Marcus Eugênio Oliveira Lima
03/10/2020

(Imagem de PublicDomainPictures por Pixabay)

No dia 25 de maio de 2020, George Floyd, estadunidense negro foi morto pela polícia quando já estava rendido [1]. No dia 23 agosto, ainda nos Estados Unidos, Jacob Blake, também indefeso, recebeu sete tiros de um policial branco pelas costas [2]. Um pouco mais perto de nós, em Portugal, no dia 21 de janeiro de 2020, Cláudia Simões, cidadã portuguesa negra, estava num ônibus com a filha de oito anos, quando se deu conta que a criança havia esquecido o passe escolar. Ela então informou ao motorista que quando chegasse na parada de casa entregaria o passe. O motorista pediu a senhora que descesse do ônibus, ela se recusou, ele chamou a polícia, o policial agrediu a senhora na rua, em frente à filha, tendo a conduzido a uma delegacia onde foi espancada novamente [3][4].

Agora, bem mais perto de nós, na zona sul de São Paulo, no dia 14 de junho de 2020, o adolescente negro Guilherme Silva Guedes, de 15 anos, desapareceu, tendo sido encontrado morto no dia seguinte, os suspeitos são dois policiais militares. Seis dias depois, ainda na grande São Paulo, outro cidadão negro, Gabriel Nunes de Sousa, de 19 anos, sofreu imobilização por estrangulamento por parte da polícia, após não conseguir frear a moto que conduzia e colidir com uma viatura, em cena semelhante à de George Floyd. Na Bahia, no mês de fevereiro deste ano, um policial militar, enquanto chutava e socava um adolescente negro de 16 anos, proferia insultos racistas sobre o cabelo da vítima, a qual usava um penteado black power: “Você para mim é ladrão, vagabundo. Vá tirar essa desgraça desse cabelo” [5]. Ontem mesmo, dia 20 de setembro de 2020, enquanto estava escrevendo este texto, mais um caso de racismo policial ocorreu, desta vez em Macapá – AP [6]. Poderíamos passar muito tempo relatando outros episódios de violência policial com motivação racista, uma vez que a recorrência é a marca distintiva desse fenômeno. Todavia, pretendemos neste texto entender melhor, à luz da psicologia social, como se configura essa violência e a relação entre o indivíduo (policial) e a instituição (polícia) na produção desse fenômeno.

O policial que matou George Floyd se chamava Derek Chauvin; o que deu sete tiros pelas costas de Jacob Blake foi Rusten Sheskey; o agressor principal de Cláudia Simões foi Carlos Canha; os indiciados pelo assassinato de Guilherme Guedes foram o policial Adriano Fernandes de Campos e o ex-PM Gilberto Eric Rodrigues. Saber esses nomes pode nos fazer pensar que se tratam de indivíduos racistas e violentos, “maçãs podres” da organização policial, que acabam por sujar todo o nome da polícia, enodando injustamente a imagem social dos muitos cidadãos de bem que compõem a corporação. Entretanto, ainda que não se possa desconsiderar os fatores individuais na produção da violência racista, há algo mais amplo que precisa ser resgatado quando essa violência é policial. Neste texto, tentaremos mostrar que a Teoria da Dominância Social nos ajuda a entender de forma mais completa a relação indivíduo-instituição que permeia a violência policial racista.

A instituição “polícia” possuí uma filosofia de controle da ordem social e manutenção das hierarquias que concebe as minorias sociais como agentes ameaçadores ou “grupos de risco”, merecendo, por isso, “atenção” e tratamento especiais, como atesta um documento interno da Polícia Militar de Campinas (São Paulo) com orientações detalhadas sobre como abordar “indivíduos em atitude suspeita, em especial de cor” [7]. Na mesma direção, em 2017, o tenente-coronel Ricardo Augusto Nascimento de Mello Araújo, chefe de um grupamento especial da polícia paulista, ficou nacionalmente conhecido por defender que a polícia deve ter abordagens diferentes para bairros pobres e ricos:

