Fiocruz
22/06/2021

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Numa sexta-feira de maio, duas mulheres bateram na porta da Associação de Moradores do Morro Nossa Senhora da Guia, mais conhecido como Morro do Gambá, Zona Norte do Rio de Janeiro. Tinham fome. Uma delas, avó de duas crianças, alimentava a esperança de voltar para casa levando arroz e feijão, com sorte, um pouco de óleo. Mas naquele dia, não haveria arroz nem feijão nem óleo. As cestas básicas que a entidade eventualmente recebe para distribuir entre as famílias da comunidade estavam em falta. Mais tarde, Adailton Silva, atual presidente da associação, comentaria, durante uma entrevista à Radis por telefone: “A gente fica triste, comovido e atordoado. A situação é muito complicada. As pessoas estão passando fome”.

Adailton constatava na prática o que as pesquisas e estatísticas denunciam. O Inquérito Nacional concluído no final de 2020 pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan) identificou que mais da metade da população brasileira vive algum grau de insegurança alimentar — quando alguém não tem acesso pleno e permanente a alimentos, uma sensação que vai do medo de não ter o que comer à fome de fato. Significa dizer que hoje, em meio à pandemia de covid-19, 116,8 milhões de pessoas no Brasil encontram-se nessa situação. Mais recentemente, um estudo coordenado por cientistas do grupo “Alimentos para a Justiça”, divulgado em abril e que também mediu os níveis de insegurança alimentar no país, revelou um número ainda mais alto: 125,6 milhões de brasileiros não comeram em quantidade e qualidade ideais desde a chegada do novo coronavírus.

Não existe um só dia em que Adailton não veja de perto a cara da fome. O presidente da associação de moradores ajuda a distribuir as cestas com alimentos e materiais de higiene que recebe prioritariamente da campanha “Lins Solidário” — organizada nas redes sociais pelo coletivo A Voz do Lins de Vasconcelos, que tem levado apoio aos moradores do complexo de 13 favelas da região. “As pessoas estão desempregadas. Às vezes até trabalham, mas com o preço das coisas, não dá para sobreviver. Vejo famílias em circunstâncias insalubres. Mães com cinco filhos que não têm o que comer”, lamenta. O próprio Adailton já foi beneficiado pela campanha. No ano passado, teve covid. “Mais de 40 dias debilitado, sem condições de me locomover ou exercer qualquer trabalho. Foi um momento muito difícil da minha vida”.

Casado e pai de dois filhos, Adailton é educador social — no Morro do Gambá, ele mantém ainda o projeto Guerreiros da Guia, com aulas de percussão, capoeira, jiu-jitsu e uma banda de samba-reggae. Antes da pandemia, trabalhava como vigia de obras. “Mas pararam as obras e fiquei sem emprego”. Passou a se virar como produtor, montando som e telão, piscina de bolas e pula-pulas em festinhas infantis. “Mas os eventos também rarearam porque esse não é o melhor momento para acontecerem”, reconhece. Tem feito malabarismos para honrar os boletos. “Tudo muito na ponta do lápis. Paguei uma conta de luz na semana passada e já estou com uma vencida e a outra por vencer”.

Como sabe que há famílias em condições muito mais assustadoras que a sua, naquela manhã, diante das duas mulheres, Adailton pediu licença e desceu em direção ao sacolão — mercado local de frutas e verduras. Ao responsável, perguntou se o rapaz poderia doar algo para as senhoras. Saiu de lá com duas bolsas de legumes. “O moço do sacolão ajuda sempre que possível. Mas essa situação é insustentável”, afirma, como quem sabe que tudo o que fizerem para minimizar a fome é apenas um paliativo.

