Fiocruz
15/07/2021

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Na Zona Norte do Rio de Janeiro, um grupo de jovens começou a produzir dados para gerar diagnósticos e pautar políticas públicas. Se precisar, eles literalmente desenham. Helicóptero da polícia também conhecido como “caveirão voador”, custo estimado: 22 milhões de reais, o que daria para pagar 88 mil auxílios emergenciais; fuzil, preço mais baixo: 5 mil reais, valor que poderia bancar um aluno da rede pública municipal durante um ano inteiro. Nas postagens que ganharam as redes, eles fazem comparativos parecidos em relação a coletes, carros blindados e outros equipamentos, para mostrar que o dinheiro gasto na malfadada guerra às drogas poderia ser utilizado em saúde, educação, cultura, moradia. Trata-se do LabJaca — Laboratório de dados e narrativas sobre favelas e territórios periféricos, localizado no Jacarezinho.

Estudante de jornalismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Bruno Sousa é um dos sete integrantes e coordenador de comunicação do LabJaca. Depois de ter passado pela Agência Narra, do Observatório de Favelas, e pelo Intercept Brasil, e inspirado por iniciativas de comunicação que se multiplicam nas favelas, ele decidiu juntar-se aos amigos para tocar um plano antigo, na comunidade onde morou boa parte da vida. No LabJaca, os números e os relatos são usados para que a favela dispute a cidade, diz Bruno, que também é pesquisador do tema da segurança pública. No Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), faz parte da equipe do projeto Panóptico, que monitora os usos da tecnologia de reconhecimento facial pelas polícias e guardas municipais.

Quando integrou a redação do Intercept, ele escreveu um forte relato em forma de diário sobre o dia em que sofreu duas abordagens policiais em apenas 10 minutos. “Foi a primeira vez que chorei”, anotou. Não foi a última. Nesta entrevista à Radis, Bruno relembra o episódio. Também descreve o cenário de horror que encontrou na favela do Jacarezinho, logo depois da operação que deixou 28 mortos e becos e vielas tomados por sangue, no último mês de maio, em plena pandemia. Durante uma hora de conversa (que você confere na íntegra no site da Radis), ele discute racismo e violência policial, explica a importância da produção cidadã de dados e mostra por que a pauta do antirracismo ainda precisa avançar no Brasil.

O que passa pela cabeça de um jovem negro, morador da favela, jornalista e pesquisador de segurança pública, no momento de uma abordagem policial violenta?

É bem complicado estudar e produzir conhecimento em relação a esse assunto ao mesmo tempo em que a gente vive isso na pele. É bem complicado estar em seminários e rodas de discussão sobre segurança pública, em que pessoas renomadas — normalmente pessoas brancas — estão pensando a violência policial de uma forma tão “racional” e a gente também ter que pensar de forma racional, sendo que vivenciamos aquilo diariamente. Quando escrevi a matéria publicada no início de 2019 no Intercept, passei um mês anotando essas abordagens policiais cada vez mais truculentas, no Jacarezinho, onde eu morava na época. Foi num período de intervenção federal em que as operações com a presença do Exército eram uma constante. Os policiais sempre me paravam — era a mesma viatura, os mesmos policiais. Eles reviravam minha marmita. Eu não podia nem comer depois porque eles enfiavam a mão na minha comida. No dia em que tomei duas duras em apenas 10 minutos, uma delas foi do Exército, logo na saída da favela, e a outra da própria PM, na saída do metrô. E eu recebia ameaças porque era jornalista. Eles riam da minha cara, falavam que eu não era nada, que eu era um merda. Tentava retrucar, mas não adiantava. Eles diziam: “Se tu fosse bandido, já estava com a cara no chão”. Todo pesquisador preto, principalmente, que vem de favela e estuda segurança pública, em algum momento se pergunta se está no caminho certo. Porque é pesado tentar explicar essas dinâmicas de segurança pública, quando somos afetados diretamente por elas.

Como o racismo e a violência policial impactaram o seu cotidiano?

