UFRGS
16/08/2024

Sobre o fato de a natureza não respeitar a escala do tempo humano
Matias Ritter, Francisca de Moura, Maria Luiza Rosa e Felipe Caron, Natureza, Tempo humano, 

As questões ambientais e climáticas tiveram sua importância reconhecida nas últimas semanas devido ao maior desastre hidrológico do estado do RS. Da pior forma possível, nos deparamos com um evento drástico e súbito, especialmente para a escala de tempo humana.

A nossa percepção do tempo é cunhada por uma agenda diária, semanal, mensal e, algumas vezes, anual. Ela é composta pela passagem das estações do ano, pelo calendário escolar, pelas férias, pelos aniversários, pelo nosso tempo médio de vida. Para nós, é difícil pensar para além do tempo que compreende nossa breve passagem por esse mundo. 

O último evento bem documentado, similar ao de maio de 2024, ocorreu em 1941, aproximadamente oito décadas atrás. Sabemos desse evento pelos registros escritos e fotográficos, que fazem parte da história de muitas cidades afetadas e que transpassa algumas gerações. Embora nem toda a sociedade, por diversas razões, conheça a ocorrência desse evento e suas consequências, ele aconteceu e foi registrado. 

Outros eventos ambientais, contudo, também aconteceram no Rio Grande do Sul, muitos em tempos anteriores ao da nossa história escrita ou falada. Em outras palavras, nem nossos avós e bisavós os presenciaram e, assim, não houve relato através das gerações. Sob o ponto de vista humano, parece que não aconteceu, pois não temos o registro.

Distintos episódios ambientais que aconteceram fora da nossa documentação escrita, porém, estão registrados de outras formas, como na própria cultura dos povos originários. Assim como nossa percepção mais acurada fica marcada por eventos extremos, o relato repassado de geração em geração normalmente preserva o fora do padrão: uma enchente catastrófica, uma seca que acabou com toda a produção agrícola, uma peste, etc.

Tanto quanto os eventos de 1941 e 2024, esses eventos tendem a nos ensinar sobre padrões da natureza, inclusive os dos seus extremos. Para entender o que é o padrão usual e o que são extremos, precisamos de um comparativo, de uma linha de base. A enchente de 2024 alcançou marcas superiores à de 1941. Sem o registro do evento de 1941, não teríamos uma linha de base comparativa. 

Em outras palavras, o registro escrito ou transmitido nos permite reconhecer eventos fora da média normal de padrões ambientais ao comparar eventos. Diversos eventos, contudo, não têm registros em pergaminhos ou relatos, mas, sim, em outro tipo de arquivo muito importante: o registro sedimentar.

Esse registro opera numa escala de tempo que chamamos de tempo geológico. Ela difere do nosso calendário, que opera em dias, semanas, anos, décadas e séculos, e que remonta tecnicamente ao que chamamos de anos-calendário ou a Era Comum, que nos posiciona em 2024.

Para o tempo geológico mais recente, o Quaternário é usualmente expresso em anos antes do presente, sendo que o presente remete ao ano de 1950, quando as curvas de calibração foram propostas. Esse tempo é utilizado para posicionarmos a origem do Homo sapiens, nossa espécie, por exemplo, 300 mil anos antes do presente. Ou ainda, para marcarmos o tempo no qual nossa espécie chegou na América do Sul, algo como no mínimo 12-13 mil anos antes do presente.

O tempo geológico transcende nossa escala de tempo e é, muitas vezes, difícil de utilizarmos no nosso dia a dia. Esse arquivo disponível nos depósitos sedimentares tem, contudo, muitas histórias a contar sobre eventos ambientais climáticos e serve como linha de base, num futuro já não distante, a eventos climáticos extremos.

Um exemplo didático para auxiliar nessa percepção foi o vídeo elaborado por pesquisadores do Centro de Estudos de Geologia Costeira e Oceânica, do Instituto de Geociências, em parceria com pesquisadores do Centro de Estudos Costeiros, Limnológicos e Marinhos do Câmpus Litoral Norte, ambos da UFRGS.

Os centros têm décadas de pesquisas voltadas aos ambientes costeiros e marinhos. O exemplo citado mostra a relação entre as áreas alagadas pela enchente de 2024 com o contexto geológico da evolução das áreas costeiras emersas do estado do RS, cuja história geológica está impressa inclusive na região metropolitana de Porto Alegre. Áreas mais recentes, geologicamente falando, são relativamente mais baixas devido a sua história de formação e, por isso, foram as mais afetadas. Em suma, o mapa geológico dessa região é um preditor geral de áreas sensíveis a eventos extremos.

Embora não destacado em pergaminhos e em jornais, esses sedimentos guardam a história de eventos climáticos relativamente frios (glaciais) e quentes (interglaciais), que resultaram em oscilações positivas e negativas do nível relativo do mar registradas no RS, pelo menos, nos últimos 300 mil anos. 

