UFRGS
09/04/2021

Pellets de plástico PET sobre os quais cresceu o fungo Phomopsis sp. – Foto: Rosiane Matias/Divulgação

O celular ou computador que você está usando agora, a roupa que está vestindo, a embalagem da tele-entrega de comida que pediu ontem, a garrafa em que toma água todos os dias, o painel do carro que usa para se locomover… Não é difícil encontrar exemplos de coisas comuns do nosso dia a dia que têm algum tipo de plástico na composição. Pela praticidade e baixo custo, esse material está cada vez mais presente na vida da população. No entanto, esse uso massivo também gera enormes problemas ambientais e de saúde. Uma das formas de reduzir o impacto do plástico no meio ambiente é a degradação, mas esse ainda é um processo caro e de difícil realização.

Pensando nisso, pesquisadores da UFRGS e da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) estão estudando como fungos encontrados na casca-preciosa (Aniba canelilla), uma planta encontrada na Amazônia, podem atuar nesse processo. Os resultados inéditos apontaram que cinco fungos que vivem no interior da casca-preciosa conseguiram crescer sobre pellets (pequenos fragmentos) de plástico PET – e um deles ainda cresceu sobre outros tipos de polímero – o que leva a crer que os micro-organismos são capazes de degradar esses materiais.

Um dos principais diferenciais do trabalho é a utilização de fungos inteiros e não de enzimas produzidas em laboratório, explica Rosiane Matias, a doutoranda em Biotecnologia e Biodiversidade da UEA que está desenvolvendo o estudo. “Nós queríamos colocar esses micro-organismos em contato com os polímeros para observar quais enzimas eram produzidas e como ocorria essa degradação, até porque a ação sobre o plástico pode ser provocada por uma enzima apenas, ou por várias delas”, esclarece.

Pesquisa em parceria

A pesquisa é realizada em conjunto entre as duas universidades, unindo a expertise de cada uma delas. Na UEA, o estudo é coordenado pela professora Patrícia Albuquerque, pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade e Biotecnologia que trabalha com enzimas e fungos de plantas amazônicas; na UFRGS, a coordenação é de Rosane Soares, pesquisadora dos programas de pós-graduação em Ciência dos Materiais (PGCIMAT) e Química (PPGQ), com atuação na área de polímeros e biomateriais. A colaboração também inclui o laboratório de Biotecnologia do Instituto de Ciência e Tecnologia de Alimentos (ICTA) da UFRGS, sob coordenação do professor Marco Ayub.

A primeira fase da pesquisa foi realizada na Reserva Florestal Adolpho Ducke, em Manaus (AM), onde foi feita a coleta de galhos finos e folhas da casca-preciosa, uma árvore de porte médio, aromática, presente no Norte, Centro-Oeste e Sudeste do país e conhecida pelas propriedades medicinais. A partir de diversas lavagens do tecido vegetal e incubação em estufas, realizadas na UEA, os pesquisadores isolaram inicialmente 492 fungos endofíticos, isto é, que vivem no interior da planta. Desses, 200 foram perdidos por contaminações e por questões de metabolismo de alguns fungos, que sobrevivem apenas dentro do tecido vegetal. Restaram 292, que passaram por uma triagem enzimática, para verificar quais micro-organismos produziam determinadas enzimas. Por fim, sobraram 36 fungos, que foram submetidos a uma técnica chamada fermentação submersa para a produção de lipase, uma enzima conhecida por facilitar a degradação de plásticos.

O trabalho seguiu no Instituto de Química e no ICTA da UFRGS, onde os cientistas colocaram os fungos em contato com pellets de PET, para observar se e como ocorria a degradação. Cinco desses micro-organismos (Colletotrichum siamense, Clonostachys rosea f. catenulata, Endomelanconiopsis endophytica, Pestalotiopsis sp. e Phomopsis sp.) produziram a lipase e outras enzimas e utilizaram o plástico como fonte de carbono, isto é, energia. Os primeiros resultados apontam que o Pestalotiopsis sp. também pode ser eficaz na degradação de outros tipos de polímero (polietileno, polipropileno, poliuretano e poliamida 6). Os outros quatro micro-organismos nunca haviam sido descritos na literatura científica como potenciais degradadores de plástico, ressaltam as pesquisadoras.

