Jornal da USP
21/08/2023
Compreender as condições climáticas que promoveram o crescimento da calota de gelo antártica e permitiram que ela permanecesse é um dos principais focos de pesquisa hoje, porque pode ajudar a entender suas transformações atuais. Até agora, acreditava-se que o surgimento da calota teria levado cerca de 400 mil anos, tendo começado há 34,1 milhões de anos, no final da época Eoceno. O resfriamento pôs fim ao estado climático de “estufa” que persistiu por mais de 250 milhões de anos no planeta, inclusive durante o Mesozoico, a “era dos dinossauros”.
Um novo estudo revelou que este crescimento já havia começado há 34,4 milhões de anos, ou seja, 300 mil anos antes, mas provocou a queda do nível do mar e a erosão de reservatórios costeiros de carbono orgânico – aquele formado por resíduos de organismos. Esse carbono provavelmente foi decomposto e liberou dióxido de carbono (CO2) na atmosfera, impedindo o resfriamento global e agindo como um freio no rápido crescimento da camada de gelo. Foi apenas depois que esse carbono orgânico foi “esgotado” que ocorreu uma rápida transição para o estado de clima frio moderno.
O trabalho foi publicado na revista Nature Communications, tendo como primeiro autor Marcelo A. De Lira Mota, pesquisador e gestor de projetos do Instituto de Geociências (IGc) da USP. Para chegar a essas conclusões, a equipe formada por cientistas de seis países (Brasil, Reino Unido, Malásia, Japão, Suíça e Estados Unidos) examinou a composição química e o conteúdo de microfósseis de rochas sedimentares perfuradas na região central do Mississipi, planície costeira do Golfo, nos Estados Unidos, que já teve parte da sua área submersa pelo mar.
A calota
A calota de gelo na Antártida tem sido uma característica persistente de nosso mundo climático moderno. Mas por que uma calota de gelo se formou ali? Entre a comunidade científica, duas teorias principais já foram propostas e são objeto de debate. De um lado, há quem defenda que o movimento das placas tectônicas gradualmente “separou” a Antártida dos continentes sul-americano e australiano, deixando-a isolada no Polo Sul, cercada pelo frio oceano Austral e afastada das águas oceânicas mais quentes ao Norte.
Por outro lado, um número crescente de cientistas sugere que o soterramento de carbono orgânico em sedimentos, em última instância, proveniente da absorção de CO2 por plantas e algas durante a fotossíntese por muitos milhões de anos, já vinha reduzindo os níveis de CO2 atmosférico. Com menos CO2 na atmosfera, a superfície da Terra se tornou mais fria, com a neve nas terras altas da Antártida menos propensa a derreter completamente de um ano para o outro. Em vez disso, a neve se acumulou no gelo e estas camadas acabaram formando capas de gelo com quilômetros de espessura.
No final do Eoceno, há 34,4 milhões de anos, toda a água agora retida nas camadas de gelo da Antártida estava no oceano, tornando o nível do mar global de 50 a 70 metros mais elevado do que hoje. Tão elevado, na verdade, que grande parte do atual estado americano do Mississippi estava sob um mar raso. E, assim como hoje, estava perto da foz do rio Mississippi.
Neste estudo, os pesquisadores analisaram os sedimentos que se formaram no fundo desse antigo mar. Eles mediram a quantidade de material vegetal e de algas trazidos da terra pelo rio Mississippi e compararam isso com a quantidade de restos de organismos que viviam no mar. A comparação entre material orgânico derivado do mar e da terra deu uma medida do quão perto o local de estudo estava da desembocadura do rio Mississippi e como essa distância mudou ao longo do tempo.
O que eles descobriram foi uma mudança significativa em relação ao material derivado da terra – interpretada como uma queda do nível do mar de aproximadamente 40 metros e, com ela, a aproximação da foz do Mississippi em direção ao local de estudo – 300 mil anos antes do que se acreditava ter sido o início da principal fase de formação da calota de gelo da Antártida.