Tem sido assim desde o início da pandemia. Mas a pandemia, Adailton faz questão de ressaltar, apenas agravou algo que muitos brasileiros já vinham sentindo no estômago mesmo antes da chegada da covid. Se em 2014 3,6% dos brasileiros estavam em situação de insegurança alimentar grave — o que fez com que o Brasil deixasse o Mapa da Fome pela primeira vez na história —, já em 2020, apenas seis anos depois, o país voltou a figurar no relatório produzido pelas Nações Unidas. Hoje, segundo a pesquisa da Rede Penssan, são 19,1 milhões passando fome — o número corresponde praticamente à população da Grande São Paulo e equivale a 9% dos brasileiros. Confirmando os dados do Inquérito, uma outra pesquisa divulgada pelo Datafolha em abril apontou que, nos últimos meses, faltou comida para um em cada quatro brasileiros.

Os resultados são alarmantes, mas não surpreendem aqueles que há tempos acompanham o enfrentamento à insegurança alimentar no Brasil. Para Francisco Menezes, analista de Programas da ActionAid (organização internacional de combate à pobreza), dizer que “a fome voltou com a pandemia” e ainda que isso é culpa da crise econômica — como vez por outra se ouve na mídia — são, na melhor das hipóteses, meias verdades. “Está claro que a necessidade de isolamento na pandemia levou a um aguçamento dessa situação, mas a gente não pode desconhecer aquilo que foi construído antes”, reforça. “Ou melhor, o que foi destruído antes”. De acordo com o economista, o desmantelamento das políticas que garantiam segurança alimentar já eram sentidas desde o governo de Michel Temer.

Para Menezes, o grande problema é que o combate à fome no Brasil deixou de ser uma prioridade. “Mais do que isso, foram tomadas medidas que propiciaram uma reversão da situação que tivemos”. Ele considera que foram destruídos programas de extrema importância, enquanto outros deveriam ser fortalecidos justamente em um momento em que a pobreza crescia no país. “O que se consolidou, na verdade, foi um sistema de desproteção social”. Entre as medidas que contribuem para o cenário atual, Menezes elenca a Emenda Constitucional nº 95, do Teto de Gastos, e a Reforma Trabalhista, que gerou precarização do trabalho. Ainda segundo o economista, o Brasil respondeu à crise econômica com uma concepção duplamente equivocada: por um lado, garantindo a preservação dos ganhos do capital financeiro, e por outro, cobrando a fatura dos mais pobres. “Hoje vemos o ingresso de camadas da população na pobreza e na extrema pobreza que simplesmente perderam a sua fonte de renda da noite para o dia”, enfatiza. [Leia mais na página 18 e entrevista completa no site da Radis]

MEDO E SOLIDARIEDADE

Para o geógrafo e médico Josué de Castro, a fome é um flagelo fabricado pelos homens contra outros homens. Essa é uma questão de política social e não de escassez de alimentos ou de fenômenos naturais, denunciou o pensador brasileiro em seu Inquérito sobre as Condições de Vida das Classes Operárias no Recife, publicado há quase um século.

Em outra definição precisa sobre as raízes da fome, Francisco Menezes relaciona esse flagelo à dificuldade de acesso — “Seja por aqueles que não têm poder aquisitivo para garantir na mesa o mínimo de alimentos por conta de uma situação de pobreza ou extrema pobreza, seja por aqueles que antes tinham condições de produzir para sua própria alimentação, de sua família ou comunidade e vão perdendo essa capacidade”, pontua. Francisco cita a falta de incentivo à agricultura familiar — com o desmonte do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) — ou ainda as tentativas de desfigurar o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e o fim do Programa Cisternas do Semiárido como medidas que contribuíram para o aumento da fome no país.

Maria do Socorro Farias é simplesmente Socorro ou Help, na comunidade São Miguel, em Fortaleza, onde mora desde os 10 anos de idade — hoje, tem 51. Com uma trajetória de militância em defesa de direitos básicos, viu as políticas públicas de segurança alimentar e de proteção social encolherem. Ela assistiu ao nascimento dos programas Fome Zero e Bolsa Família que, apesar das críticas, tornaram-se referência na transferência de renda. Também testemunhou a saída — e depois o retorno — do Brasil ao Mapa da Fome. Viu o quilo de arroz chegar a assustadores 7 reais — o botijão de gás, a 100 reais. E observou com atenção a volta das campanhas de arrecadação de alimentos para famílias vulneráveis, sinalizando que a fome deixava de ser um fantasma para virar a mais dura realidade em sua comunidade, já castigada pela violência e falta de saneamento, agora também pelas consequências da pandemia.

