Josué Modesto dos Passos Subrinho
19/06/2024

O prefeito Graciliano Ramos e a educação
Graciliano Ramos, 1940, Arquivo Nacional, Wikipédia, Domínio público

A republicação de dois relatórios anuais de gestão do prefeito do município alagoano de Palmeiras dos Índios, Graciliano Ramos, referentes aos anos de 1928 e 1929, enviados ao Governador do Estado e o relatório apresentado ao Conselho Municipal no início da gestão, sob a responsabilidade da Editora Record, com prefácio do Presidente Lula, permite as novas gerações um vislumbre do pensamento e ação do grande escritor diante da administração municipal. Relatórios de gestão não são exatamente documentos de leitura preferencial para os cultores da língua. Um formato padronizado e a objetividade esperada das informações produzem peças cujo maior valor, provavelmente, está nos dados, nos números e, por vezes, em alguns julgamentos acerca dos problemas mais prementes ou mais permanentes da comunidade administrada pelo autor do documento. [1]

Graciliano Ramos aproveitou a obrigação de apresentar relatórios ao Governador do Estado e ao Conselho Municipal para descrever com ironia, concisão e acurácia a situação dramática dos serviços públicos, as resistências dos servidores, a insolência dos relativamente privilegiados em recusar a pagar os tributos e a violência da arrecadação dirigida preferencialmente aos que não tinham instrumentos de defesa. Para sorte dos futuros leitores, esses relatórios chegaram ao conhecimento de Augusto Frederico Schimidt, poeta e editor, que acreditou que um prefeito que utilizava a língua com tal destreza deveria ter alguma produção literária, e assim se revelou para um público muito mais amplo o talento de Graciliano Ramos.

Longe de uma análise abrangente dos relatórios do prefeito, desejamos fazer um recorte: como a educação aparece nos relatórios e quanto o município dispendia com ela, nos anos de 1928 e 1929. [2]

Os dois relatórios encaminhados ao governador do estado são acompanhados dos balanços do orçamento do município discriminando as receitas e despesas. Em 1928, a receita total foi de 71:649$290 (setenta e um contos e seiscentos e quarenta e nove mil e duzentos e noventa réis). Não era fácil arrecadar esse montante, pois como esclarece o angustiado prefeito:

“Não há listas dos devedores da municipalidade: a cobrança das contas atrasadas é impossível. De resto o contribuinte, que se desempenha bem para com a repartição estadual e federal, está habituado a pagar à Prefeitura se quer, com que e quando quer.

Isto se explica pelo fato de sermos todos, prefeitos, conselheiros e contribuintes, mais ou menos compadres.” [3]

Fazendo desafetos entre parentes e aderentes, o prefeito conseguiu elevar no ano seguinte a arrecadação para 107:969$932, ou seja, um crescimento de aproximadamente 51%.

A arrecadação municipal era obtida de uma profusão de taxas e licenças. Em 1928 as que geraram maiores receitas foram as taxas sobre as carnes verdes, 18:742$000, sobre as feiras, 16:780$000 e licença para estabelecimentos, 9:265$000. Arrecadações sobre a propriedade imobiliária, a décima urbana, 4:914$040 e sobre as terras do Estado, 6:491$100 completam a lista dos maiores valores totalizando 56:192$140, equivalente a 78,4% do total da receita.

 O prefeito relata o seu método para elevar as rendas do município.

“Chamei um advogado e tenho seis agentes encarregados da arrecadação, muito penosa. O município é pobre e demasiado grande para a população que tem, reduzida por causa das secas continuadas.” [4]

O esforço arrecadatório surtiu efeito, como antecipamos. No ano de 1929 as principais fontes da arrecadação foram: feiras, 25:281$400, carnes verdes, 23:442$00, indústria e comércio, 15:206$000 e a arrecadação sobre a propriedade imobiliária, décima urbana, 7:622$280 e terras públicas, 8:038$250. Essas fontes totalizaram 79:589$930, equivalente a 73,7% do total.

No tocante às despesas, as principais rubricas, em 1928, foram: limpeza pública, 25:111$152, administração municipal, 11:457$497, iluminação pública, 8:921$800, arrecadação das rendas, 5:602$244 e Filarmônica 16 de setembro 1:990$660 totalizando 51:092$693, ou seja, 71,3% das despesas anuais. Chama a atenção a representatividade de serviços urbanos prestados pela prefeitura, limpeza e iluminação pública. O custeio da administração, sob a rubrica administração municipal e arrecadação de rendas é o segundo grupo mais importante. Finalmente, o subsídio a uma atividade cultural, recebido pela Filarmônica que possivelmente distraia a população exibindo o talento dos músicos nos domingos e ocasiões especiais.

