Fiocruz
25/05/2021

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A pandemia da Covid-19 escancarou a vulnerabilidade do campo da saúde e trouxe extrema valorização da ciência e da tecnologia. O estudo Vulnerabilidades das indústrias nacionais de medicamentos e produtos biotecnológicos no contexto da pandemia de Covid-19, de Daniela Rangel Affonso Fernandes, do Instituto de Tecnologia em Fármacos; e Carlos Augusto Grabois Gadelha e Jose Manuel Santos de Varge Maldonado, da ENSP, observa que, no Brasil, os maiores desafios são o controle do déficit da balança comercial e a dificuldade de acesso a medicamentos. “A forte dependência externa de insumos e produtos para a saúde é um dos fatores negativos do país no enfrentamento da emergência sanitária mundial da Covid-19”.

Segundo o estudo, a indústria farmacêutica nacional, apesar de ter se expandido a partir dos anos 2000, apoiada pelas políticas de inovação e industrial, demonstra ainda grande fragilidade tecnológica e dependência externa de insumos e produtos, o que, em parte, é resultado dos baixos investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D). Nesse contexto, especialistas da área econômica da saúde sugerem medidas para o enfrentamento dessas questões, tais como, (a) a necessidade de reconstrução da capacidade de coordenação do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), com a recriação do Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde (GECIS); (b) o uso do poder de compra do Estado para ampliar o desenvolvimento da indústria e da produção em saúde; (c) o fortalecimento da articulação do SUS com o sistema produtivo e tecnológico; (d) uma discussão democrática entre governo e sociedade. Discussão essa que proporcionaria a definição de trajetórias tecnológicas viáveis e adequadas ao perfil de demanda da sociedade, para que sejam, a um só tempo, economicamente competitivas e socialmente inclusivas, garantindo assim o acesso universal à saúde, disseram os autores.

O estudo destacou a essencialidade do diálogo entre a vulnerabilidade dos diversos campos, em especial da saúde e da economia política, para a incorporação de uma visão sistêmica que, no curto prazo, crie condições para redução da vulnerabilidade no que tange ao enfrentamento da pandemia e, no longo prazo, equacione um projeto de desenvolvimento para o país, aliando equidade no acesso aos serviços e produtos de saúde a uma maior soberania, progresso tecnológico e ampliação dos direitos sociais.

Os autores ressaltaram, porém, que, apesar de nenhum Estado estar totalmente preparado para uma crise sanitária dessa magnitude, alguns sistemas de saúde podem apresentar maior capacidade de resposta e de proteção às condições de saúde de sua população. “No Brasil, apesar da existência do SUS, sem o qual as repercussões da pandemia seriam muito mais danosas, suas fragilidades estruturais e a forte dependência externa de produtos para a saúde são fatores negativos para o enfrentamento da pandemia”.

Nessa perspectiva, de acordo com o artigo, a saúde passa a ser vista como um espaço econômico e produtivo, que vai além dos serviços assistenciais, tendo a inovação como um dos elementos centrais para seu desenvolvimento.

O CEIS, composto por um subsistema de serviços e dois subsistemas industriais – de mecânica, eletrônica e de materiais e de base química e biotecnológica, sendo que nesse último, a indústria farmacêutica, que possui um mercado altamente concentrado, destaca-se por seu alto grau inovativo, apresentando maior peso industrial relativo. Sua dinâmica competitiva é baseada na permanente geração e difusão de inovações, o que nem sempre ocorre na velocidade necessária para atendimento das demandas, como é o caso a que estamos assistindo nessa pandemia de Covid-19. “Essa situação ainda se agrava quando não existe, no país, a produção de itens essenciais, ou existe em quantidade insuficiente, como insumos, reagentes, kits diagnósticos e equipamentos, tornando a saúde ainda mais vulnerável e dependente de importações”.