Desde abril de 2020, Socorro atua como agente territorial fazendo a ponte entre os organizadores de uma campanha de doação e os moradores do São Miguel — “Ser Ponte”, a propósito, é justamente o título dessa iniciativa de distribuição direta de renda para pessoas em situação de extrema pobreza. Funciona como uma rede de doação que, além de uma renda mínima de 180 reais para cada família, oferece cestas de alimentos e produtos como álcool em gel. A abordagem aos assistidos é feita por agentes territoriais, como Socorro.

À Radis, ela conta que fazer o papel de mediadora no momento do cadastro traz um misto de emoções. “É bom porque sabemos que vamos beneficiar algumas pessoas, mas também é ruim, porque você tem que fazer escolhas e não é fácil nesse contexto em que quase todo mundo está no mesmo barco”, conta. O perfil das beneficiadas segue alguns critérios: são mães, negras e chefes de família desempregadas. Treze mulheres recebem o benefício em sua comunidade. Mas o Ser Ponte já assiste a 210 famílias na capital cearense.

“Veio como uma luz no meio da tempestade”. É como Socorro se refere ao projeto. Tanto que foi difícil, para algumas, acreditar que iriam poder contar com a ajuda. “Muitas me perguntavam: ‘O que a gente tem que fazer para ter direito?’ ‘É preciso pagar algum valor?’” A cada uma dessas mulheres, Socorro respondia que aquela era uma iniciativa de um grupo de pessoas da sociedade civil que entende que nenhum ser humano deve viver com o temor de não ter o que comer. Para isso, mantém uma plataforma na Internet com uma meta de arrecadação mensal de 23 mil reais. A quatro dias para acabar o mês de maio, o projeto havia alcançado 85% desse valor.

“Não era para o país chegar nessa situação. Não era para ser assim. O Brasil precisava continuar com as políticas públicas para reduzir a pobreza”, prossegue Socorro. “Todas essas mulheres gostariam de poder viver e alimentar seus filhos com o seu próprio trabalho. Mas nesse momento elas entendem que não é feio nem vergonhoso aceitar ajuda, e todas estão muito agradecidas por ver o auxílio chegar quando mais precisam”. No São Miguel, a maioria sobrevive catando latinhas em trabalhos informais de reciclagem ou fazendo faxinas, atividades muito afetadas pela pandemia.

Para Elisabetta Recine, nutricionista, professora e coordenadora do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição da Universidade de Brasília (UnB), a relação entre renda e alimentação é direta. “Se a gente está ficando mais pobre, a gente está passando mais fome”, diz em entrevista à Radis, elencando um conjunto de fatores que fizeram com que o Brasil entrasse na pandemia em condições muito ruins, que vão desde a Emenda do Teto de Gastos, que reduziu o orçamento do SUS, até os cortes na assistência social e na educação. “Isso fez com que a maior parte da população tivesse pouca margem de manobra para lidar com o isolamento social e a redução da atividade econômica”, analisa.

Elisabetta foi a última presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), cuja extinção, em 1º janeiro de 2019, em um dos primeiros atos do presidente Jair Bolsonaro, também significou um duro golpe nas políticas públicas da área. “Essa interação com a sociedade civil dava ao governo uma oportunidade de acessar a realidade, o que é algo precioso, porque permite ver as reflexões sobre os caminhos de superação dos desafios a partir da voz de quem está enfrentando o problema e construindo propostas”, comenta. “O Consea tinha esse papel” [Leia mais na página 19].

Segundo a pesquisadora, durante a pandemia, o governo respondeu com muita lentidão, não somente nos aspectos sanitários, mas também no que diz respeito a uma política social que poderia criar uma rede de apoio para a população subsistir. “Todas as conquistas que ocorreram foram baseadas em muito trabalho da sociedade civil”, diz, citando como exemplo a batalha para garantia do auxílio emergencial no valor de 600 reais em 2020 — a proposta do governo era de que o valor fosse de apenas 200 reais.