No ano de 1929, com o caixa reforçado o prefeito dirigiu os recursos arrecadados principalmente para viação e obras públicas, 56:644$495, para o custeio da administração municipal, 22:667$748, higiene, 8:545$190 e iluminação pública, 7:800$000, totalizando 95:657$433, ou seja, 88,6% da despesa anual.

O prefeito ficou muito entusiasmado com os serviços de aterros e limpeza de terrenos abandonados na área urbana, com as melhorias nas estradas, com as possibilidades de reformar o cemitério, ação adiada em favor dos cidadãos vivos que demandavam com maior insistência a atenção da municipalidade. Pelo peso que o setor de viação e obras públicas assumiu no orçamento municipal, poderíamos afirmar que o prefeito tacitamente concordava com a afirmação do Presidente da República Washington Luiz que governar é abrir (e manter) estradas.

 E a educação, qual a relevância dada pelo prefeito escritor?

Nos relatórios as menções são breves. Há um comentário sobre a falta de investimentos e outro comparando a qualidade dos gastos, no relatório de 1928, dirigido ao Conselho Municipal nos seguintes termos:

“Nada tenho despendido com estradas, obras públicas e instrução, porque tenciono empregar nelas o que sobrar dos gastos ordinários e quero evitar serviços que, por falta de numerário, possam vir a ser interrompidos.” [5]

O prudente gestor público que se vê impedido de começar projetos nas áreas prioritárias, não pode deixar de comentar o escorregar dos parcos recursos para atividades que talvez não merecessem acessar ao orçamento municipal, insinuando que há indícios de gastos não adequadamente contabilizados e sujeitos ao escrutínio dos cidadãos.

“Acho absurdo despender um município que até agora nada gastou com a instrução 2:000$000 para manter uma banda de música. Dois contos de réis em letra de forma: os dispêndios têm sido maiores. Chamo a atenção do Conselho para o lançamento que existe à folha 179 do livro-caixa com data de 04 de janeiro: “Importância paga a Manoel Orígenes para fornecimento de 23 fardamentos para a banda de música municipal – 1:152$000”. A despesa não foi autorizada, os fardamentos não foram entregues.” [6]

A administração municipal era esquálida, não obstante em 1928 ser a segunda rubrica mais importante em termos de despesas, ela custeava os vencimentos do prefeito, de dois secretários (um efetivo, outro aposentado), de dois fiscais, de um servente, impressão de recibos, publicações, assinatura de jornais, livros, objetos necessários à secretaria, telegramas.” [7]

Não há qualquer menção a professoras ou professores na folha de pagamentos do município, bem como não há rubricas especiais que demonstrem os gastos do município com a instrução, como se dizia na época.

No segundo ano da gestão do prefeito, em 1929, a educação é mencionada no relatório enviado ao Governador do Estado. A rubrica instrução foi contemplada com 2:886$180, sem dúvida um progresso em relação ao ano anterior, que como notou o prefeito, nada foi dispendido, preferindo-se a subvenção à banda musical. É tentador fazer uma comparação usando a métrica atual de dispêndios dos municípios com educação. A instrução recebeu o equivalente a 2,7% das despesas municipais. O prefeito anuncia a criação de escolas, concretizando sua promessa de priorizar o setor.

“Instituíram-se escolas em três aldeias: Serra da Mandioca, Anum e Canafístula. O Conselho mandou subvencionar uma sociedade aqui fundada por operários, sociedade que se dedica à educação de adultos.” [8]

Não há maiores informações sobre a escola dedicada à educação de adultos, mas por décadas durante boa parte do século XX, escolas fundadas por associações da sociedade civil e pela Igreja Católica disputaram com as escolas oficiais o acesso aos recursos públicos destinados à educação. Sobre a qualidade das escolas, o julgamento do prefeito não é animador.

“Presumo que esses estabelecimentos são de eficiência contestável. As aspirantes a professoras revelaram, com admirável unanimidade, uma lastimosa ignorância. Escolhidas algumas delas, as escolas entraram a funcionar regularmente.” [9]

Se não há qualquer traço de confiança na qualificação das professoras, tão amargo e permeado de ironia é a avaliação do que hoje chamaríamos de projeto político pedagógico das escolas.

