Jornal da USP
16/04/2021
A pandemia no Brasil desenhou uma rota com rápida disseminação de casos e óbitos por covid-19 no País como um todo, mas uma variação de padrões entre Estados e municípios que refletiu a diversidade das políticas de contenção – ou ausência delas. Saindo do Sudeste, com o início em São Paulo, para os graves surtos verificados no Norte e no Nordeste, e depois de volta ao Sudeste, chegando à região Sul.
Um estudo publicado nesta quarta-feira (14) na revista Science mostra como se deu tal dispersão na primeira fase da pandemia, alertando para uma possível repetição deste movimento no território nacional no momento atual, mas desta vez com a variante P.1 adicionada ao cenário. Assim, a rota do vírus pode ser comparável, mas deixará no mapa traços ainda mais trágicos, com um número de mortes que pode ser, nas palavras dos autores, “intolerável”.
“O fracasso em evitar essa nova rodada de propagação facilitará o surgimento de novos VOCs [variantes de preocupação, na sigla em inglês], isolará o Brasil como uma ameaça à segurança da saúde global e levará a uma crise humanitária completamente evitável”, alerta o texto.
A pesquisa liderada pela brasileira Marcia Castro e por Sun Kim, ambas da Escola de Saúde Pública de Harvard, teve a participação de Lorena Barberia, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e acompanha a pandemia no País desde seu início, em fevereiro, até outubro de 2020, detalhando como regiões e municípios impuseram ou relaxaram medidas em diferentes momentos, com base em critérios distintos, facilitando em maior ou menor medida a propagação do vírus.
Destaque negativo no estudo, o Estado do Rio de Janeiro exibiu alguns indicadores piores que o Amazonas, por exemplo, apesar do RJ contar com melhor infraestrutura, dispondo de mais que o dobro de leitos por habitantes que o AM. Para as autoras, o caos político comprometeu uma resposta mais rápida e eficaz, lembrando que neste período as lideranças ficaram imersas em denúncias de corrupção, com o governador destituído do cargo e o secretário da Saúde trocado por três vezes entre maio e setembro de 2020, um deles sendo preso.
Já o Ceará, que quase chegou ao colapso do sistema hospitalar entre o final de abril e meados de maio, e teve a circulação silenciosa do vírus mais de um mês antes do primeiro caso relatado oficialmente, teve rápida interiorização dos casos, mas em menor velocidade que dos óbitos. Para Lorena Barberia, o Estado é um destaque positivo pois, comparado a outros, reagiu de forma mais rígida em maio. Foi construído um pacote de medidas mais coerentes e articuladas e elas foram mantidas por três semanas. “Ele começa como um caso muito preocupante, mas por ter reagido desta forma em maio, conseguiu reverter a evolução da pandemia em seu território. Nenhum outro estado adotou medidas tão rígidas nesse período”, diz a pesquisadora.
Quanto à resposta federal, o artigo a relata como “uma combinação perigosa de inação e irregularidades, incluindo a promoção da cloroquina como tratamento, apesar da falta de evidências”. Destaca ainda a falta de estratégia nacional coordenada se refletindo em taxas de ataque [incidência em uma população definida em um curto período de tempo] muito altas e com peso desproporcionalmente maior entre os mais vulneráveis.
Os autores ressaltam, porém, que não há uma “narrativa única” para explicar a propagação do vírus nos Estados brasileiros. “Em vez disso, camadas de cenários complexos se entrelaçam, resultando em epidemias covid-19 variadas e simultâneas em todo o País.”
A covid no tempo e no espaço
Para medir quantitativamente a intensidade da propagação de casos e óbitos de covid-19 ao longo do tempo, foram acessados dados das Secretarias Estaduais de Saúde e utilizado um indicador chamado Índice de Hoover. Valores próximos a 100 indicam concentração da pandemia em poucos municípios, enquanto valores próximos a zero sugerem distribuição mais homogênea. Se as medidas de contenção fossem eficazes, o esperado era que o índice diminuísse lentamente, permanecendo relativamente alto ao longo do tempo – algo que se verificou na Coreia do Sul, por exemplo.
No Brasil porém, logo na primeira semana com eventos notificados, Amazonas, Roraima e Amapá tiveram índice abaixo de 50 para casos e óbitos, sugerindo que já havia circulação não detectada do vírus antes da notificação (e, portanto, quando as notificações começaram, já havia uma grande parte da população infectada). “Isso foi confirmado no Ceará, onde uma investigação retrospectiva revelou que o vírus já circulava em janeiro”, relembra Marcia Castro.
Em todos os Estados, o tempo entre o primeiro caso e a primeira morte foi menor que um mês; apenas 11 dias no Amazonas e 21 dias em São Paulo. “Isso reflete problemas de vigilância, notificação e baixa testagem. O primeiro aglomerado significativo de mortes teve início em 18 de maio, perto de Recife. Cinco outros ocorreram antes que o primeiro grupo de casos fosse observado. A situação é diferente da que foi observada na Coreia do Sul, onde a contenção bem-sucedida reduziu a duração e a extensão geográfica destes aglomerados ao longo do tempo”, diz Marcia Castro.
