Fiocruz
13/05/2021

Raquel Karajá [1]

Como acontece com boa parte da população que vive nos grandes centros urbanos da região Norte, a família de Raquel é de migrantes. Descendente de uma família de baianos, ela mesma nasceu em Itamaraju, no interior da Bahia, de onde vieram o avô Jesuíno e a avó Joventina, nos anos 1970, para tentar a vida na cidade de Araguaína — que naquele momento pertencia ao estado de Goiás, e hoje é a segunda maior cidade de Tocantins. Também nascida na cidade natal dos avós, na Bahia, a menina mudou-se com a mãe ainda pequena para a mesma cidade, onde ela vive até hoje com o marido com quem casou há três anos, o indígena Adriano Karajá.

Aos 24 anos, formada em Letras pela Universidade Federal do Tocantins (UFT), ela está próxima de concluir o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL), onde pesquisa fonética e fonologia das línguas indígenas, mais especificamente o idioma da etnia Krahô, com a qual teve contato ainda na graduação, quando fez parte do programa de iniciação científica no Laboratório de Línguas Indígenas (LALI).

Nesta conversa sobre invisibilidade com a Radis, Raquel fala sobre aspectos desconhecidos da vida em Araguaína, reflete sobre a identidade em construção de Tocantins, o estado mais jovem do Brasil, fala da contribuição dos migrantes e dos vizinhos para esta identidade, e alerta para as consequências da invisibilidade para a contribuição do conhecimento científico produzido na região. “Fico pensando até onde minha pesquisa vai chegar, que contribuição vai dar para o meu país”, disse, preocupada com o alcance limitado que a pesquisa possa ter. E chama atenção, a partir de sua experiência pessoal, para o perigo de se desvalorizar aquilo que não se conhece. “O que você não conhece, você imprime julgamentos”, avalia.

Como você veio parar em Araguaína?

Minha família é toda baiana, tanto por parte de pai quanto por parte de mãe. Eu também nasci lá. Na década de 1970, na época da expansão da região o Norte, o meu avô, que é agricultor, veio de Itamaraju para trabalhar em fazenda, e trouxe minha mãe ainda muito pequena. Aqui ainda era Goiás, naquela época. Depois de um tempo, quando minha mãe ficou adulta, ela voltou à Bahia e me teve; depois que nasci, quando eu ainda era pequena, ela voltou para perto do pai e me trouxe. Desde então, nós moramos aqui. Eu cresci aqui.

Você concorda que existe uma invisibilidade sobre o Tocantins no Brasil?

Sim. Tocantins é o estado mais novo da federação. Muitas pessoas não têm uma ideia cultural de Tocantins, como existe, por exemplo, quando se fala da Bahia. Lá tem capoeira, tem candomblé, tem algo que marca o lugar. No Goiás, existem as duplas sertanejas, no Amazonas, tem os rios… Quando se fala do Tocantins, é como se ainda não tivesse, na cabeça das pessoas, uma identidade, fosse simplesmente uma extensão do Goiás, como era há 30 e poucos anos.

Mas você acha que existe essa identidade?

Existe. É uma identidade ainda em construção, mas o que eu percebo é que o Tocantins tem uma identidade e uma tradição indígena muito fortes. Tem um exemplo muito claro que eu percebi depois que comecei a trabalhar com os indígenas. Na mitologia do povo Karajá, presente aqui no estado, existe um mito que conta que eles vieram do fundo do rio Araguaia. Até hoje, todo mês de julho, quando tem a baixa do rio e aparecem os bancos de areia (que a gente chama aqui de praias), os karajás acampam, esperando voltar para o lugar de origem deles, que é o fundo do Araguaia. Essa é uma marca cultural de Tocantins. Todo o mês de julho, quando os rios baixam, as pessoas vão para os rios, vão para a praia e acampam. E de onde veio essa tradição? Quando eu comecei a conviver com o povo indígena Karajá, eu entendi. É algo milenar que os karajás fazem e o tocantinense enraizou, mesmo sem saber por quê.

O que você acha da imagem de Tocantins que aparece na mídia?

Depois da novela “O outro lado do paraíso” [exibida pela Rede Globo de Televisão, entre 2017 e 2018], falou-se muito sobre o Jalapão, que é um parque, uma reserva muito famosa aqui no estado. Mas a maioria dos tocantinenses nunca foi ao Jalapão. Nós até temos uma brincadeira sobre isso. Quando alguém pergunta: “Nossa, você é de onde?” E a gente responde: “Ai, eu sou do Tocantins”, geralmente a pessoa fala: “Nossa, deve ser muito bom aí no Jalapão”. Daí a gente responde: “É, talvez seja”.

E por que não conhece?

É caro fazer turismo no Jalapão. Eu mesma, há quase 17 anos morando aqui no Tocantins, e ninguém da minha família nunca foi ao Jalapão. Os meus amigos de escola, meus amigos de faculdade, que nasceram e cresceram aqui, nunca foram ao Jalapão. Eu me atrevo a dizer que 80% dos tocantinenses nunca foi ao Jalapão. Conhece o Jalapão por televisão também, como a maioria no Brasil.

Que problemas você identifica na sua região que não aparecem na mídia nacional?

