/2020/10/uso-de-midias-digitais-por-muito-tempo-pode-nao-prejudicar-a-saude-mental/. Publicado em 02 de outubro (2020).

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