“Não creio que os alunos aprendam ali grande coisa. Obterão, contudo, a habilidade precisa para ler jornais e almanaques, discutir política e decorar sonetos, passatempos acessíveis a quase todos os roceiros.” [10]

Em 10 de abril de 1930, Graciliano Ramos renuncia ao cargo de prefeito e no mês seguinte assume o cargo de Diretor da Imprensa Oficial de Alagoas, em Maceió, permanecendo na direção até nova renúncia, em 1931. Em 1933 foi nomeado diretor da Instrução Pública, cargo equivalente ao de Secretário da Educação. O ano de 1936 foi mais turbulento, em consequência de uma tentativa de golpe de estado, promovida pela baixa oficialidade do Exército, no ano anterior, os chamados tenentes, e no contexto de um movimento cívico-militar da Aliança Nacional Libertadora. Graciliano Ramos, simpatizante do movimento, é preso e levado para o Rio de Janeiro, onde ficaria detido com outros revoltosos e militantes. Em 1939 é nomeado Inspetor Federal de Ensino Secundário do Rio de Janeiro.

Ressaltamos que além do cargo de prefeito, Graciliano Ramos assumiu por duas ocasiões cargos relevantes para a gestão da educação pública. A atuação dele nesses cargos transcende o foco deste artigo. Voltemos ao ponto inicial: o que os relatórios do prefeito Graciliano Ramos, após quase um século, podem nos informar sobre a evolução e os problemas da educação municipal?

O primeiro ponto é a insignificância dos recursos destinados pelos municípios à educação, quer seja através de estabelecimentos oficiais, quer seja pela subvenção de escolas comunitárias.

A estreita base tributária dos municípios e as dificuldades políticas em efetivar a arrecadação, conforme relatado pelo prefeito, iam postergando os investimentos dos municípios na educação. O resultado foi que o Brasil se atrasou muito na alfabetização e na educação primária de sua população, mesmo quando comparado com países Latino-Americanos, sem falar nos países desenvolvidos da Europa e América do Norte. [11] Esse grave problema foi percebido por intelectuais, reformadores sociais e revolucionários, entre os quais os chamados pioneiro da educação nova, cujo manifesto, de 1932, defendia que o Estado organizasse um plano nacional de educação e defendia uma escola pública, laica, obrigatória e gratuita. Sob a influência dessas ideias a Constituição Federal de 1934 determinou a vinculação de recurso, nos seguintes termos:

“Art. 156. A União e os Municípios aplicarão nunca menos de dez por cento, e os Estados e o Distrito Federal nunca menos de vinte por cento, da renda resultante dos impostos na manutenção e no desenvolvimento dos sistemas educativos.” [12]

Podemos imaginar o impacto que teve sobre os orçamentos municipais a aplicação do dispositivo constitucional citado. Como vimos, em 1929, Palmeiras dos Índios, sob a direção de Graciliano Ramos, investiu apenas 2,7% de suas receitas na educação municipal, se este patamar tivesse sido mantido pelos sucessores do prefeito até os anos 1930, após a vigência da Constituição Federal seria necessária uma multiplicação por 4 dos recursos dirigidos à educação. Na Constituição Federal de 1937, entretanto, esse dispositivo não permaneceu, sendo restabelecido apenas na Constituição de 1946, com a redemocratização do Brasil.

A grande inovação que permitiu a expansão da educação básica municipal, que hoje supera em número de matrículas as redes estaduais e redes privadas, foi o estabelecimento de fundos contábeis, no âmbito dos estados, para transferência automática de recursos aos municípios e redes estaduais de acordo com o número ponderado calculado de alunos matriculados. Ao reunir parte substancial dos recursos vinculados, tanto do estado quanto dos municípios e redistribuí-los de acordo com a matrícula e, recebendo suplementação do Tesouro Nacional, sob condições legalmente fixadas, esses fundos, incialmente o FUNDEF e em seguida o FUNDEB transitório e o atual FUNDEB permanente, permitiram a universalização do Ensino Fundamental e a expansão da Educação Infantil, superando as limitações orçamentárias dos municípios.

Resumindo, sob o ponto de vista do financiamento da educação municipal tivemos um grande avanço, visto que boa parte dos recursos utilizados pelos municípios para a manutenção e desenvolvimento de suas redes escolares não dependem da arrecadação de tributos municipais, visto que o FUNDEB é a principal fonte de financiamento, suplementada por outras transferências do Governo Federal e, eventualmente, dos governos estaduais. Há no horizonte um requisito a ser regulamentado para acompanhamento dos municípios que se omitem de realizar a arrecadação de tributos municipais, a exemplo do Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana (IPTU). É possível que no futuro os municípios que não arrecadarem os impostos previstos fiquem sem acesso à parcela VAAR do FUNDEB, mesmo atendendo às outras condicionalidades. [13]

Quanto à qualificação das professoras e professores que impressionou tão negativamente o prefeito de Palmeiras dos Índios, o progresso na titulação legalmente exigida, desde a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, tem sido impressionante. Atualmente a maioria das professoras e professores possui formação em nível superior, com a habilitação e adequação à área de atuação. O mecanismo de valorização e profissionalização do magistério contido no FUNDEF e FUNDEB foi eficaz. As chamadas professoras leigas, quando ainda atuantes, são sobrevivências de uma realidade histórica em boa parte superada. A maioria ou se qualificou em serviço ou já ingressou na carreira com as qualificações exigidas.