Eu acho que a principal é a questão dos fertilizantes, dos agrotóxicos. Aqui próximo tem uma cidade, Campos Lindos, que tem uma plantação de soja muito próxima da reserva indígena Krahô. Já houve contaminação na água que passa dentro da terra indígena, por exemplo. Além da utilização de fertilizante e agrotóxico, muitas vezes as terras indígenas estão sendo espremidas pelo agronegócio, porque desmata tudo ao redor de uma área de proteção, tudo cheio de plantação de soja. Isso acaba prejudicando os animais, trazendo desmatamento. Eu não vejo ninguém falando sobre essa questão.

Quais são as perguntas mais comuns que te fazem quando você diz que é do Tocantins?

“Só tem índio aí?” Depois que eu me casei com um indígena, isso ainda se tornou mais frequente. As pessoas falam que em Tocantins só tem índio de uma forma pejorativa.

E sobre Araguaína, o que o Brasil não conhece?

Acho que aqui é mais o prato típico, que é o chambaril [também conhecido como ossobuco, o prato é um cozido de carne, do corte acima da canela e abaixo do joelho do boi]. É uma comida muito forte, com farinha de puba [uma massa de mandioca fermentada]. Aqui é a sensação. Mas Araguaína tem se desenvolvido, é a segunda maior cidade do Tocantins, só fica atrás da capital, Palmas, e o agronegócio aqui é muito forte, o comércio, a logística também. Pontos turísticos nós temos poucos, mas a gente tem essa cultura de acampar à beira dos rios, como é no Tocantins inteiro.

Quais os reflexos deste desconhecimento?

Isso causa um apagamento. As pessoas falam sobre a gente, mas às vezes não permitem que um tocantinense, ou alguém que mora aqui [fale]. Quando dizem que só tem índio, as pessoas falam como se não tivesse tecnologia, conhecimento científico, como se só existisse nos grandes centros. A minha própria pesquisa, que eu faço no mestrado. Talvez, se eu estivesse em um outro lugar, em um grande centro, minha pesquisa fosse muito mais valorizada, mais conhecida. Aqui, em um estado novo, estudando em uma universidade pública, também nova, eu fico pensando até onde minha pesquisa vai chegar, que contribuição vai dar para o meu país. Porque eu entendo a contribuição que minha pesquisa vai dar para a comunidade indígena krahô.

E qual é?

Manter a língua materna, preservar e entender melhor sua forma e se apropriar disso. O que me conforta é saber que isso serve para eles, para os indígenas, que isso vai ajudá-los de alguma forma. Mas aí eu penso também nas outras pessoas, como seria bom se as outras pessoas pudessem conhecer. Você só respeita aquilo que conhece. O que você não conhece, você imprime julgamentos. Eu poderia contribuir para mudar o olhar, mudar a perspectiva das pessoas com o que eu estudo, com a minha vivência, mas sou impossibilitada pela minha localização geográfica.

O que mudou depois de se casar com um indígena?

Mudou muito a minha perspectiva sobre o que é ser indígena. A gente nunca vai saber o que o outro passa quando é discriminado, até que a gente passar por isso. E vendo a luta do meu marido, a história dele, e lembrando o que eu já ouvi das pessoas falando sobre ele para mim, eu passei a questionar o que passa na cabeça das pessoas. Elas diziam: “O que é que você está fazendo? Vai se casar com um índio? Vai se encher de filhos, vai acabar com a sua vida!” E eu respondia: “Qual é a diferença dele para você? A mesma estrutura fisiológica que você tem, ele também tem, eu não entendo”. Cheguei a ouvir que “índio é gente, mas é gente com gene de bicho”. E aí eu comecei a pensar de que maneira eu posso me preparar, como uma futura mãe de um indígena, para ensinar o meu filho a não se sentir invisibilizado ou apagado pelo comentário preconceituoso das outras pessoas.

Você é de uma família de migrantes. Como você vê a contribuição migrante na formação da identidade tocantinense?

Aqui há muita gente que veio de outros lugares, principalmente do Nordeste. Muitos maranhenses, piauienses, baianos… A gente até brinca, em relação a sotaques, que nós não temos um marcador de sotaque tocantinense, totalmente tocantinense. A gente fala um pouquinho de todos eles. Tocantins faz divisa com muitos estados, Pará, Maranhão, Piauí, Bahia, Mato Grosso, Goiás, que são locais onde existe uma forma de falar muito marcada. Percebo que aqui as pessoas juntaram tudo e fizeram uma coisa só, incorporando elementos linguísticos que são próprios de outras regiões e de outros estados do Brasil.

Mas você também percebe a incorporação de contribuições das línguas indígenas?

Sim, existem muitas palavras e maneiras de denominar coisas que são próprias dos indígenas, a exemplo da palavra “curviana”, que é o nome dado pelos indígenas a uma chuva muito forte que dá na praia, no mês de julho. Aqui são seis meses de muita seca; depois do mês de maio, é muito quente, tipo 40, 42, 43 graus. E em julho não chove, é quente e seco, época que vai todo mundo para praia, que o rio baixa. Mas tem um determinado dia no mês que dá essa chuva. As pessoas também usam nomes indígenas para os peixes, para algumas comidas. [2]

[1] Foto: Acervo pessoal.

[2] Texto de Adriano de Lavor.

Como citar esta notícia: Fiocruz. “Você só respeita aquilo que conhece”.  Texto de Adriano de Lavor. Saense. https://saense.com.br/2021/05/voce-so-respeita-aquilo-que-conhece/. Publicado em 13 de maio (2021).

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