Dentre as vulnerabilidades estudadas pela pesquisa, estão:

Vulnerabilidade em saúde

A vulnerabilidade, em relação à exposição de determinadas populações ao risco de doenças, pode ser ligada a três dimensões: a individual, a social e a programática. A dimensão individual considera o conhecimento das pessoas acerca do agravo e dos comportamentos que as tornam suscetíveis ao agravo. A dimensão social integra o perfil da população, incluindo acesso à informação, gastos com serviços sociais e de saúde, o ciclo de vida, a mobilidade e a identidade social, a iniquidade, entre outros. A dimensão programática diz respeito tanto ao acesso aos serviços de saúde quanto à organização e ações para prevenção e controle do agravo, assim como os recursos sociais existentes na área de abrangência do serviço de saúde. Essa dimensão relaciona-se à forma como os serviços de saúde lidam para reduzir contextos de vulnerabilidade por meio do saber acumulado nas instituições e políticas.

Vulnerabilidade econômica e tecnológica

O significativo atraso tecnológico dos países da América Latina e Caribe, incluindo o Brasil, aumenta o grau de vulnerabilidade externa e torna-se ainda maior quando comparado a outras regiões do mundo, o que pode ser verificado pelos indicadores de gastos em P&D em percentagem do Produto Interno Bruto (PIB) e patentes por milhão de habitantes, por exemplo.

Identifica-se, como vulnerabilidade econômica na área da saúde, a fragilidade do sistema industrial e empresarial brasileiro, visto a baixa capacidade de inovação do país e o descolamento de sua base científica e tecnológica das necessidades do sistema de saúde. Isso porque o CEIS, por sua perspectiva sistêmica, relaciona-se com o Sistema Nacional de Inovação em Saúde (SNIS) e tem, como elemento central, a atividade produtiva.

Vulnerabilidades do subsistema de base química e biotecnológica

O subsistema de base química e biotecnológica engloba as indústrias de fármacos, medicamentos, vacinas, hemoderivados e reagentes para diagnóstico. Junto com o subsistema de base mecânica, eletrônica e de materiais (indústria de equipamentos e materiais médico-hospitalares e odontológicos) e o de serviços (produção hospitalar, laboratorial e serviços de diagnóstico e tratamento), constitui o CEIS. Esse subsistema, intensivo em Ciência, Tecnologia & Inovação (CT&I), impacta substancialmente os serviços para o SUS, a exemplo dos programas de imunização, tratamento do câncer, aids, entre outros.

A indústria farmacêutica caracteriza-se por ser um oligopólio diferenciado, baseado nas ciências, em que a inovação é fator essencial à sua dinâmica competitiva, gerando ampla necessidade de investimentos e de apoio aos riscos inerentes aos seus processos de P&D. Nesse sentido, destaca-se o papel indutor do Estado para a redução da vulnerabilidade e o fortalecimento do CEIS.

Para o estudo, foram identificadas e analisadas as seguintes vulnerabilidades do subsistema:

(1) Desarticulação entre as políticas de saúde, industriais e de CT&I. Essa dissociação tornou mais vulnerável o avanço da política nacional de saúde e acarretou uma maior dependência de importações, conforme observado, de modo avassalador, durante a pandemia.

(2) Baixa capacitação do Sistema de Inovação em Saúde – a interface entre a saúde e sua base produtiva e inovativa envolve uma complexa teia de instituições, entre elas, o Estado, agências reguladoras, de Ciência e Tecnologia, serviços de saúde e segmentos produtivos distintos. Esses agentes, que atuam com lógicas específicas e representam tanto interesses privados como públicos, formam o SNIS.

(3) Baixo investimento em saúde pública – conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o gasto em saúde pública no país tem estado em torno de 3,9% do PIB, o que praticamente corresponde à metade do gasto médio de países selecionados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que é de 6,5%, e percentual bem abaixo do que é recomendado pela OPAS para redução das desigualdades e proteção financeira aos sistemas de cobertura universal, que tem como meta ser de 6% do PIB.

(4) O perfil da indústria farmacêutica local – No Brasil, a indústria farmacêutica possui forte predomínio de empresas multinacionais, focadas essencialmente na produção e comercialização de medicamentos, não se observando processos de integração, salvo raras exceções, para a área de fármacos e atividades de P&D.