É uma outra realidade. São pessoas diferentes que transitam por lá (nos bairros ricos). A forma dele abordar tem que ser diferente. Se o policial for abordar uma pessoa na periferia da mesma forma que ele for abordar uma pessoa aqui nos Jardins (região nobre de São Paulo), ele vai ter dificuldade. Ele não vai ser respeitado. Da mesma forma, se eu coloco um policial da periferia para lidar, falar com a mesma forma, com a mesma linguagem que uma pessoa da periferia fala aqui no Jardins, ele pode estar sendo grosseiro com uma pessoa do Jardins que está ali, andando [8].

A violência policial do tipo elitista (contra pobres) ou racista (contra negros) é um fenômeno complexo e multicausado, para entendê-la melhor é preciso considerar tanto variáveis individuais quanto institucionais. Partindo do pressuposto de que o conflito entre grupos sociais baseado nas desigualdades e na opressão é um fenômeno permanente e universal na existência humana, Jim Sidanius, um psicólogo social estadunidense, formulou, no início da década de 1990, a Teoria da Dominância Social (TDS). A TDS propõe que as sociedades administram o conflito entre grupos criando consensos sobre ideologias que promovem a crença na superioridade de um grupo sobre outros. A Orientação para a Dominância Social (ODS) seria a dimensão mais psicológica desse fenômeno, configurando-se como um desejo de estabelecer e manter supremacia social, econômica, cultural e militar sobre os outros [9]. De acordo com a TDS, muitos tipos de opressão grupal, a exemplo de racismo, sexismo, elitismo e intolerância religiosa, seriam, essencialmente, manifestações particulares de um processo mais geral, através do qual os grupos buscam a supremacia, ou seja, a dominância [10].

A teoria propõe que, nas lutas sociais, haveria dois tipos de forças sociais opostas: as forças de atenuação das hierarquias e forças de expansão ou de manutenção das hierarquias. Os grupos dominantes, aqueles mais bem instalados nas posições de poder, lutariam por manter ou ampliar suas vantagens, zelando pela defesa das hierarquias; ao passo que as minorias sociais pugnariam pela sua atenuação. A nível individual, a luta pela manutenção das hierarquias configura aquilo que chamamos de Orientação para Dominância Social (ODS). A ODS possui duas faces: uma mais abertamente hostil ou flagrante, responsável pelas atitudes preconceituosas de inferiorização e mesmo desumanização dos outros; outra mais sutil, disfarçada, voltada para formas indiretas de preconceito, ainda que igualmente ciosa por manter as posições de poder e domínio [11].

Pesquisas com amostras diversas e em contextos variados constatam que, quanto maiores os níveis de ODS, maior a favorabilidade à pena de morte, à punição como forma de resolução de conflitos e à tortura [12]. Os mais aderentes às práticas parentais que envolvem a punição física dos filhos também são os com maior escore de ODS [13]. Outro estudo, com amostra representativa de 27 países, constatou que, quanto maior a ODS, mais frequentes são a perseguição étnica, o racismo, o sexismo, o risco de conflitos violentos, a ausência de governança, a ausência de democracia e a desigualdade social [14].

A Teoria da Dominância Social afirma que comportamentos e atitudes favoráveis à manutenção das hierarquias podem ser recompensados por certas instituições ou punidos por outras. Haveria, pois, uma sinergia entre a personalidade dos indivíduos com Orientação para a Dominância Social e as instituições voltadas para esses fins, ambos se auto-reforçando, o que tornaria as práticas sociais mais difíceis de mudar. A ideia geral é a de que existe um ajuste pessoa-ambiente, fazendo com que, nos contextos de trabalho, os valores dos empregados sejam semelhantes aos das instituições empregadoras. Esse encaixe faz com que pessoas que priorizam as hierarquias sociais e a subordinação dos outros procurem ambientes que endossem esses valores e vice-versa. O encaixe pessoa-instituição ocorreria graças a cinco fatores: 1) auto-seleção – responsável por fazer os indivíduos escolherem instituições congruentes com seus valores; 2) seleção institucional – que leva as instituições a escolherem pessoas que comungam dos seus valores; 3) socialização institucional – responsável pela transmissão dos valores da instituição aos seus membros; 4) sistema de recompensas diferencial – implicando uma maior valorização e premiação dos membros congruentes com os valores da instituição e 5) sistema de desgaste diferencial – que torna os indivíduos “incongruentes” mais ameaçados na instituição, levando-os a abandonarem por inadequação às suas orientações ideológicas [15].