As contribuições da pesquisa e os desafios para o futuro

A cientista da UFRGS Rosane Soares faz uma analogia para explicar como funciona o processo de degradação: “A cadeia do polímero é como se fosse um colar de pérolas bem longo. Quando degradamos o polímero, é como se quebrássemos o colar em várias partes – algumas com dez pérolas, outras com cinco, outras com três. Degradar é fazer essa ‘quebra do colar de pérolas’, ou seja, quebrar as ligações”.

Como o carbono é extremamente necessário para a sobrevivência do fungo, quando o micro-organismo “percebe” que o polímero é a única fonte desse elemento, começa a sintetizar enzimas que degradam o plástico e provocam a liberação do carbono. O fungo bioassimila o carbono, ou seja, usa como fonte de energia, cada vez sintetizando mais enzimas e promovendo a degradação do polímero. Seguindo na analogia usada pela coorientadora, Rosiane sintetiza: “Quando esse ‘pedacinho’ do colar fica com apenas uma pérola, o fungo é capaz de absorver aquilo e utilizar como fonte de energia”.

A maioria das pesquisas sobre degradação de plásticos utilizam enzimas sintetizadas em laboratório com técnicas de engenharia genética, que precisam de uma infraestrutura diferenciada e têm custo elevado. Uma das vantagens de usar o fungo inteiro é, justamente, o barateamento do processo. Rosane acrescenta que o desafio na investigação do processo de degradação é conhecer o mecanismo pelo qual ele ocorre – e, também, os fragmentos gerados a partir desse contato com o fungo. No entanto, essa análise está temporariamente paralisada devido à pandemia. “Embora tenhamos fortes indícios e hipóteses sobre onde se dá inicialmente essa quebra, ainda não sabemos o tempo necessário para que isso ocorra, nem de que tamanho serão esses fragmentos”, explica Rosane. Estudar esses “pedaços do colar de pérolas” que resultam do contato com o fungo é a última etapa da pesquisa de doutorado de Rosiane, que deve ser realizada no Instituto de Química da UFRGS.

Outro objetivo é realizar ensaios de biodegradação com uso de garrafas, filmes e pellets de PET, para realizar uma comparação entre esses três formatos. A doutoranda ressalta que a maioria dos estudos nessa área utiliza uma espécie “amorfa” de PET, que é mais suscetível à degradação do que o polímero utilizado na confecção das garrafas. “As garrafas têm uma espécie de ‘barreira de aditivos’ para que a bebida no interior não seja contaminada pelo plástico, mas essa barreira também dificulta a degradação,” ressalta. Como os pellets e os filmes têm menos aditivos, a ideia é comparar se a eficácia da biodegradação desses materiais é parecida com a das garrafas.

Além de apresentar possibilidades de degradação mais acessíveis, a pesquisa identificou duas novas espécies de fungos para os gêneros Phomopsis e Asordaria sp., observadas pela primeira vez na casca-preciosa, que ainda serão melhor investigadas pelo grupo. O estudo também contribuiu para a Central de Coleções Microbiológicas da UEA: foram depositados nesse banco 292 fungos endofíticos e 140 fungos epifíticos (isolados da superfície dos tecidos vegetais analisados) da Aniba canelilla, o que pode beneficiar futuros estudos do grupo de pesquisa Química Aplicada à Tecnologia da UEA.