As empresas nacionais existentes, em geral, são pouco capitalizadas, com baixa capacidade de inovação e com estruturas de gestão familiar. Outra característica da indústria farmacêutica nacional é a existência de uma rede de instituições tecnológicas públicas, voltadas para a produção e o desenvolvimento de medicamentos, vacinas, soros, entre outros produtos de saúde de atendimento exclusivo das demandas e necessidades do SUS. Atualmente, existem 18 laboratórios farmacêuticos que compõem a Associação dos Laboratórios Farmacêuticos Oficiais do Brasil (ALFOB).

Apesar das fragilidades apontadas e desafios adicionais trazidos pela pandemia, o Instituto Tecnológico em Fármacos (Far-Manguinhos/Fiocruz) tem colaborado com diversos ensaios clínicos para teste de eficácia de medicamentos que já são usados para outras enfermidades, tais como a cloroquina, usada no tratamento da malária, e o oseltamivir, no da gripe Influenza, por meio do fornecimento de medicamentos e placebos. Quanto à vacina, pode-se citar as ações do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz), do Instituto Butantan e do Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar). Esses três laboratórios oficiais, mediante parcerias, têm atuado no desenvolvimento e na produção de vacinas para a COVID-19, além de kits diagnósticos e desenvolvimento de soros.

(5) Dependência de insumos farmacêuticos ativos (IFAs) – o país não é historicamente um produtor de matérias-primas, dependendo da importação de insumos farmacêuticos ativos para a fabricação de seus medicamentos. A relevância do tema se justifica pela alta representatividade do insumo farmacêutico no custo total do medicamento.

Com a pandemia, o risco de falta de insumos ou de elevação de seus preços, devido ao aumento da demanda e das ações protecionistas dos países detentores das tecnologias ligadas à Covid-19, revela a grande vulnerabilidade sanitária e econômica a que a saúde está exposta.

(6) Oscilações da política cambial – a taxa de câmbio é um preço macroeconômico essencial para o desenvolvimento produtivo e industrial de um país. A desvalorização do câmbio, como vem ocorrendo nos últimos meses, traz benefícios imediatos para a produção nacional, mas também gera aumentos insustentáveis no custo dos insumos importados, afetando a indústria que depende de tecnologia e matéria-prima do exterior, como a indústria farmacêutica nacional. A situação de vulnerabilidade e dependência estrutural recorrente leva a uma pressão dos gastos em saúde frente às oscilações do mercado internacional, como tem ocorrido na pandemia da Covid-19.

Apesar do aumento da produção nacional da formulação de medicamentos nos últimos anos, em especial na indústria de genéricos, o país ainda importa muito mais produtos de base química e biotecnológica (medicamentos, fármacos, hemoderivados, vacinas e diagnóstico) do que exporta, acumulando sucessivos déficits na balança comercial.

(7) Patentes farmacêuticas – a vulnerabilidade nesse ponto tem relação com a baixa taxa de inovação da indústria farmacêutica, aliada à demora no exame de patentes (backlog) pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e Anvisa.

No INPI, não há examinadores e infraestrutura suficientes para análise e tramitação dos processos administrativos, e o conflito de competência técnica entre o INPI e a Anvisa levou, durante muito tempo, a uma duplicidade na análise, o que só foi superado com a assinatura da Portaria Conjunta nº 1, de 12 de abril de 2017.

No Brasil, desde 1997, quando a Lei de Propriedade Industrial – LPI (Lei nº 9.279/1996) entrou em vigor e estendeu o direito de exclusividade aos medicamentos e processos farmacêuticos, controvérsias foram geradas em torno das questões comerciais e éticas relativas ao seu acesso. A questão central da discussão está no entendimento de que essa política beneficia interesses de empresas estrangeiras e na dificuldade de conciliar a equidade no acesso aos medicamentos e a sustentabilidade do SUS com a viabilização de acordos comerciais justos, que compensem os gastos financeiros, mas que sejam favoráveis ao desenvolvimento nacional. [2]

[1] Foto: CSP / Fiocruz.

[2] Fonte: Artigo do CSP / Fiocruz.

Como citar esta notícia: Fiocruz. Estudo aborda vulnerabilidades das indústrias nacionais de medicamentos e produtos biotecnológicos. Saense. https://saense.com.br/2021/05/estudo-aborda-vulnerabilidades-das-industrias-nacionais-de-medicamentos-e-produtos-biotecnologicos/. Publicado em 25 de maio (2021).

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