Nessa época, saí do Jacarezinho por isso. Eu queria ter continuado dentro da favela, mas minha mãe e minha esposa estavam bem apreensivas. E eu também entendia que havia uma exposição muito grande e que não fazia tanta diferença continuar lá dentro. As abordagens policiais não pararam depois dessa época, ainda que hoje ocorram com uma frequência bem menor — antes, todas as vezes que saía da favela, eles me paravam. Mas, semanalmente, ainda sou abordado pela polícia. Na verdade, não muda, né? Estou morando fora da favela, tenho condições melhores para me deslocar sem precisar pegar transporte público, mas isso não impede que eu seja parado quando estou no carro de um amigo ou quando eu mesmo estou dirigindo.

O assassinato do menino João Pedro, no Complexo do Salgueiro, ano passado, a chacina no Jacarezinho e a morte de Kathlen Romeu, em Lins de Vasconcelos, recentemente. O que esses episódios nos contam sobre racismo?

As operações policiais se concentram nas favelas e são baseadas em racismo. A maioria esmagadora das pessoas que morrem são negras. Mas a dinâmica do racismo é tão sofisticada que ela racializa todo o território. Óbvio que não tem como comparar, mas quando você vive num território racializado, mesmo que seja branco, também sofre consequências. E quando você vive sob o domínio da necropolítica que decide quem pode viver e quem pode morrer, percebe que o racismo vai apenas se renovando. A gente acompanha a questão do controle da polícia sobre esses territórios como um dado histórico. A polícia militar foi criada para proteger e servir a um certo tipo de população. Até hoje, na logo da PM do Rio de Janeiro, você vê uma arma e umas folhas de cana. Isso remete totalmente à escravidão. Quem trabalhava na colheita de cana? Pessoas negras. É um mecanismo muito sofisticado. Hoje, penso que as operações policiais apenas renovam essas táticas de encarceramento e de controle de corpos, que são baseadas em racismo e são históricas desde sempre: seja com aparelhos bélicos — que chamo de “brinquedinhos” da polícia, porque parece que eles têm fetiche por comprar helicópteros de milhões, um caveirão de milhões ou milhares de fuzis — seja com o avanço tecnológico, como é o caso do Projeto Panóptico de reconhecimento facial.

Por que você considera que operações policiais continuam acontecendo nas favelas do Rio, mesmo com a decisão do STF de proibi-las durante a pandemia?

Com certeza faz parte disso que estamos falando e acho que o desacato à decisão do STF vai até um pouco além. As polícias do Rio sempre se declararam autônomas, óbvio que não abertamente. Mas, por exemplo, temos leis que obrigam os policiais a usarem câmeras no uniforme e na viatura. Mas eles não usam, boicotam e até quebram as câmeras. Quando o órgão máximo do judiciário no Brasil determinou que as polícias não fizessem operações nas favelas durante a pandemia e elas seguem acontecendo com o número de mortes batendo recordes, a gente percebe que há um claro desacato ao STF. É quase como uma resposta: “Vamos seguir fazendo o nosso trabalho e aqui a gente faz o que quiser. Não se metam”. Dentro da polícia, correm boatos de que, como o STF autoriza as operações em casos de excepcionalidade, a interpretação deles para burlar tal decisão é de que o Rio de Janeiro inteiro vive sempre uma situação de excepcionalidade. Ou seja, eles vão sempre conseguir justificar as operações policiais que fazem, principalmente se têm o aval do Ministério Público Federal e de órgãos públicos que legitimam esse tipo de ação.

Ao mesmo tempo, além da violência policial ou numa relação muito íntima com ela, as favelas do Rio convivem também com as milícias e o tráfico de drogas. Como funciona essa dinâmica?