Sobre a adequação dos projetos político-pedagógicos de nossas escolas às necessidades dos estudantes parece que há muito a ser aperfeiçoado. Nossas dificuldades em alfabetizar as crianças nos primeiros anos do Ensino Fundamental, especialmente concentrada entre os mais pobres, os residentes na zona rural e os pretos, pardos e indígenas permanecem. A separação do ensino propedêutico com o profissional e as elevadíssimas taxas de reprovação escolar e consequente distorção idade-série leva ao abandono e evasão escolar. Para os municípios uma prioridade é a ampliação da oferta de vagas em creches, especialmente para a população mais carente, que é exatamente a que tem tido menos acesso, perpetuando ciclos de fragilidade e de exclusão. No pós-pandemia da covid-19 ressurgiu a preocupação quanto à universalização da matrícula na Pré-Escola e nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, etapas sob a responsabilidade dos municípios ou sob forte predomínio de suas redes.

Quanto aos níveis aferidos de qualidade de ensino, depois de muitos anos de cobranças aos municípios principalmente quanto à matrícula das crianças e jovens, a questão da qualidade do ensino ministrado e aprendido passou a ocupar um lugar central. Adicionalmente, passou a ser objeto de aferição as diferenças de aprendizagem entre os mais ricos e os mais pobres, entre os brancos e não brancos. Essas medidas terão consequências, por exemplo, no acesso à parcela VAAR do FUNDEB, que está sujeita ao atendimento de condicionalidades, entre as quais a melhoria na qualidade de ensino com redução de desigualdades socioeconômicas e raciais. [14]

Outro desafio para os municípios será a profissionalização e qualificação dos dirigentes escolares, os quais além de serem escolhidos por critérios de mérito e desempenho, abandonando a simples indicação política, também precisarão liderar com competência suas comunidades escolares, tarefa que exige formação específica, geralmente não contemplada na formação inicial dos professores. Se o prefeito tiver a sorte de o seu Estado ter institucionalizado um eficiente regime de colaboração com os municípios, ou estiver localizado nas poucas regiões do País onde os próprios municípios organizaram consórcios intermunicipais para a melhoria da qualidade de ensino, a tarefa será fortemente aliviada.

Enfim, são muitos os desafios para a gestão da educação municipal. A leitura dos relatórios do prefeito Graciliano Ramos poderá inspirar muitos dos atuais prefeitos e candidatos a sucedê-los a ter uma perspectiva histórica, avaliando o quanto avançamos e o quanto permanecem desafiadores vários aspectos da educação municipal. Talvez desperte também o talento literário de alguns, levando-os à imortalidade dos gênios das letras. Mas será suficiente se conseguirem colocar a educação nas prioridades orçamentárias e das preocupações cotidianas fornecendo exemplos diários aos cidadãos e cidadãs sobre a verdadeira aposta no futuro que se faz através da educação.

[1] Ramos, Graciliano. O prefeito escritor: dois retratos de uma administração. Rio de Janeiro: Record, 2024.

[2] Vide, Jaconi, Sônia. Graciliano Ramos: o prefeito escritor. Lcte. 2014.

[3] Idem, ibid., pag. 14.

[4] Idem, ibid. pag. 21.

[5] Idem, ibid. pag. 13.

[6] Idem, ibid. pag. 14.

[7] Idem, ibid. pag. 20.

[8] Idem, ibid. pag. 36.

[9] Idem, ibid. pag. 37.

[10] Idem, ibid. pag. 37.

[11] Gois, Antônio. O ponto a que chegamos: duzentos anos de atraso educacional e seus impactos nas políticas do presente. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2022.

[12] Constituição Federal de 1934. chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.fe.unicamp.br/pf-fe/publicacao/5148/art10_30.pdf.

[13] Passos Subrinho, Josué Modesto dos. Novo FUNDEB. Ano IV. https://saense.com.br/2024/01/novo-fundeb-ano-iv/.

[14] Idem, ibid.

Como citar este artigo: Josué Modesto dos Passos Subrinho. O prefeito Graciliano Ramos e a educação. Saense. https://saense.com.br/2024/06/o-prefeito-graciliano-ramos-e-a-educacao/. Publicado em 19 de junho (2024).

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