Em abril, o Congresso acabou aprovando o auxílio mais alto, pago durante cinco meses — mães solteiras que fossem também chefes de família tinham direito ao dobro: 1.200 reais. Mas de setembro a dezembro, os valores foram reduzidos à metade. A situação piorou nos primeiros quatro meses deste ano, quando o auxílio esteve suspenso. Desde abril, as famílias voltaram a contar com a ajuda, dessa vez, com um valor bem inferior que varia de 150 a 375 reais. Agora, o governo anunciou (7/4) que avalia prorrogar o auxílio emergencial até setembro.

“Ser Ponte” e “Lins Solidário”, citados nesta matéria, são apenas duas das inúmeras iniciativas de solidariedade que se aproximam de um contingente enorme de pessoas em condições precárias. [Veja como participar no site da Radis]. “Não ter o que comer é a violação de um direito humano”, fez questão de evidenciar Elisabetta, ao ressaltar a importância das campanhas. Para a nutricionista, ainda que insuficiente, o protagonismo da sociedade civil é fundamental. “São experiências que inclusive vêm dando o recado de que o Estado precisa responder a essas necessidades não só durante a crise”.

Ela também destaca que as iniciativas dos movimentos populares têm uma característica singular. “Diferente da solidariedade das grandes empresas, que aparece nos jornais e TV falando ‘olha como nós somos muito bons porque doamos’, essa é uma solidariedade horizontal, entre iguais”, define. Certa vez, ela escutou: “A gente não faz solidariedade com o que sobra, a gente faz solidariedade com o que tem”. Nesses casos, o alimento vem acompanhado de um diálogo para que as pessoas entendam que não se trata de mera bondade. “É uma maneira de minimizar, numa situação de crise, uma violação profunda que as pessoas estão sofrendo”, constata. “E o que a gente está vivendo hoje é uma violação de todos os direitos: ao trabalho, à saúde, à alimentação, à educação, à moradia”.

A cada início de mês, quando a agente territorial Socorro reúne na sala de casa as mulheres para receber o benefício, ela tenta fazer com que aquele seja um momento de troca e reflexão. Juntas, conversam sobre os perigos da pandemia, o uso da máscara, a carestia dos preços, o aumento da cesta básica — “óleo não dá mais para comprar!”, “arroz, com 20 reais, só 3 quilos!”. Mas também falam sobre a alegria de estarem vivas, dicas para casa, a importância da solidariedade e de ajudar umas às outras.

Dali, invariavelmente, as mulheres seguem para o mercado. É com alimentos que elas gastam tudo o que recebem. Socorro já presenciou também a dúvida entre comprar comida ou remédio. Perguntada sobre como se sente nesse momento, Socorro — que hoje está na faculdade e é mãe de um rapaz — faz uma pausa, demora a responder. Sensibilizada, resume: “É sobre ter esperança e fé. Sempre me emociono muito porque minha situação é difícil, mas não tem comparação com a vida delas. A gente tenta fazer desse um momento de confiança. Um dia de cada vez”.

“AMARELA”

A escritora Carolina Maria de Jesus conhecia a cor da fome. Era amarela, escreveu em seu Quarto de Despejo — Diários de uma Favelada. “Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as árvores, as aves, tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos”. Poético, mas também um soco no estômago, essa é uma maneira de definir o indizível assombro de não ter comida no prato — Carolina de Jesus era uma catadora de papel e passou fome até que seus escritos fossem publicados em livro.

Ao olhar para os indicadores que apontam que metade da população brasileira não está comendo o que devia comer, Elisabetta Recine também faz uma afirmação perturbadora. “É gravíssimo pensar que, entre duas pessoas, a que está do seu lado e você mesma, uma está em risco de não se alimentar”, ilustra. “Não é porque trocam arroz integral por arroz branco. Não é porque trocam a maçã pela banana. É porque não têm nenhum dos dois”.