Os pressupostos da TDS afirmam que algumas carreiras profissionais se destacam na luta pró-manutenção das hierarquias, a exemplo de economistas, administradores, gerentes financeiros e operadores da justiça criminal. Outras estariam mais voltadas para a atenuação das hierarquias, a exemplo de cientistas sociais, assistentes sociais e professores de educação especial [16]. Dentre as organizações profissionais voltadas para manutenção das hierarquias e do status quo, a polícia é a mais emblemática.

Pesquisas mostram que militares em formação possuem mais atitudes anti-igualitárias que civis, seja em relação ao gênero (e.g., concordar que os direitos das mulheres deveriam ser restringidos), seja em relação à raça (e.g., concordar mais com punições severas, a exemplo da pena de morte, para negros e latinos). Outros estudos, feitos com policiais já formados, indicam que os níveis de ODS são ainda mais elevados e permanecem constantes mesmo quando são controlados fatores demográficos, tais como idade, sexo, estrato social e escolaridade [17].

Portanto, determinadas personalidades, mais voltadas à manutenção de hierarquias, se sentem mais atraídas por certas carreiras profissionais, aquelas que possuem uma certa filosofia e, muitas vezes, como é o caso da polícia, até a função, de manutenção da ordem estabelecida. Os indivíduos com esse perfil são os mais selecionáveis por esse tipo de instituição, a qual, por sua vez, premia de forma diferenciada seus agentes, fazendo com que uns permaneçam e outros, os “mal ajustados” sejam marginalizados ou desistam da carreira. Dessa forma, a instituição polícia se encaixa com o perfil do agente policial que tudo faz para manter as minorias (sexuais, raciais, étnicas, religiosas, etc.) no “seu devido lugar”, e quanto mais ele faz isso, mais se fortalece profissionalmente e mais fortalece a instituição que o recrutou.

Portanto, a violência policial com motivação racista é um problema tanto individual quanto institucional; a solução, na mesma medida, deve ser sistêmica. São necessárias ações para aperfeiçoar as formas de recrutamento e de treinamento (formação) policial. O sistema de recompensas e sanções deve também ser repensado, a fim de valorizar mais os policiais com perfil apaziguador e efetivo na resolução não racista de conflitos em comparação aos de perfil violento e racista. Devem se tornar mais frequentes nos âmbitos políticos e institucionais as discussões sobre racismo, sobre antirracismo, sobre as funções sociais da polícia e sobre o perfil profissional do policial que se quer atuando. Nessa direção, algumas ações começaram a ser feitas. Em Atlanta, nos Estados Unidos, as técnicas de abordagem policial foram alteradas por decreto da prefeitura, a fim de evitar uma escalada da violência. Na mesma direção, José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, entregou à Procuradoria Geral da Justiça de São Paulo um documento com sugestões sobre mudanças na abordagem policial. Tais ações são importantes, mas tocam apenas a ponta do iceberg, pois não interferem na formação policial e nas definições das funções da polícia.  É preciso considerar, como nos ensinam os recentes episódios desencadeados depois do assassinato de Floyd Allport, que o racismo policial colabora para a instauração do caos social e não da ordem.