A dinâmica das favelas do Rio de Janeiro é bem particular. Com o avanço das milícias, a gente tem percebido que, primeiro, ela não é um bloco único, que responde a uma só pessoa como muita gente imagina. Por exemplo, a gente consegue dividir as facções do tráfico de drogas e apontar o Comando Vermelho ou o Terceiro Comando. Mas a gente não consegue apontar todos os grupos de milícias existentes. Recentemente (12/6), foi assassinado pela polícia o Ecko [Wellington da Silva Braga], que era tido como o maior miliciano vivo do Rio de Janeiro. Muita gente pensou que, se ele fosse morto, resolveria o problema daquela região na Zona Oeste. Muito pelo contrário. Costumo dizer que, no Rio de Janeiro, cada rua tem um dono. E quando a pessoa daquele lugar deixa de ser dona, outra pessoa vai querer ocupar a posição. A milícia também tem se expandido. Existem vários grupos que são rivais, inclusive. Antes, esses grupos dominavam o comércio de gás, água, esses itens básicos de consumo para população, aquelas taxas que cobravam dos comerciantes. Mas a milícia agora tem entrado numa nova fase em que ela quer ganhar dinheiro com absolutamente qualquer coisa. A milícia do Ecko já trabalhava com tráfico de drogas. Há casos de favela da Zona Oeste que pertenciam ao Terceiro Comando e se aliaram à milícia para conseguir se manter e não perder o território para o Comando Vermelho. A milícia aqui inclusive já abandonou o discurso moralista, cristão, conservador, de que não apoia droga ou o crime. Agora, com o poder e o arsenal que tem, toma essas localidades e, de certa forma, aluga para o Terceiro Comando. É como se ela terceirizasse o serviço. Ou seja, o pessoal que já era da facção local continua lá, com o comércio de drogas, e a milícia recebe a sua porcentagem por isso.

E no meio disso vive a população da favela. Como manter uma rotina com a violência e o medo sempre à espreita?

Primeira coisa a ser dita: é preciso tirar o estigma de que o morador de favela é conivente com qualquer grupo armado que comanda o território, seja o tráfico de drogas de qualquer facção, seja a milícia. A população não é conivente com esse tipo de coisa. No Rio de Janeiro, se acreditou durante muito tempo que as milícias poderiam ser algum braço de segurança, que ajudariam a tirar os bandidos do local. Mas hoje já se entende que a milícia é um mal tão grande ou pior do que o tráfico de drogas. A população vive absolutamente perdida sob o domínio do medo. As pessoas que têm condição de sair da favela acabam saindo. Quando ocorrem operações policiais, no caso dessas áreas dominadas pelo tráfico, você perde aula, perde um dia de trabalho, o seu chefe não entende que você não tinha condição de sair da localidade por conta de uma troca de tiros. A população vive esperando por dias melhores, mas acho que depois da chacina no Jacarezinho, as pessoas deixaram de acreditar. Até aquelas que ainda acreditavam na polícia ficaram totalmente horrorizadas. Conversei com muito morador e todos me reforçaram que passaram de qualquer limite. “A gente é humano”, me diziam. O que a gente tem observado em todas as favelas é uma falta de esperança, um estado geral de desânimo.

Muitos já consideram essa a maior chacina da história do Rio. O que você viu naquele dia?

Às 6 horas da manhã, a gente já estava recebendo mensagem por WhatsApp, nas redes sociais do LabJaca e redes de denúncias. Eram os moradores avisando que a operação estava acontecendo e que já tinha gente baleada. A partir dali, começamos a acompanhar a operação policial, principalmente pelo sensacionalismo mostrado na TV Globo, com uma transmissão ao vivo, exibindo traficantes que pulavam de uma laje para a outra com fuzil, filmando a polícia entrando na favela, e com repórter gritando: “Traficantes fortemente armados!”. Acho que a Globo foi uma das grandes responsáveis pelo desastre que aconteceu. Porque, no momento que você expõe os agentes do Estado ao vivo na maior emissora do país, no meio de uma operação, a polícia passa a ter que dar respostas. E a gente sabe que a resposta da polícia naquele tipo de situação é 100% violenta.

Que cenário você encontrou na favela?

