Jornal da USP
17/06/2021

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Por Momtchilo Russo, professor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) e da Faculdade de Medicina da USP

Em janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu a covid-19, uma doença decorrente da infecção pelo coronavírus causador da síndrome respiratória aguda grave (sars-cov-2), como um problema internacional de saúde pública.Em seguida, uma pletora de trabalhos científicos, incluindo os pioneiros de pesquisadores chineses, esclareceram como o vírus infecta as pessoas, seu ciclo de crescimento, as principais consequências da infeção e quais são os grupos mais vulneráveis à doença. No entanto, não houve progresso significativo na busca de um tratamento antiviral eficaz e muitos aspectos da doença ainda hoje não estão esclarecidos. A multiplicidade de manifestações clínicas da covid-19, a síndrome pós-covid e o aparecimento de variantes do vírus vêm surpreendendo e são alguns dos problemas a serem resolvidos no mundo.

É importante esclarecer que em março de 2020, quando se constatou o início de transmissão comunitária da covid-19 no Brasil, o País estava numa situação privilegiada, pois bastava seguir a conduta adotada na China e preconizada pela OMS para não repetir os erros cometidos pela Europa. Mesmo sem entender toda a complexidade da patologia da covid-19, o desenvolvimento de vacinas foi surpreendentemente acelerado e vários imunizantes ficaram disponíveis em tempo recorde. Em janeiro de 2021, iniciou-se a vacinação contra a covid-19 em São Paulo com a CoronaVac produzida no Instituto Butantan, seguida da vacina Oxford-AstraZeneca produzida na FioCruz. Além disso, o Brasil contava com dois serviços excelentes para enfrentar a covid-19: o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Plano Nacional de Imunização.

No entanto, as atitudes e as falas do presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, foram sempre na direção contrária da orientação da OMS e da vacinação. Note-se ainda que o Brasil tinha todas as condições (verba, pessoal qualificado e instituições) para projetar e desenvolver uma vacina brasileira. A consequência imediata dessa visão distorcida da pandemia é inevitavelmente a trágica lotação das unidades de terapia intensiva e o morticínio da população.

De modo geral, as vacinas objetivam induzir imunidade ao vírus e a imunidade a qualquer vírus passa por pelo menos dois eventos cruciais. O primeiro é impedir que o vírus infecte as células-alvo. Todo vírus necessita entrar numa célula para se multiplicar, pois não possui maquinaria própria para sua multiplicação. Para entrar numa célula, a superfície do vírus tem que aderir e se fundir com a membrana plasmática da célula e, no caso do sars-cov-2, essa adesão é feita pela proteína S da eSpícula – que confere uma aparência de coroa (daí o nome do vírus)– a um receptor celular denominado ACE2, uma proteína com atividade enzimática sobre a angiotensina que exerce várias funções fisiológicas. Nesse caso, anticorpos (produzidos por linfócitos B) que se ligam à proteína S poderiam bloquear a entrada do vírus na célula. Quando isso ocorre, esses anticorpos são denominados anticorpos neutralizantes. Assim, indivíduos que possuem esses anticorpos estão protegidos, pois o vírus é impedido de entrar nas células. No entanto, se o vírus conseguir invadir uma célula, os anticorpos neutralizantes não terão ação, pois eles não penetram nas células. Isso significa que anticorpos neutralizantes só funcionam quando o vírus está fora da célula. Esse tipo de imunidade mediada por anticorpos é denominada imunidade humoral.

E quando o vírus está dentro da célula, é possível reconhecer e controlar a sua multiplicação? A resposta é sim e aí entra o segundo evento crucial, que é o aparecimento de células (linfócitos T) que reconhecem a célula infectada, pois a mesma expõe em sua membrana pedaços (peptídeos) das proteínas do vírus que foram produzidas pela célula durante a replicação viral. As células T, que reconhecem as células infectadas, podem atuar de pelo menos duas maneiras: destruindo a célula infectada e/ou secretando substâncias antivirais, que inibem a replicação do vírus. Esse tipo de imunidade é denominada imunidade celular. Resumindo, para o sars-cov-2 se instalar (multiplicar), ele precisa passar pelo menos por duas barreiras imunológicas. A primeira é representada por anticorpos neutralizantes, que impedem sua entrada nas células-alvo; e a segunda, por células T, que inibem sua multiplicação nessas células.

O que são as variantes do vírus? Geralmente, em graus variados, os vírus sofrem mutações. Dessa forma, é esperado que apareçam variantes do vírus. Muitas variantes do sars-cov-2 foram caracterizadas em diferentes países e atualmente circulam globalmente. As principais preocupações com as variantes são: se elas são mais transmissíveis, se causam uma infecção mais grave e/ou são mais difíceis de serem tratadas e se as vacinas atuais serão efetivas contra elas.

