UFPR
05/12/2023

Nem chinês nem brasileiro: pesquisa expõe angústias dos filhos dos imigrantes que se fixaram em Curitiba
Chineses que deixaram a província de Guangdong há cerca de 70 anos abriram pequenos negócios no ramo alimentício na capital paranaense, como mercados e restaurantes. Pesquisa levanta história oral da segunda geração, nascida no Brasil. Foto: Diário do Paraná/Reprodução

A chegada de imigrantes chineses em Curitiba ocorreu ao longo das décadas de 1950 e 1960, período em que aconteceu a chamada “Diáspora Chinesa”. Nas décadas anteriores, a China passou pela Segunda Guerra Sino-Japonesa, com o Japão Imperial ocupando parte do território chinês. O conflito passa a se confundir com as disputas da Segunda Guerra Mundial e é seguida pela ascensão do Partido Comunista Chinês ao poder, que teve papel relevante na expulsão dos japoneses.

A ocupação levou diversas famílias a migrarem para Hong Kong, especialmente da província de Guangdong, no sul do país, e de lá se espalharem pelo mundo. A América, nesse contexto, era um dos principais locais almejados por essa população, sendo o Brasil um desses destinos, com parte das pessoas mudando para Curitiba nas décadas que se seguiram.

Em sua dissertação de mestrado intitulada “Filhas e filhos da diáspora: narrativas da segunda geração da imigração chinesa a Curitiba”, Maria Victória Ribeiro Ruy mostra como foi construída e definida a representação da população que deixou Guangdong e veio até a capital paranaense. O estudo investiga por meio de entrevistas de história oral com a segunda geração dessa imigração, as relações que eles estabelecem com o seu passado, além de retratar como se identificam dentro da sociedade brasileira.

Datar com precisão a chegada de cada família em Curitiba é um desafio. Segundo os filhos e netos dos imigrantes chineses, seus familiares viveram no Rio de Janeiro e em São Paulo antes de virem à capital paranaense. Lá, eles trabalhavam em comércios de outros chineses, onde aprendiam a profissão e a língua portuguesa. Curitiba se tornou atrativa pelo seu crescimento, o que resultou em um aumento no fluxo de pessoas no centro da cidade. O local carecia de lugares onde se poderia comer algo bom, simples e barato e os novos moradores aproveitaram essa oportunidade para criar pequenos negócios no ramo alimentício.

Mídia ajudou a disseminar estereótipos

De acordo com a pesquisadora, a imprensa curitibana passou a mencionar a população chinesa logo após a sua chegada na capital. Ruy destaca duas formas de representação que são complementares entre si. A primeira delas se refere ao estereótipo do comerciante chinês desonesto, que aparenta querer sabotar o Brasil.

“Em certas reportagens de más práticas por parte de comerciantes chineses, fica sugerido que essa falta seria resultado da malícia, de uma falha moral essencial, ou seja, racializada desses imigrantes”, destaca.

O outro estereótipo é o da minoria modelo, um exemplo a ser seguido por outras populações imigrantes. Segundo Ruy, essa forma de enxergar os chineses atribuía uma disciplina de trabalho e estudo extremamente rigorosos, o que resultaria em uma concorrência perigosa aos brasileiros.

“Pode parecer, à primeira vista, um estereótipo ‘positivo’, vantajoso. Mas é um retrato pouco humano, que estabelece expectativas irrealistas e pinta o grupo como ameaça, uma vez que também retrata os chineses como o Outro. Por isso digo que este segundo estereótipo não se opõe ao primeiro, mas o complementa”, afirma.

Para a pesquisadora, a essência dessas representações raciais se mantém a mesma ainda hoje. Exemplo disso foram as narrativas preconceituosas sobre a origem da pandemia de Covid-19.

”Tanto a explicação de que o vírus teria surgido dos hábitos ‘repugnantes’ dos chineses, quanto a acusação de que a China teria desenvolvido o vírus em laboratório são reproduções desses mesmos estereótipos, do perigo amarelo. Seja por serem sujos e incivilizados, seja por serem dotados de uma inteligência maligna, os chineses seguem representando uma sabotagem iminente ao Ocidente”, critica a autora do estudo.