Foi um banho de sangue. Uma chacina, não tem outro nome que não esse. Ao longo do dia, a gente ouviu a mídia falando do número de mortos: primeiro, 10, depois, 15, depois 18. Mas às 11 da manhã, a gente já sabia que eram 28 mortos. Achávamos inclusive que haveria mais, porque moradores já tinham falado que viram 28 corpos dentro de um único blindado. A partir daquele momento, a gente começou a se mobilizar e abrir canais de denúncia. Entramos em contato com a Defensoria e com todos os jornais. Por volta do meio-dia, quando os tiros cessaram e a polícia estava saindo, o que vi foi uma das cenas mais aterrorizantes da minha vida. Todos os lugares estavam cobertos de sangue, literalmente, todos os becos. A gente entrou na casa daquela garotinha que viu uma pessoa ser assassinada e o pai dela nos disse: “Como a minha filha vai voltar a dormir aqui? Ela viu os policiais executarem um cara no quarto dela, como ela vai voltar pra cá?” A gente via senhoras de 80 anos de idade tendo que lavar calçada com água e sabão porque o beco inteiro estava banhado de sangue. Foi sem sombra de dúvidas um dos piores dias da minha vida. As coisas que vi, fotografei e filmei não vou conseguir tirar da cabeça. Nunca vi aquilo nem quando morava na favela e tive a minha casa invadida em operação policial por diversas vezes. Nada se compara aquilo. Foi a maior chacina da história do Rio cometida pela polícia, sim.

Como a ideia de produzir dados e contar histórias da favela — como vocês têm feito no LabJaca — pode contribuir para a elaboração de políticas públicas?

Basicamente todas as decisões que a gente tem hoje, seja em esferas de política pública, seja em decisões empresariais, são pautadas por dados e a população de favela não pode ficar atrás disso. A gente precisa pautar a realidade a partir dessas evidências, dos números, das coisas concretas. Normalmente a narrativa da favela é uma narrativa de ausência, de carência. Na minha interpretação, ninguém mais se choca ou sente empatia por um corpo negro caído no chão ou por saber que aquela população é a mais carente. Só a história da miséria ou a tristeza não tem mais convencido as pessoas. O que a gente decidiu foi pautar isso também a partir dos dados e dos números. Quando a gente faz essa produção cidadã de dados dentro da favela, realmente esperamos que seja um fator empoderador para que essa população entenda seus direitos e para a construção de políticas públicas.

O movimento negro sempre tentou dar visibilidade à ausência de políticas públicas e chamar a atenção para o braço armado do Estado, inclusive com números. O que muda agora na agenda da questão racial?

Não estamos inventando a roda com essa produção de dados nem com a comunicação que fazemos. Muitas pessoas já fazem isso, como o Redes da Maré, que faz um trabalho sensacional há muitos anos. Tem muitas instituições de periferia sejam elas ONGs, ou laboratórios de dados ou agências de comunicação, jornais comunitários, periféricos, associação de moradores pelo país inteiro, fazendo um trabalho irretocável com contribuição antirracista desde sempre. E a gente acerta muito e em muitos campos. O LabJaca, por exemplo, foi um grande acerto de um projeto de mídia antirracista. O que acho que falta para a gente avançar são duas coisas: a visibilidade por parte da mídia hegemônica e os investimentos financeiros.

Que lugar ocupa a pauta do antirracismo no Brasil hoje?

Infelizmente, muito do que a gente vem discutindo agora ainda é importado. Nos últimos dois anos, a gente teve a morte do João Pedro e da Ágatha Vitória [no Complexo do Alemão], mas quando a gente teve protesto de fato aqui foi quando o George Floyd morreu. E nem acredito que isso seja uma culpa da população da favela. Muita gente me pergunta: por que o pessoal da favela não sai para protestar e não quebra a cidade inteira? Mas o que acontece é que a gente tem esses baques diariamente e fica difícil protestar quando morre um George Floyd a cada 23 minutos aqui. Nos Estados Unidos, o racismo é escancarado, não é velado como no Brasil, onde a gente não consegue discutir abertamente o problema. A gente avança pouco e não consegue atingir grande parte da população que ainda acredita no senso comum de que “bandido bom é bandido morto” ou de que “se morreu é porque estava devendo ou fazendo alguma coisa errada”. Essas pessoas ainda não aceitam que boa parte do que acontece de desastre no país é baseado no racismo.

É possível falar de desigualdade sem olhar para a questão racial?