Plástico: um material útil, mas também um problema

Onde quer que você esteja ao ler esse texto, se olhar ao seu redor, verá muitos objetos que contêm algum tipo de plástico na sua composição (provavelmente, quase tudo que esteja perto de você). O uso do plástico hoje é massivo nas nossas vidas: dos equipamentos que utilizamos às roupas que vestimos, passando por embalagens e brinquedos. Essa onipresença dos polímeros vem da segunda metade do século XX, quando se descobriu a possibilidade de fabricar policloreto de vinila (PVC) a partir de resíduos da indústria petroquímica. De lá pra cá, outros tipos de plásticos foram criados pela indústria para atender às mais diversas demandas. Pelo fato de ser durável, o material se tornou muito útil em diversas situações, mas o Atlas do Plástico 2020 da Fundação Heinrich Böll aponta que quase metade de todos os produtos plásticos acabam como resíduos em menos de um mês e que apenas 9% é reciclado.

A enorme produção e o rápido descarte geram inúmeros problemas: a presença de plástico nos oceanos leva peixes e outros animais marinhos a confundirem o material com comida, o que pode causar asfixia, por exemplo. “Como os plásticos são importantes vetores de metais pesados, a exposição dos animais a substâncias tóxicas também pode levar a deformidades e esterilidade nas espécies”, afirma Rosiane.

As pesquisadoras da UFRGS e da UEA acrescentam que a saúde humana também é impactada, já que nos alimentamos de espécies de peixes contaminadas por microplásticos. Um estudo do Painel de Alto Nível para uma Economia do Mar Sustentável aponta a dificuldade de se precisar o impacto dos plásticos na saúde humana, em função da grande diversidade de polímeros e de aditivos. No entanto, os cientistas que assinam esse estudo ressaltam que a ingestão e a inalação de resíduos plásticos pode causar inflamação e irritação crônicas, além de alterações endócrinas. Impactos sociais e econômicos também estão atrelados ao uso excessivo e ao descarte inadequado do plástico, conforme um relatório da World Wide Fund for Nature (WWF).

Com a pandemia de covid-19, esse problema ainda pode ter aumentado. Para se proteger do SARS-CoV-2, profissionais de saúde utilizam mais equipamentos de proteção individual (EPIs) descartáveis, e vários países começaram a exigir o uso de máscaras (de tecido ou descartáveis) pela população em geral como medida de prevenção. Um estudo publicado em junho de 2020 por pesquisadores da Universidade de Aveiro (Portugal) e Dalhousie University (Canadá) estima que, com a pandemia, o consumo mundial atinge 129 bilhões de máscaras faciais e 65 bilhões de luvas por mês. A partir de dados da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), o Atlas do Plástico da Fundação Böll estima que a geração média de lixo hospitalar por paciente internado para tratamento de covid-19 chega a 7,5 quilos por dia.

São diferentes fontes e autores que apontam os mesmos problemas: o uso massivo e o descarte inadequado. “As empresas precisam diminuir a produção do plástico, e o consumo é exacerbado, pois existe muito polímero disponível”, afirma Rosane. Com a possibilidade de se utilizar um fungo de uma planta amazônica, a casca-preciosa, para degradar polímeros, a pesquisa da UFRGS e da UEA traz um enorme impacto tecnológico. A cientista destaca que essa descoberta pode chegar à indústria e fazer a diferença nesse cenário: “Cabe a nós, pesquisadores, mostrar a essas empresas que existem formas de minimizar o impacto ambiental”. “O valor do estudo fora da Universidade é enorme: além da questão ambiental, se utilizassem essa tecnologia, as empresas teriam um produto de grande valor agregado”, conclui. [1]

[1] Texto de Mirian Socal Barradas.

Como citar esta notícia: UFRGS. Pesquisa aponta que fungos da casca-preciosa podem ser capazes de degradar plástico. Texto de Mirian Socal Barradas. Saense. https://saense.com.br/2021/04/pesquisa-aponta-que-fungos-da-casca-preciosa-podem-ser-capazes-de-degradar-plastico/. Publicado em 09 de abril (2021).

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