Fiocruz
08/11/2021
A fome é uma questão persistente e estrutural no Brasil, ocupando espaço na agenda política de tempos em tempos, em especial em momentos de crise política. Mas quando se torna interessante denunciar a fome? Quem enuncia o problema e de que modo? O artigo de Fernanda Ribeiro dos Santos de Sá Brito, da UFRJ; e Tatiana Wargas de Faria Baptista, da ENSP, publicado em Cadernos de saúde Pública, discute os diferentes usos retóricos e sentidos associados à fome no debate político brasileiro no período de 1986 a 2015 e lança luz sobre a reatualização do debate a partir de 2016. Elas alertam que retirar a pauta da fome do lugar de visibilidade fragiliza a luta política e institucional da segurança alimentar e nutricional e não avança na construção de um projeto de justiça social para o país.
De acordo com o artigo, em 2014, o Brasil saiu do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU), ao apresentar menos de 5% da população em situação de subalimentação. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilios (PNAD) 2013 mostrava que 3,2% dos domicílios, 7,2 milhões de pessoas, se encontravam em insegurança alimentar grave, o que configura fome, segundo a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA). “A importante conquista brasileira contrastava com o quantitativo de pessoas em insegurança alimentar grave (7,2 milhões), superando a população de muitos países. E, apesar do Brasil estar classificado como um país de alto desenvolvimento humano, ainda se posicionava em 2014 entre os dez países mais desiguais do mundo.”
Segundo as autoras, os dados sobre a concentração de renda no país são reveladores dessa persistente desigualdade. O rendimento médio mensal real de 1% da população com maior renda em 2018 correspondia a 33,7 vezes o rendimento de 50% da população com menor renda. Os 10% da população com menor renda detinham apenas 0,8% dos rendimentos, enquanto os 10% com maior renda detinham 42,9%. As características dessa perversa desigualdade não mudaram substantivamente nesse período e o esforço de combatê-la nos diferentes momentos da história brasileira, ainda que tenha proporcionado alguma redistribuição de renda, ocorreu somente entre os estratos inferiores e não logrou romper com a estrutura de poder dos mais ricos. A PNAD 2013 também aponta que a insegurança alimentar acometia especialmente negros, mulheres e crianças. No mesmo ano, uma pesquisa realizada em 169 comunidades quilombolas revelava que 55,6% dos adultos e 41,1% das crianças vivenciavam situações cotidianas de fome. No Baixo Amazonas, a cada cinco residências, quatro possuíam crianças passando fome .
Conforme as autoras, as dimensões continentais do Brasil parecem contribuir para invisibilizar o problema e o não enfrentamento das desigualdades torna a fome uma questão persistente e estrutural no Brasil, consequência da manutenção de injustiças sociais que retornando à agenda política desde a Primeira República, especialmente em momentos de crise política, como: entre 1930-1940, com o desabastecimento de alimentos decorrente da guerra e o debate acerca das condições estruturais do país e a fome; no final da década de 1970 e anos 1980, num cenário de elevados índices de miséria e desnutrição; no início da década de 1990, com o Mapa da Fome contabilizando 32 milhões de famintos; no início dos anos 2000, com a persistência da fome e desigualdades; a partir de 2016, com o “retorno da fome” após políticas de ajuste e restrição de gastos em políticas sociais.
O fato da fome tornar-se recorrente no debate político indica que as soluções encontradas não foram suficientes, dizem as autoras. Questiona-se: Quando se torna interessante denunciar a fome? Por que ocupa o espaço da agenda pública só em alguns momentos da história brasileira? Quem enuncia o problema e de que modo?
O artigo faz um panorama sobre a abordagem da fome nos diferentes momentos histórico-políticos brasileiros.
Sobre os usos e sentidos da fome no debate político
Para as autoras, “ao acompanharmos a trajetória de 30 anos de debate político, observamos que a fome surgiu como retórica importante em momentos-chave da história brasileira, em especial para a crítica às ações de governo e como pressão social para mudanças nos rumos da política de Estado”.
No primeiro momento (1986-1994), trazer a retórica da fome foi importante para mobilizar o debate político e social, sinalizando para problemas estruturais, mas a centralidade do debate ainda se restringia a melhorar o acesso ao alimento e combater as carências nutricionais. O sentido da fome se aproximava de pobreza, inclusive a partir do uso de indicadores de pobreza para falar de fome.
O segundo momento (1995-2002) foi de enfrentamento mais explícito do projeto de Estado e da perspectiva de desenvolvimento, enfatizando as desigualdades como questão central. A fome é trazida por movimentos sociais e partidos políticos como denúncia de um modelo que reforçava a exclusão e a injustiça social. Assim, pensar uma política de segurança alimentar e nutricional se desenhou como uma resposta mais abrangente para enfrentamento de questões estruturais, pois se tratava de revisar as políticas agrárias e agrícolas em prol de um alimento de qualidade, garantindo também a soberania do país. Mas a construção de uma política de segurança alimentar e nutricional na esfera governamental ainda não era viável e o sentido de fome que predominava na arena governamental ainda era de acesso ao alimento.
Foi especialmente pela denúncia da fome e das persistentes desigualdades sociais que se alcançou no início da década de 2000 uma mudança de direcionalidade na política brasileira. O terceiro momento (2003-2010) inicia com a estratégia da fome como eixo central. A mobilização em torno do Programa Fome Zero foi a expressão primeira de uma política de combate imediato à fome, sendo substituída gradativamente por políticas redistributivas como o Programa Bolsa Família. Nesse contexto, se potencializou o desenvolvimento da política de segurança alimentar e nutricional, fundamentada na análise das relações econômicas, sociais e culturais que possibilitam o acesso ao alimento de qualidade, ampliando o debate para muito além da fome.