História oral e memória: um dilema dentro da academia

De acordo com a professora do Departamento de História da UFPR, Roseli Boschilia, que orientou a pesquisa, os estudos de memória e história oral foram importantes aliados para o estudo. Segundo ela, havia pouca documentação escrita sobre a imigração chinesa em Curitiba a partir da década de 1950. Por isso, a produção de fontes orais assumiu um papel fundamental para o desenvolvimento da dissertação.

Boschilia destaca que a história oral é vista pela academia como pouco eficaz para a análise histórica. Entretanto, ela ressalta que o método é capaz de revelar vestígios humanos onde antes não se via.

“Devemos lembrar que a história oral possibilita que pessoas que não escreveram diários, que não escreveram cartas, que não deixaram documentação escrita sobre a sua experiência de vida, tenham a possibilidade de uma escuta, de alguém que se disponha a conversar, a fazer uma interlocução e gravar esse tipo de experiência, na qual, assim como as cartas e nas biografias, você tem a manifestação dos afetos, dos sentimentos, dos ressentimentos, questões que nem sempre vão aparecer na documentação oficial”, ressalta.

A partir da metodologia, torna-se possível que diferentes segmentos sociais que não deixaram vestígios de sua experiência sejam acessados por historiadores. Uma outra crítica feita a esse método diz respeito à sua credibilidade. Por se tratar de narrativas pessoais, o depoimento poderia ser contaminado pela imaginação do entrevistado. De acordo com a professora, o cuidado que se deve ter não se restringe somente às fontes orais.

“Durante muito tempo a historiografia deu um protagonismo muito grande para os inscritos partindo do pressuposto que os documentos escritos seriam mais verdadeiros que narrativas. O que não é verdade, porque tanto a documentação escrita quanto a documentação oral têm que passar pelo crivo”, afirma.

Ser brasileiro ou ser chinês

O estudo mostrou processos que afetaram hábitos e representações culturais dos imigrantes e seus descendentes, como a sobreposição entre as identidades de japoneses e chineses e o abandono de práticas devido ao preconceito.

De acordo com Ruy, aparecem pontos em comum com a representação da imigração japonesa mas também divergências que são explicadas pela geopolítica de cada momento. “Os processos de racialização de chineses e japoneses se dão em camadas que vão se somando, se sobrepondo”, afirma.

No século XIX, a China viveu o chamado “século da humilhação”, momento em que foi invadida e ocupada por diferentes potências ao mesmo tempo. Em contrapartida, o Japão crescia enquanto potência em busca de alcançar os impérios ocidentais. Dentro desse contexto, então, não foi difícil para que os chineses recebessem um olhar mais pejorativo em relação às outras nações.

As entrevistas mostraram o impacto das representações nessa população. A forma como os descendentes dos imigrantes enxergam e se relacionam com a própria origem étnica foi afetada pelos significados ruins que foram atribuídos a ela durante a história:

“Quando a língua chinesa é sempre alvo de piadas, as comidas tradicionais tidas como repugnantes, é claro que isso afeta a continuidade dessas práticas”, ressalta Ruy. As identificações positivas, então, se tornam limitadas e o orgulho que permite a continuidade das tradições é quase extinto.

Aliado a isso, vem o dilema de reivindicação da brasilidade. Ao mesmo tempo que ser chinês não é visto como algo positivo, ser brasileiro também não é permitido. Mesmo que os descendentes dessa população tenham nascido no Brasil, são vistos e tratados como estrangeiros. Ser brasileiro, então, se torna uma luta constante, na qual é preciso até mesmo elaborar argumentos para que a própria identidade não seja negada. [1], [2]

[1] Texto de Thiago Fedacz, sob supervisão de Rodrigo Choinski e Camille Bropp.

[2] Publicação original: https://ciencia.ufpr.br/portal/nem-chines-nem-brasileiro-pesquisa-expoe-as-angustias-dos-filhos-dos-imigrantes-que-se-fixaram-em-curitiba/.

Como citar este texto: UFPR. Nem chinês nem brasileiro: pesquisa expõe angústias dos filhos dos imigrantes que se fixaram em Curitiba. Texto de Thiago Fedacz. Saense. https://saense.com.br/2023/12/nem-chines-nem-brasileiro-pesquisa-expoe-angustias-dos-filhos-dos-imigrantes-que-se-fixaram-em-curitiba/. Publicado em 05 de dezembro (2023).

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