Acho impossível falar sobre a maioria das questões num país de terceiro mundo subdesenvolvido e que tem a maioria da população negra, como o Brasil, sem pautar as questões raciais. Ainda mais em um país que foi um dos últimos a abolir a escravidão, cuja história se baseia nessa colonização forçada que rende frutos até hoje para famílias que se mantêm no poder. Todas as questões — distribuição de renda, desigualdade, emprego, a pandemia — passam pelo racismo. A gente sabia desde o início que a pandemia não ia afetar negros e brancos da mesma forma. O Estado não fez um plano de combate a covid para a população de favela. Ele só mandava lavar a mão, ainda que soubesse que a favela tem um histórico de décadas de falta de água. Ou ficar em casa e não aglomerar, sendo que na favela, em casa com muita gente, isso é impossível. A gente também entende que há desigualdade em relação às vacinas, quando profissionais de áreas que nem tem uma exposição tão grande ao vírus são priorizados, enquanto o pessoal da Comlurb [Companhia Municipal de Limpeza Urbana, do Rio de Janeiro], por exemplo, que está na rua diariamente em contato com lixo, com pouco equipamento de proteção, fica de fora.

Como fica a esperança?

Acho que sou a pessoa mais pessimista do mundo (risos). Mas eu tento buscar a esperança até no fundo do poço para que a gente também não desacredite no nosso trabalho. Depois de tudo o que aconteceu no Jacarezinho, o LabJaca estava conseguindo levar atendimento psicológico e jurídico à boa parte da população da favela. A gente também conseguiu fazer um superevento com grafiteiros renomados do país inteiro, que foram até lá pintar os muros e levar arte para onde havia bala. Fizemos o vídeo “Quanto custa uma vida?”, que teve uma repercussão muito boa. E aí, depois de tudo isso, depois que a gente estava conseguindo fazer algo no pós-chacina e caminhar apesar de toda a tragédia, na semana seguinte, recebe outro baque com uma amiga próxima e que estava grávida, a Kath [Kathlen Romeu], sendo assassinada em Lins de Vasconcelos. As pessoas costumam falar que a polícia militar fica enxugando gelo na guerra às drogas, mas acho que eles estão fazendo “muito bem” o trabalho deles de executar a população. Quem está enxugando gelo aqui é a gente, que fala toda hora a mesma coisa, que estamos morrendo, e isso não muda, não choca, não escandaliza mais ninguém. Olhando como uma pessoa que estuda e vive a segurança pública e também mora em favela, o cenário é bastante desanimador. Em nenhum momento fica melhor. Pelo contrário, acho que a gente caminha para ver coisas como a última chacina do Jacarezinho serem consideradas normais.

O PANÓPTICO, O RECONHECIMENTO FACIAL E O RACISMO

Como pesquisador de segurança pública, que leituras você faz do projeto de reconhecimento facial aplicado ao policiamento?

O Panóptico é um projeto em que a gente monitora os usos da tecnologia de reconhecimento facial pelas polícias e guardas municipais do Brasil inteiro. A gente monitora outros usos dessa tecnologia, mas principalmente aqueles voltados para segurança pública. E essa é uma tecnologia extremamente problemática. Primeiro, porque você não tem muita garantia sobre a privacidade dos dados. Segundo, pela falha da máquina, que é pouco precisa em ler rostos da população negra, principalmente de mulheres negras. O nível de erros chega a ser cinco vezes maior, se comparado com o reconhecimento de homens brancos. Em 2019, por meio da Lei de Acesso à Informação, a gente obteve números que demonstravam que o sistema de reconhecimento facial do Rio emitiu falsos-positivos em 63% dos casos, errou em 63% dos casos. Ou seja, mais da metade das pessoas abordadas pelo sistema não tinham nenhuma pendência com a justiça. Não eram criminosas. A gente esquece que essa máquina é programada por pessoas, os algoritmos são feitos normalmente por homens brancos que carregam vícios, racismos, machismos… Alguns países desenvolvidos têm banido esse tipo de tecnologia da segurança pública, mas o Brasil vive um movimento contrário.

Pode nos dar algum exemplo dessas falhas?