No quarto momento (2011-2015), a fome já não foi mais acionada no debate político. Ao contrário, o Brasil saíra do Mapa da Fome. O problema agora era a pobreza, as persistentes desigualdades e as situações diversas de insegurança alimentar. De fato, ocorrera uma mudança no padrão alimentar da população, com a ampliação do acesso ao alimento, decorrente do sucesso das políticas sociais e agrícolas, mas também havia um problema a ser enfrentado no modelo agrícola, revelando as contradições de uma política que se associou ao agronegócio, com pautas e princípios totalmente contrários à segurança alimentar e nutricional.
A partir de 2016 a fome retorna ao debate social, num cenário de ajuste e crise. Inúmeras medidas atacam diretamente a soberania alimentar e o DHAA: aprovação da EC nº 95/2016, congelando gastos públicos por 20 anos; desmontes de ministérios da área social; cortes em programas sociais – Programa de Aquisição de Alimentos da agricultura familiar, Programa um milhão de Cisternas, Programa Bolsa Família, Programa Cestas de Alimentos (para indígenas e quilombolas) -; desmonte da rede de equipamentos públicos de segurança alimentar e nutricional – restaurantes populares, bancos de alimentos e cozinhas comunitárias. Paralelamente, avançaram medidas que beneficiam o agronegócio e ameaçam propostas de reforma agrária, como o perdão a dívidas de produtores rurais e cortes nas ações orçamentárias referentes à política fundiária. Finalmente, como uma das primeiras medidas do governo Jair Bolsonaro, o Consea nacional foi extinto (2019), assim como vários outros conselhos de participação social.
A extinção do Consea levou à desestruturação do Sisan e a não realização da VI CNSAN. A capacidade do Estado brasileiro de garantir o DHAA fica comprometida, demarcando-se a ruptura do diálogo desse governo com a sociedade civil. Como resposta, foram organizadas pela sociedade civil diversas mobilizações, como o Banquetaço Nacional (2019), que visou chamar atenção para as consequências dessa medida e a convocação da Conferência Popular de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional pelo FBSSAN (2019).
Nesse período, a retórica da fome é mobilizada por acadêmicos, partidos, movimentos sociais e mídia e inicia-se um novo momento desse debate. Em 2020, a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018 revela que mais de 10 milhões de brasileiros estavam em situação de insegurança alimentar grave, com maior frequência nas regiões Norte e Nordeste, em domicílios chefiados por mulheres e negros, e com presença de crianças e adolescentes. Com a pandemia de COVID-19 e os desmontes das políticas de segurança alimentar e nutricional, os dados podem ser ainda mais graves.
Por que a fome retorna ao cenário político e social tão rápido? Talvez porque nunca tenha sido efetivamente enfrentada, dizem as autoras. A estrutura de desigualdades brasileiras se manteve mesmo em momentos prósperos. Não falar mais de fome, ou simplesmente dizer que ela acabou, não resolveu a questão. O uso de diferentes nomenclaturas para falar de fome gerou apagamentos. A retórica política é o que mobiliza auditórios e contribui para invisibilizar aqueles que passam fome, postergando o enfrentamento das situações estruturais que sustentam o modelo de reprodução das desigualdades no país.
Segundo o artigo, “ao destacarmos o uso retórico da fome e a adoção de um sentido mais amplo para ela, como o de insegurança alimentar, indicamos os riscos da manutenção de uma política que não enfrenta as raízes de sua desigualdade e aciona a fome conforme o momento político”. O problema não está em seu uso retórico como insegurança alimentar, mas no apagamento da fome. A política de segurança alimentar e nutricional foi construída e definida a partir da denúncia da fome e do entendimento da complexidade de questões que a envolve. O desenvolvimento da segurança alimentar e nutricional foi crucial para avançar em pautas específicas e complexas no campo da alimentação e da nutrição, extrapolando o âmbito setorial e garantindo estratégias efetivas no combate à fome. Assim, a luta pela criação do Consea na década de 1990, a mobilização em torno da segurança alimentar e nutricional com o FBSSAN, mesmo sem a existência do Consea, e a recriação do Consea, em 2003, denotam um esforço de manutenção de uma pauta política em defesa da segurança alimentar e nutricional associada ao combate à fome.
Elas alertam que retirar a pauta da fome do lugar de visibilidade fragiliza a luta política e institucional da segurança alimentar e nutricional e não avança na construção de um projeto de justiça social para o país. “Não por acaso, nos dois momentos em que o Consea foi extinto (1995 e 2019), a política de segurança alimentar e nutricional e o combate à fome estiveram fora da pauta política do governo.”
Por fim, ressaltam que manter essas pautas é condição para garantir o direito constitucional à alimentação tal como previsto na EC nº 64/2010. Mas é muito mais do que isso: é manter o compromisso com a vida de pessoas submetidas a situações de absurda indignidade. “Enquanto existirem pessoas passando fome no país, não se pode aceitar que a fome acabou. Caso contrário, o tema permanecerá entrando e saindo do debate político, de forma retórica, e continuará sendo uma realidade para tantas pessoas, em números ora maiores, ora menores”, concluem. [2]
[1] Imagem de truthseeker08 por Pixabay.
[2] Fonte: Artigo CSP.
Como citar esta notícia: Fiocruz. Artigo lança luz sobre sentidos e usos da fome no debate político brasileiro. Saense. https://saense.com.br/2021/11/artigo-lanca-luz-sobre-sentidos-e-usos-da-fome-no-debate-politico-brasileiro/. Publicado em 08 de novembro (2021).