A catadora Adriana Silva de Abreu é uma dessas pessoas ameaçadas pela proximidade da fome. Aos 35 anos, ela é mãe de dois filhos adolescentes e já avó de um garotinho de um ano — todos dependem dela para se alimentar, para viver. Moradora da comunidade São Miguel, na periferia de Fortaleza, desde o ano passado está vivendo com os 180 reais mensais que lhe chegam pela campanha do “Ser Ponte”. Se antes conseguia entre 10 e 25 reais — em um dia muito bom —, agora nem isso.

“Tudo tem sido muito difícil. Eu trabalho com reciclagem, só que, devido à pandemia, o depósito vive fechado, eu mal estou trabalhando”, disse durante a entrevista, em um dia particularmente difícil, quando também precisava lidar com a falta d´água em sua comunidade. “Se não fosse a doação, a gente estaria passando muita necessidade”. Adriana gosta particularmente do momento da entrega do benefício, quando as mães se reúnem para compartilhar dificuldades e esperanças.

“A primeira coisa que faço depois disso é sair dali direto para o mercantil [como o cearense denomina mercado], comprar comida pra gente comer, incluindo leite, arroz, feijão, açúcar, o grosso. Tudo é comprado com esse dinheiro”. Nem sempre os produtos duram o tempo de um mês. Quando isso acontece e sem contar com ajuda do pai dos seus filhos, recebe doação dos vizinhos. Ou arrisca-se na rua. “Vou para a reciclagem, pego a carrocinha, ando no sol quente o dia todo, chego em casa 11 horas da noite, para conseguir dar o que comer aos meus filhos”, narra.

Vez ou outra, muito raramente, também lhe chega uma cesta da escola dos filhos: ele, com 17; ela, 16, são estudantes da rede pública. “Meu neto de um ano ainda toma leite e morro de medo de algum deles não ter o que comer”. O que mais pesa no bolso, diz Adriana, é o preço do gás. “Vai mais da metade do valor da doação. Às vezes eu compro o botijão para pagar no mês seguinte e, quando chega a doação, eu pago. Com o que sobra, é que vou fazer as compras”, descreve. Ela não teve direito ao auxílio emergencial do governo, apesar de inscrita.

FALTA COMIDA?

O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 mostra por que, no Brasil, a fome tem gênero e raça. Pelos dados de 2020, 11,1% dos lares chefiados por mulheres estavam enfrentando a fome contra 7,7% quando a pessoa de referência era homem. Das residências habitadas por pessoas pretas e pardas, a fome esteve em 10,7%. Entre pessoas de cor branca, esse percentual foi de 7,5%. No levantamento do Datafolha, em que 88% dos entrevistados disseram perceber que a fome no país aumentou, a situação também é mais sentida por mulheres, negros e pessoas menos escolarizadas — faltou comida para 40% dos que têm apenas o ensino fundamental completo.

“O Brasil vive um pico epidêmico da fome”, registra o site da Rede Penssan, apontando que a crise econômica agravada pela pandemia está fazendo com que a insegurança alimentar se estenda inclusive entre os que não se encontram em condição de pobreza. Cerca de metade dos entrevistados relatou redução da renda familiar durante a pandemia, provocando cortes nas despesas essenciais. Esses lares constituem o grupo com maior proporção de insegurança alimentar leve — por volta de 40%, o que sugere o impacto da pandemia também entre famílias que tinham renda estável.

É verdade que a insegurança alimentar cresceu em todo país, mas as desigualdades regionais seguem acentuadas. “Proporcionalmente, ainda há uma maior parte da população em situação de fome no campo, mas a gente já vê quantitativamente e em grandes proporções, não somente no Norte ou Nordeste, mas nas grandes cidades em diferentes pontos do país”, analisa Francisco Menezes. “Se pudéssemos usar uma palavra, diríamos que a fome se ‘alastrou”, mostrando-se muito nitidamente aos olhos de todo mundo”.