Os povos originários, não obstante, que vivem na costa do RS há pelo menos 10 mil anos, presenciaram grandes mudanças ao longo de suas gerações, incluindo a última grande elevação do nível do mar, que esteve cerca de 2 metros acima do atual há aproximadamente 6 mil anos. Esses povos não deixaram registros na forma de jornais como conhecemos, mas formaram os sambaquis (amontoado de conchas de moluscos). E são muitos os sambaquis ao longo do litoral médio e norte do RS. Esse registro é fundamental, pois nos permite acessar uma parte importante da história que, infelizmente, tem sido destruída (veja maiores detalhes nesse artigo do JU).

O conhecimento resgatado desses depósitos sedimentares por diversos pesquisadores tem mostrado que em períodos de nível de mar alto, por exemplo, seu registro é mais bem documentado, pois temos maior biodiversidade e maior espaço para os sedimentos se acomodarem e “escreverem” (preservarem) sua história. Ou seja, temos um viés da literatura geológica, como também acontece na história escrita: nem tudo é registrado. Os estudos também apontam que setores da costa com determinado comportamento podem ser mais sensíveis e oferecer risco à ocupação humana, pois são áreas sujeitas à erosão costeira, por exemplo. Embora muitas vezes imperceptível na escala humana, o documentário geológico é muito precioso.

Esse conhecimento, construído por gerações de pesquisadores, fornece linhas de base que podem orientar a ocupação humana e a gestão sustentável dos recursos costeiros. A sua aplicação é fundamental para traçar planos de ocupação costeira em áreas sensíveis à erosão e inundação, por exemplo. Na nossa escala de tempo, construir e investir em determinados lugares, além de potencialmente impactar a biodiversidade, pode ser arriscado, tanto em termos sociais quanto econômicos.

Na catástrofe que estamos presenciando, os prejuízos ainda estão muito além dos já mensurados. Os elevados recursos investidos na expansão podem gerar prejuízos imensuráveis por falta de compreensão da literatura geológica, dos pergaminhos escritos nos depósitos sedimentares costeiros.

O registro escrito e falado das pesquisas, que já transpassa gerações, nos levou a propor uma abordagem que tentará integrar os diferentes registros ambientais: geológicos e escritos, para, em diferentes escalas de tempo, reconstruir linhas de base de ambientes costeiros, nossa especialidade, sob o ponto de vista biológico e geológico, para fornecer dados para um melhor planejamento dessas regiões. O projeto “Desvendando crises bióticas na biodiversidade costeira: uma abordagem integrada com a Paleobiologia da Conservação”, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), visa convergir diferentes esforços numa abordagem inédita, pelo menos nacionalmente. 

Os resultados preliminares, compilados a partir de estudos geológicos prévios e a partir de relatos históricos, já nos permitiram desenhar uma espécie de linha do tempo de alterações dos ambientes da Lagoa de Tramandaí e arreadores. Notem que o termo alteração aqui não remonta a algo necessariamente negativo, mas, sim, a um estado diferente do anterior, uma mudança ao longo do tempo. Esse calendário da região permite posicionar linhas de base que ultrapassam a escala humana, mesmo o relato falado. Por exemplo, um fenômeno ícone do litoral norte do RS, a pesca cooperativa entre pescadores e botos, remonta pelo menos ao ano de 1906, o que conhecemos através de um registro histórico (E. Roquette-Pinto, no seu relato publicado em 1962). Esse registro é bem anterior à construção de um guia corrente para fixar o canal de conexão entre a laguna de Tramandaí e o Oceano Atlântico, em 1957. Esse registro é confirmado pela oralidade e está nos relatos dos pescadores da região.

Nosso objetivo, além da questão científica, é compreender que alterações captadas por diferentes registros podem nos guiar frente a um cenário futuro de eventos extremos. Em outras palavras, o que podemos e devemos aprender a partir do que a natureza nos relata das mais diversas maneiras. Além disso, o ser humano é compreendido como parte da natureza através de suas ações, relatos e impressões em momentos muito distintos de um lugar. Nosso projeto está iniciando e irá ganhar muito com novas parcerias de pesquisadores de outras áreas, como arqueólogos, historiadores, geógrafos, e com a sociedade em geral, bem como está aberto a jovens pesquisadores e gestores. Essa perspectiva também é possível de ser implementada em outras regiões brasileiras, ampliando a capacidade sustentável e segura da nossa existência, embora breve do ponto de vista geológico. [1], [2]

[1] Texto de Matias Ritter e outros autores

[2] Publicação original: https://www.ufrgs.br/jornal/sobre-o-fato-de-a-natureza-nao-respeitar-a-escala-do-tempo-humano/

Como citar esta notícia: UFRGS. Sobre o fato de a natureza não respeitar a escala do tempo humano. Texto de Matias Ritter e outros autores. Saense. https://saense.com.br/2024/08/sobre-o-fato-de-a-natureza-nao-respeitar-a-escala-do-tempo-humano/. Publicado em 16 de agosto (2024).

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