A sociedade precisa continuar punindo exemplarmente os policiais racistas, mas isso por si só não basta, é preciso, simultaneamente, promover uma reestruturação da Polícia, sobretudo em sociedades desiguais como a nossa, onde a relação entre ODS e violência policial racista é mais intensa e tende a se tornar uma poderosa bomba relógio.

Esperamos que alguns dos links deixados possam ampliar seu conhecimento sobre a Teoria da Dominância Social e de suas análises da relação indivíduo-instituição.

[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Assassinato_de_George_Floyd.

[2] https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/08/24/homem-negro-aparentemente-desarmado-leva-sete-tiros-da-policia-nos-estados-unidos.ghtml.

[3]https://observador.pt/2020/01/21/sos-racismo-denuncia-agressao-contra-cidada-negra-portuguesa-psp-acusa-a-de-resistir-a-detencao/.

[4] https://www.youtube.com/watch?v=lrTLzQICm1Y.

[5] https://brasil.elpais.com/brasil/2020-06-30/entre-a-vida-e-a-morte-sob-tortura-violencia-policial-se-estende-por-todo-o-brasil-blindada-pela-impunidade.html.

[6] https://g1.globo.com/ap/amapa/noticia/2020/09/20/pedagoga-leva-soco-durante-abordagem-policial-em-macapa-pms-foram-afastados.ghtml.

[7] https://www.geledes.org.br/o-racismo-da-policia-militar/?gclid=Cj0KCQjwtZH7BRDzARIsAGjbK2ZF9J5tSIeKU5lPtkgI2ycKfgczAOJPLzn11yj-7PXvvgLqXcR-cgsaAieIEALw_wcB.

[8] https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/08/24/abordagem-da-rota-e-padrao-so-muda-a-linguagem-diz-comandante-apos-polemica.htm.

[9] Sidanius, J., & Pratto, F. (1999). Social dominance: An intergroup theory of social hierarchy and oppression. New York, EUA: Cambridge University Press. doi: 10.1017/CBO9781139175043.

[10] Sidanius, J., Cotterill, S., Sheehy-Skeffington, J., Kteily, N., & Carvacho, H. (2018). Social dominance theory: Exploration in the psychology of oppression. In F. K. Barlow e C. G. Sibley (Eds.), The Cambridge Handbook of the Psychology of Prejudice (pp. 100-143). Cambridge: Cambridge University Press.

[11] Idem nota X.

[12] Jim Sidanius, Michael Mitchell, Hillary Haley, and Carlos David Navarrete. (2006). Support for Harsh Criminal Sanctions and Criminal Justice Beliefs: A Social Dominance Perspective. Social Justice Research, Vol. 19, No. 4, December. DOI: 10.1007/s11211-006-0026-4.

[13] Chelsie A. Hess, BA, Jennifer M. Gray, MS, and Narina L. Nunez. (2012). The Effect of Social Dominance Orientation on Perceptions of Corporal Punishment. Journal of Interpersonal Violence, 27(13), 2728–2739.

[14] Kunst, J. R., Fischer, R., Sidanius, J., & Thomsen. (2017). Preferences for group dominance track and mediate the effects of macro-level social inequality and violence across societies. PNAS, 114 (21), 5407–5412.

[15] Haley, H. & Sidanius, J. (2005). Person–Organization Congruence and the Maintenance of Group-Based Social Hierarchy: A Social Dominance Perspective. Group Processes & Intergroup Relations, Vol 8(2) 187–203.

[16] Sidanius, J., van Laar, C., Levin, S., & Sinclair, S. (2003). Social hierarchy maintenance and assortment into social roles: A social dominance perspective. Group Processes & Intergroup Relations, 6, 333–352.

[17] Idem nota 12.

Como citar este artigo: Marcus Eugênio Oliveira Lima. Violência policial, racismo e manutenção do status quo. Saense. https://saense.com.br/2020/10/violencia-policial-racismo-e-manutencao-do-status-quo/. Publicado em 03 de outubro (2020).

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