O curioso é que a fome aumenta no Brasil em um momento em que a produção de alimentos cresce exponencialmente. Em 2020, o país alcançou a safra recorde de grãos, exportando não apenas milho, soja e café, mas também produtos como arroz e feijão, de acordo com o IBGE, que prevê uma safra ainda maior para este ano. Francisco tem uma explicação para o paradoxo: o agronegócio encara o alimento como mercadoria. “Ele não vislumbra em nenhum momento a perspectiva de alimentar uma população em sua maioria empobrecida. Ele trabalha em cima do lucro. Daí o seu apego a colocar no mercado externo”. Por isso mesmo, ele pontua, não dá para ter expectativa de que esse modelo vá garantir comida na mesa do brasileiro.

De acordo com Elisabetta, por estar voltado para o mercado exterior, para a produção de ração ou de matéria-prima para ultraprocessados, o agronegócio passa pela pandemia praticamente incólume. “Ao contrário do que anuncia, ele não alimenta o país. E também não deixa o país mais rico, porque todo o valor que produz está muito concentrado na mão de poucos”, diz. “O agronegócio não é um modelo produtivo que distribui riqueza. Ele concentra riqueza”. Por outro lado, indagada sobre o papel da agricultura familiar e da agroecologia no enfrentamento à fome no país, a nutricionista lembra que não são poucas as experiências e estratégias que se mostram viáveis e fundamentais, sejam elas de solidariedade ou de abastecimento local.

Elisabetta recorda ainda que quanto mais capilarizados e locais são os processos, maiores as condições para resolver a crise. Ela aproveita para citar uma pesquisa realizada pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) em municípios do mundo inteiro, em 2020, que demonstrou que cidades que tinham relações mais próximas entre campo e cidade foram aquelas que conseguiram responder mais rapidamente ao problema de desabastecimento e da alta de preços gerados pela pandemia. “A agricultura familiar é que produz a comida que vai para o nosso prato”.

OLHARES SOBRE A FOME

Primeiro, vem a preocupação em não ter o que comer. O medo de que, em um futuro próximo, falte comida no prato. Depois, surge a necessidade de abrir mão de alguns alimentos — às vezes falta o feijão, muitas vezes a carne ou os ovos, então a refeição é reduzida. Por fim, o estágio mais grave é quando realmente não há com o que se alimentar e a face da fome se revela. Em um desses três graus da escala de insegurança alimentar estiveram mais da metade dos brasileiros nos três últimos meses de 2020, como constatou o Inquérito Nacional da Rede de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan) — ou, mais precisamente, 55,2% dos domicílios brasileiros.

Radis conversou com dois ex-presidentes do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) para entender o que colocou o Brasil de novo na rota da fome.

O Consea — que contava com a participação da sociedade civil e de setores do governo e atuava em políticas de segurança alimentar e combate à fome — foi extinto no primeiro dia de 2019, quando começou o governo de Jair Bolsonaro. Francisco Menezes e Elisabetta Recine presidiram o órgão em momentos bem diferentes: ele, entre 2004 e 2007, quando foi construída a Lei Orgânica de Segurança Alimentar (Lei 11.346 de 2006); ela, entre 2017 e 2019, já em um momento em que o órgão perdia espaço no Palácio do Planalto, no governo de Michel Temer, até ser extinto pela Medida Provisória (MP) 870 de 1º de janeiro de 2019.

Ambos concordam que a fome não vem sozinha. Antes que chegue, ela é anunciada pelo desemprego, pelo aumento da pobreza, pela falta de políticas públicas e por outras violações de direitos que colocam milhões de brasileiros na situação de não ter o que comer. [2]

[1] Foto: Raul Spinassé.

[2] Texto de Ana Cláudia Peres, Luiz Felipe Stevanim e Adriano de Lavor.

Como citar esta notícia: Fiocruz. País faminto.  Texto de Ana Cláudia Peres, Luiz Felipe Stevanim e Adriano de Lavor. Saense. https://saense.com.br/2021/06/pais-faminto/. Publicado em 22 de junho (2021).

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