Jornal da USP
21/01/2021

Plenário do STF, Brasília (Imagem: STF, Wikimedia Commons, CC BY-SA 3.0)

Por Alamiro Velludo Salvador Netto, professor titular da Faculdade de Direito (FD) da USP e Amanda Bessoni Boudeux Salgado, doutoranda em Direito Penal na FD da USP

O papel a ser desempenhado por um Tribunal Constitucional deriva de uma das possibilidades de oferecer uma resposta satisfatória à seguinte indagação: Afinal, “quem deve ser o defensor da Constituição?”. A solução a ser dada a tal questionamento, ao contrário do que possa parecer, nem sempre foi simples e, muito menos, óbvia. As reflexões aqui subjacentes apontam para as disputas existentes acerca do próprio Estado enquanto organização política destinada a permitir a convivência entre os homens. Passa, igualmente, pelas querelas a respeito das formulações jurídicas e da função a ser exercida pelo Direito.

Giorgio Lombardi, sobre essa temática, lembra aquele que talvez tenha sido o maior dos seus embates. Já nos estertores da República de Weimar, mais pontualmente entre os anos de 1929 e 1933, dois dos principais publicistas europeus antepuseram-se no assunto. De um lado, Carl Schmitt, historicamente identificado com o nazismo, postulava a ideia de que a defesa da Constituição caberia, acima de tudo, ao chefe de Estado. Por outro lado, o austríaco Hans Kelsen sustentava que a obrigação de defender ou salvar a Constituição, norma ocupante do mais alto posto, caberia a um órgão ad hoc, um tribunal especificamente concebido para essa única atribuição.

Na realidade constitucional contemporânea, o mesmo Lombardi aponta para uma redução do fôlego da querela, pois a questão primordial está hoje na proteção dos valores que constituem o objeto da Constituição e na observância dos mecanismos existentes para sua modificação, caso em que pode haver maior flexibilidade ou, pelo contrário, regras rígidas que obstaculizam a alteração frequente do conteúdo constitucional.

O Estado brasileiro estabeleceu como competente para a salvaguarda da Constituição um organismo com jurisdição específica, atribuindo-lhe o controle de constitucionalidade das leis. A Constituição de 1988 encarrega o Supremo Tribunal Federal (STF) de exercer o controle abstrato de constitucionalidade, que se dá pelo julgamento de ações autônomas indicativas de controvérsia quanto à compatibilidade de leis e atos normativos com o texto constitucional, a exemplo das ações direta de inconstitucionalidade e declaratória de constitucionalidade. Ainda, qualquer juiz ou tribunal pode exercer controle difuso de constitucionalidade, limitado ao caso concreto sob análise. O sistema é semelhante ao do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, capaz de controlar todos os demais órgãos estatais pela avaliação da conformidade constitucional de seus atos. A Supreme Court dos Estados Unidos, a seu modo, não exerce o referido controle abstrato, somente avaliando a constitucionalidade de leis em conflitos concretos, e seus juízes podem não proferir uma decisão se avaliarem que a demanda é de natureza altamente política ou não suscita tema jurídico de natureza fundamental.

A Constituição brasileira fixa regras complexas para a realização de emendas (art. 60), o que causa o fenômeno de sua revisão parcial (ou mesmo evolução) por meio da jurisprudência do STF, por vezes acusado de um “ativismo judicial” exacerbado. O debate se associa ao papel “contramajoritário” do STF, uma vez que o controle judicial de constitucionalidade é exercido por onze ministros (ou seis, já que a maioria absoluta é suficiente), em detrimento de atos de representantes eleitos pelo povo brasileiro.

Para o ministro Luís Roberto Barroso, a legitimidade democrática da Corte Constitucional se fundamenta na proteção das “regras do jogo democrático e dos canais de participação política de todos”, dado que, para além do papel contramajoritário tradicional, o STF passou a desempenhar uma função representativa, atendendo a demandas sociais relevantes que não foram satisfeitas pelo processo político majoritário

Na medida em que os órgãos do Poder Judiciário têm a obrigação de emanar decisão sobre qualquer demanda que lhes é apresentada (ao menos segundo o ordenamento brasileiro), consolidam sentidos já afirmados para a lei infraconstitucional ou lhe conferem sentidos outros. É o que o sociólogo alemão Niklas Luhmann chama de “paradoxo da transformação da coerção em liberdade” no que se refere à atividade dos tribunais, pois “quem se vê coagido à decisão e, adicionalmente, à fundamentação de decisões, deve reivindicar para tal fim uma liberdade imprescindível de construção do Direito”. O STF, ao atuar nos casos de constitucionalidade controversa, realiza essa exata tarefa, distinguindo o que será adotado como comunicação jurídica e o que lhe escapa. Em tal contexto, mostra-se natural a inquietude quanto aos “poderes” dos julgadores e, fundamentalmente, sua utilização a serviço de determinadas pautas consideradas conservadoras ou progressistas.

Com efeito, a composição das Cortes Supremas pode ditar o tom da interpretação judicial sobre leis aplicadas em todo o país, além de alterar o sentido do Direito por meio de processos argumentativos. O receio de que se fala advém do modelo de nomeação dos ministros do STF, indicados pelo Presidente da República e submetidos à aprovação da maioria absoluta do Senado Federal. Assim também ocorre na Suprema Corte dos EUA, onde recentemente foi retomado o debate sobre o rompimento do equilíbrio ideológico da Corte com a posse da conservadora Amy Coney Barrett, por indicação do Presidente Donald Trump. Barrett substituiu a progressista Ruth Bader Ginsburg, de modo que a Suprema Corte daquele país passou a contar com seis juízes de perfil mais conservador e apenas três de orientação progressista.

O modelo de nomeações integralmente realizadas pelo Presidente da República pode gerar déficits de legitimidade das Supremas Cortes perante os jurisdicionados. É que as indicações costumam refletir a inclinação ideológica dos Presidentes, bem como suas visões a respeito de temas de extrema relevância social, como união homoafetiva, aborto, apego à religião e repressão à criminalidade. Outro ponto de destaque é a extensão do mandato, que, no Brasil, se dá até os 75 anos, ressalvada a hipótese de aposentadoria voluntária antes de atingida tal idade. Nos EUA, inspiração do modelo brasileiro, o mandato dos juízes da Suprema Corte é vitalício. Em ambos os sistemas, a principal forma de evitar indicações de caráter puramente ideológico é a submissão à aprovação do Senado. Tal expediente, contudo, mostra-se, ao menos no Brasil, um mero ritual protocolar.

Referências bibliográficas

BARROSO, Luís Roberto. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, vol. 5, n. 2, 2015, p. 36.
DOEHRING, Karl. Teoria do estado. Coord. Luiz Moreira, Trad. Gustavo Castro Alves Araújo. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 350.
LOMBARDI, Giorgio. Estudio preliminar. In: Carl Schmitt y Hans Kelsen: la polémica Schmitt/Kelsen sobre la justicia constitucional: el defensor de la Constitución versus ?quién debe ser el defensor de la Constitución? Madrid: Tecnos, 2009, p. XI e XLIX.
LUHMANN, Niklas. A posição dos tribunais no sistema jurídico. Revista da AJURIS, n. 49, julho de 1990, p. 163.

Como citar este artigo: Jornal da USP. Supremas Cortes e o temido viés ideológico na defesa da Constituição.  Texto de Alamiro Velludo Salvador Netto e Amanda Bessoni Boudeux Salgado. Saense. https://saense.com.br/2021/01/supremas-cortes-e-o-temido-vies-ideologico-na-defesa-da-constituicao/. Publicado em 21 de janeiro (2021).

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