Vírus sofrem mutações que, por um lado, podem ser catastróficas ao vírus, pois interferem na sua estrutura, tornando-o inviável. Por outro lado, podem trazer um ganho de função, tornando-o mais adaptado à sua sobrevivência na natureza. No sentido de evitar erros catastróficos na leitura do seu RNA, que é bem extenso, os coronavírus possuem uma maquinaria muito eficiente para corrigir esses erros (mutações). No entanto, os coronavírus também sofrem mutações e recombinações que permitem a sua sobrevivência. As mutações que têm sido detectadas no sars-cov-2 ocorrem principalmente na proteína de superfície S, que é a responsável pela afinidade do vírus por seu receptor ACE2. Mutações na proteína S podem resultar em pelo menos duas consequências: o vírus não consegue mais se encaixar ao seu receptor e, como tal, deixa de infectar a sua célula hospedeira; ou pode ter um ganho de função e passar a infectar mais facilmente as células do hospedeiro (aumento de afinidade) ou mesmo possibilitar ao vírus infectar mais de uma espécie de hospedeiro (espalhamento do vírus). Basicamente, todas as variantes, isoladas na África, Reino Unido, Brasil e Índia, sofreram mutações na região da proteína S responsável pelo sítio de ligação ao receptor. Essas variantes tornaram-se prevalentes devido à sua maior capacidade infectante. Uma outra característica dessas variantes é que os anticorpos produzidos por pessoas infectadas ou vacinadas foram menos eficazes, em maior ou menor grau, em neutralizar essas variantes. No entanto, ainda não está demonstrado que a imunidade geral a essas variantes está totalmente prejudicada e isso tem importância na vacinação. Ou seja, o vírus pode escapar dos anticorpos neutralizantes, mas pode não se livrar da imunidade celular.

Como isso é possível? A explicação mais simples é que os anticorpos reconhecem pedaços (epítopos) da proteína S que são totalmente diferentes dos pedaços (peptídeos) que os linfócitos T reconhecem na célula infectada. Dessa forma, a parte da proteína S que se modificou e que deixou de ser parcialmente ou totalmente neutralizada pelos anticorpos não é a mesma que os linfócitos T reconhecem. Assim, os linfócitos T responsáveis pela imunidade celular continuam ativos, apesar da mutação pontual na proteína S. O que ocorre é que tanto as células que produzem anticorpos (linfócitos B) como os linfócitos T reconhecem várias partes da proteína S, porém, apenas os anticorpos gerados contra o sítio de ligação (que sofreu mutação) deixam de funcionar parcial ou totalmente. Os outros sítios da proteína S continuam sendo reconhecidos e influenciam a imunidade. Porém, os linfócitos T parecem ser mais importantes que os anticorpos para a imunidade da covid-19, pois pacientes com imunodeficiência na produção de anticorpos, que foram infectados com sars-cov-2, conseguiram controlar a infecção. No caso de pacientes assintomáticos, uma das explicações para a sua resistência à covid-19 é que eles tiveram infecção prévia com coronavírus causadores do resfriado comum e que adquiriram uma imunidade celular cruzada.

Do exposto, o provável cenário é que algumas variantes não serão eficientemente neutralizadas na sua entrada e consequentemente irão conseguir infectar as primeiras células-alvo (epiteliais), mas a imunidade celular mediada por linfócitos T poderá controlar a infecção nessas células impedindo a progressão da doença. A utilização de vacinas usando a proteína S variante seria uma maneira alternativa de induzir uma imunidade mais efetiva contra as variantes por atuar tanto via imunidade humoral (anticorpos neutralizantes) e como celular (ação de células T).

Em resumo, a imunidade dada pelas vacinas, mesmo sendo parcial e/ou insuficiente para evitar reinfecções, pode ser suficiente para impedir a progressão para quadros clínicos mais graves e óbito. O estudo feito pelo Instituto Butantan no município de Serrana confirmou essa possibilidade. Nesse estudo foi verificado que a mortalidade pela doença foi reduzida em 95 por cento vacinando-se toda a população adulta. A vacina usada nesse estudo foi a CoronaVac, a mesma que foi oferecida em julho de 2020 ao ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, que não a adquiriu, seguindo a orientação do governo, denotando falta total de autonomia do Ministério. Ou seja, o presidente do Brasil, que não tem nenhuma expertise na área de saúde, impediu que a população brasileira tivesse acesso à vacina. Fica aqui registrado que a condução da saúde pública não pode depender de opiniões e sim de evidências. Quem cometeu erros deve ser responsabilizado pelo morticínio da população!

[1] Imagem de dianakuehn30010 por Pixabay.

Como citar este artigo: Jornal da USP. Variações em torno do vírus da covid-19. Saense. https://saense.com.br/2021/06/variacoes-em-torno-do-virus-da-covid-19/. Publicado em 17 de junho (2021).

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