Na primeira semana de uso de reconhecimento facial em Copacabana, uma mulher foi detida. Ela estava trabalhando como freelancer na rua para ganhar 50 reais no máximo, com aquelas placas de compra e venda penduradas no corpo. Essa mulher foi abordada pelos policiais depois de ter sido “reconhecida” pela câmera de reconhecimento facial e, como estava sem documentos, foi levada para delegacia. Ficou detida o dia inteiro, até que os parentes conseguiram levar os documentos e provar que ela não era a mulher procurada. Mas, olha, o pior de tudo, nem é o fato de ela ter passado por todo esse vexame, ter sido exposta, ficar em desespero o dia inteiro numa delegacia sem saber o que iria lhe acontecer. O pior de tudo nem foi o erro da máquina, que já foi bizarro em si. O pior de tudo isso foi que o banco de dados utilizado pela polícia estava desatualizado e a mulher que estava sendo procurada já havia sido presa há quatro anos. Ou seja, essa é apenas mais uma tática de encarceramento para renovar o racismo.

LABJACA: A FAVELA GERANDO DADOS

No início da pandemia, quando um grupo de jovens do Jacarezinho decidiu montar a campanha “Jaca contra o corona” — para distribuição de kits de higiene e cestas básicas —, eles ainda não sabiam, mas estavam dando o primeiro passo para a criação do LabJaca. “Enquanto fazíamos um formulário sobre a percepção da covid com a população local, nos demos conta de que os dados que a gente colhia eram totalmente discrepantes das informações do Estado”, disse Bruno Sousa. Na época, os dados oficiais apontavam apenas sete casos de covid na favela. Nas contas de Bruno, havia quase uma centena de suspeitas não confirmadas por falta de testes. “Aquilo não fazia nenhum sentido”.

A subnotificação dos dados da favela sempre inquietou o pesquisador, mas com a pandemia, o problema soou alarmante. “Se o Estado não sabe nem quantas pessoas moram nessa favela, como é que você vai ter escola para todo mundo? Como vai ter posto de saúde para todo mundo? Como vai ter vacina para todo mundo?”, indagou, na entrevista à Radis. Era preciso fazer algo. Juntos, Bruno e mais Seimour Souza, Bianca Peçanha, Thiago Nascimento, Mariana de Paula, Mariana Galdino e Vinícius Morais levaram adiante a ideia de mapear os principais indicadores socioeconômicos no Jacarezinho em plena crise sanitária. “É a nossa forma de buscar nossos direitos e de fazer com que o Estado realmente paute políticas públicas condizentes com a nossa realidade”, acrescentou Bruno. Em dezembro, o LabJaca conquistou o prêmio Carolina Maria de Jesus, da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj).

Formado por uma equipe multidisciplinar, o projeto aposta no audiovisual como carro-chefe. Por meio de pesquisas e produção de dados, eles elaboram materiais em vídeo e animações para mobilizar a sociedade civil. A campanha “Quanto custa uma vida?” — em que comparam os gastos da megaoperação policial realizada no Jacarezinho em maio com os custos em políticas sociais — teve enorme repercussão. Numa websérie de quatro episódios, apresentaram a vida na favela por dentro. Diante das denúncias reveladas pela CPI da Covid de que o Ministério da Saúde teria cobrado 1 dólar a mais por doses das vacinas Astrazeneca, criaram o quadro “Quem você perdeu por um dólar?”. Recentemente, em maio, lançaram a “#Por que eu?”, para ouvir a experiência de quem mais sofre durante as operações policiais, “tomando geral com truculência e sem motivo”. “Teu relato vira dado cidadão pra gente exigir mudança”. Conheça o LabJaca aqui (https://www.labjaca.com/) e aqui (@LabJaca). [2]

[1] Foto: Baraúna.

[2] Texto de Ana Cláudia Peres.

Como citar esta notícia: Fiocruz. “Nossa morte não escandaliza mais ninguém”.  Texto de Ana Cláudia Peres. Saense. https://saense.com.br/2021/07/nossa-morte-nao-escandaliza-mais-ninguem/. Publicado em 15 de julho (2021).

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