Com esta descida do nível do mar e o avanço da costa em direção ao oceano, as águas dos rios começaram a modificar a composição química e biológica das águas marinhas da região, o que se refletiu e se conservou nos sedimentos durante milhões de anos.
Mas que mecanismo seria capaz de induzir uma queda do nível do mar nessa velocidade e magnitude? A equipe de cientistas concluiu que a queda do nível do mar se deveu ao crescimento significativo das camadas de gelo no continente antártico em uma extensão que não havia sido observada até então. Mas esta não foi a única descoberta.
O estudo foi além e investigou as consequências da queda do nível do mar no clima da Terra e por que esse evento inicial não é reconhecido como uma fase importante no crescimento das camadas de gelo da Antártida. A chave está, mais uma vez, no carbono orgânico – principalmente os restos de plantas e algas, alguns deles enterrados em solos e sedimentos – e o CO2 atmosférico.
Se o soterramento de longo prazo de carbono orgânico em sedimentos marinhos foi o provável impulsionador da queda dos níveis atmosféricos de dióxido de carbono e do resfriamento global que permitiu que as camadas de gelo da Antártida começassem a crescer, a queda do nível do mar faz outra coisa.
À medida que os mares recuam, eles expõem as regiões costeiras e os sedimentos marinhos outrora submersos a intensa erosão pelo vento, chuva e rios. O carbono orgânico, como o material vegetal, que já esteve preso nesses sedimentos e ambientes – pense nos manguezais de hoje – agora está exposto ao oxigênio no ar e está disponível para que as bactérias o consumam e convertam novamente em CO2, que pode ser liberado para a atmosfera.
O aumento dos níveis de CO2 na atmosfera, por sua vez, interrompe o resfriamento global e interrompe ou reverte o crescimento da calota de gelo que iniciou todo o processo. Tal mecanismo é conhecido como feedback negativo, pois amenizam-se os efeitos do processo inicial, neste caso limitando a taxa de resfriamento climático e retardando a transição para nosso clima frio moderno.
Mas havia um limite para esse feedback. Depois que o reservatório de carbono orgânico costeiro foi erodido, ou “exaurido”, e com os nutrientes fluindo para os oceanos, a fotossíntese das algas oceânicas e sua captura de dióxido de carbono reequilibraram o sistema de volta à queda dos níveis atmosféricos de CO2 e ao resfriamento global. Agora, sem um forte feedback negativo deixado pela erosão do carbono orgânico costeiro, o planeta fez a transição para o clima frio, ou estado climático de “frigorífico”, dos últimos 34 milhões de anos, de cujo sistema climático as camadas de gelo da Antártida têm sido uma característica permanente.
Os eventos no final do Eoceno mostram as ligações íntimas entre os reservatórios globais de carbono – incluindo nossos solos, biosfera e sistemas costeiros –, dióxido de carbono atmosférico, clima global, camadas de gelo polar e níveis do mar. Já sabíamos que o carbono exerce o principal papel na formação e estabilidade das calotas de gelo da Terra. Agora, sabemos também que ele pode acelerar e retardar a formação ou o colapso delas. É bom ficarmos atentos a tudo isso nos próximos anos.
Mais informações: e-mail marcelomota@usp.br, com Marcelo Mota [1], [2]
[1] Texto de Marcelo Mota e Tom Dunkley Jones (Editado por Luiza Caires).
[2] Publicação original: https://jornal.usp.br/ciencias/origem-da-calota-de-gelo-da-antartida-foi-atrasada-por-erosao-das-reservas-costeiras-de-carbono/.
Como citar este texto: Jornal da USP. Origem da calota de gelo da Antártida foi atrasada por erosão das reservas costeiras de carbono. Texto de Marcelo Mota e Tom Dunkley Jones. Saense. https://saense.com.br/2023/08/origem-da-calota-de-gelo-da-antartida-foi-atrasada-por-erosao-das-reservas-costeiras-de-carbono/. Publicado em 21 de agosto (2023).