Além disso, se as medidas fossem eficazes para evitar o colapso do sistema hospitalar, esperaríamos que o índice usado se apresentasse mais alto para os óbitos, em comparação com os casos; ou seja, que os óbitos ficassem mais concentrados, por mais tempo, em poucos municípios. “Se houvesse uma resposta efetiva e capaz de conter a transmissão, o indicador ia começar alto, poderia cair um pouco, mas iria atingir um platô ainda num nível alto”, diz Marcia Castro.
Tomando o País como um todo, em geral, houve introdução rápida e em múltiplos focos do vírus, imediatamente seguida por uma rápida propagação espacial. Mas o padrão variou entre os Estados.
O Estado do Rio de Janeiro teve a interiorização mais intensa tanto de casos quanto de óbitos, seguido pelo Amazonas. Os dois sofreram com falta de leitos de UTI, mas a situação era pior no Amazonas, com cerca de 11 leitos de UTI disponíveis para cada 100 mil pessoas, todos concentrados em Manaus, contra mais que o dobro no RJ: 23 leitos por mil pessoas.
Gestão
A professora Lorena Barberia chama a atenção para um aspecto do trabalho ligado à temporalidade e como isso nos faz entender o cenário atual da pandemia no Brasil. Ao observar o número de casos e óbitos ao longo das 41 semanas e comparar com as políticas de distanciamento físico adotadas (medidas restritivas sobre a circulação das pessoas), os dados mostraram que essas medidas se mantiveram moderadas ou foram flexibilizadas, apesar do agravamento da pandemia, quando era necessário uma intensificação de medidas mais duras para evitar o avanço do vírus na população.
Entre as medidas mais duras, Lorena cita fechamento de comércio e isolamento domiciliar, mas os gestores nunca fizeram recomendações fortes. Foi frequente, por exemplo, adicionar muitas áreas de comércio em serviços essenciais, o que resultou em estes setores não serem fechados. De modo geral, não houve lockdown no Brasil em 2020. Em algumas experiências locais, em São Luís do Maranhão e Fortaleza, houve medidas mais rígidas adotadas. No caso de Fortaleza, o lockdown foi decretado de 8 a 30 de maio para aumentar a restrição da circulação de pessoas e isolamento domiciliar. Em São Luís, as medidas mais rígidas foram por mandado judicial e por um período de apenas duas semanas.
A recomendação sobre o uso de máscaras foi introduzida a partir de abril, e elas começaram a se tornar obrigatórias nos meses seguintes em vários Estados, mas os decretos raramente incluíam uma fiscalização rígida.
Como não houve uma política nacional coordenada, cada Estado definiu serviços essenciais de uma forma. Para alguns, incluía cabeleireiro e barbearia, para outros não. Lorena lembra que o País distorceu essa medida, pois a orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS) é que quando você fecha comércio e serviços, os setores essenciais são apenas comida e saúde. “E nós conseguimos interpretar casas de construção e igrejas como serviços essenciais”, comenta. “Já confundimos a sociedade sobre essas medidas. E as medidas implantadas foram moderadas e incoerentes com a gravidade da pandemia.”
Em junho, o Brasil era o segundo país com o maior número de mortes. E por que aconteceu isso? Entender isso, segundo Lorena, é essencial para compreender o momento atual da pandemia. É preciso olhar para a experiência de 2020. Se os gestores públicos não reagem quando há um aumento exponencial de casos e óbitos, se acham que apenas medidas moderadas irão conter a pandemia, os dados de 2020 mostram exatamente o oposto. A maioria dos Estados não reagiu ou flexibilizou as medidas restritivas e, por causa disso, o que vemos é um número elevado de óbitos e casos que persiste ao longo das semanas, em vez de diminuírem.
Recomendações
Para Lorena Barberia, é preciso usar a experiência de 2020 para pensar 2021. Tanto no que diz respeito ao distanciamento social quanto na consciência de que medidas moderadas não ajudam a evitar casos e óbitos, e que, portanto, medidas mais rígidas são necessárias.
Outro problema é a falta de testagem, pois os surtos poderiam ser detectados mais cedo, identificando as regiões de ocorrência e proporcionando respostas mais focalizadas. “O Brasil tem capacidade e infraestrutura para isso, mas precisa investir e aumentar a intensidade e volume do esforço”, diz ela.
Também é necessário investir em vigilância epidemiológica. Quando uma pessoa testa positivo para covid, é preciso que ela faça isolamento restrito, além de avisar todos os contatos que estão com suspeita de infecção. “Sem vigilância junto com a testagem, nós não vamos conseguir controlar a pandemia, mesmo num cenário de vacinação”, alerta a professora.
Por fim, ela destaca a necessidade de coordenação das ações. Se não tivermos medidas coordenadas e coerentes, com respostas rápidas diante da piora da pandemia, isso vai nos colocar numa situação muito mais preocupante, com um número casos e mortes catastróficos, além do colapso dos sistemas de saúde. “Atualmente, com um número altíssimo de casos e mortes, estamos com medidas semelhantes às de março de 2020”, lamenta. [1]
[1] Texto de Luiza Caires e Valéria Dias.
Como citar este texto: Jornal da USP. Coronavírus: avanço da P.1 no território repete 2020, com muito mais casos e mortes. Texto de Luiza Caires e Valéria Dias. Saense. https://saense.com.br/2021/04/coronavirus-avanco-da-p-1-no-territorio-repete-2020-com-muito-mais-casos-e-mortes/. Publicado em 16 de abril (2021).