UFRGS
12/11/2024
Desde cedo, Vera Kaninka aprendeu com seu pai que, toda vez que nasce um pé de araucária, nasce um ser Kaingang. A araucária, a fag, possui o tom, mesmo espírito que habita todos as pessoas e seres Kaingang, singular para cada um. Assim como os humanos, a araucária, utilizada pelos Kaingang na alimentação, educação, artesanato e como recurso espiritual, também é descendente dos irmãos Kamé e Kairu, responsáveis por criar todas as formas de vida e povoar a terra, segundo a cosmologia Kaingang.
Professora, hoje Vera trabalha com seus alunos da Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Fag Nhin o mesmo conhecimento que aprendeu com seu pai. Alocada no limite invisível que separa Porto Alegre de Viamão, a escola recebe crianças e adolescentes dos seis aos 17 anos, que definem as regras das brincadeiras no intervalo entre as aulas em uma mistura de português e kaingang. Além da Matemática e do Português, os alunos da Fag Nhin também são apresentados desde cedo às disciplinas de Língua Kaingang e de Valores Culturais, que substitui o Ensino Religioso na grade curricular da escola a partir do sexto ano do ensino fundamental.
É através da disciplina de Valores Culturais, lecionada por Vera, que a juventude da aldeia Fag Nhin, que se estende por 3,7 hectares cerceados por terra fog — não indígena, em Kaingang — na Lomba do Pinheiro, zona leste de Porto Alegre, entra em contato com a culinária tradicional ensinada pelos mais velhos. Todas as segundas-feiras, a comunidade da aldeia tem compromisso marcado: no centro cultural, que tem suas paredes de madeira estampadas pelos grafismos Kaingang, estudantes, professores e pais se reúnem ao redor do fogo para preparar e consumir as receitas que são passadas de um Kaingang a outro há gerações.
Sob o pé de araucária plantado no pátio da escola para comemorar a recente reforma entregue pelo governo estadual, Vera demonstra preocupação com um possível esquecimento da culinária e de outras formas de fazer Kaingang pelas novas gerações. “Dentro da escola, as crenças são revividas”, afirma.
“Os alunos precisam levar [adiante os conhecimentos] pra que futuramente contem para os filhos deles, pra que não sejam perdidos esses costumes”Vera Kaninka
Falta de terras para plantio dificulta preparo de receitas tradicionais
Na aldeia Jata’ity, em Viamão, onde vivem cerca de 160 indígenas Mbyá-guarani, quase não se consome mais o kaguijy. Preparada pelo processo de fermentação do milho, a bebida costumava ser tradicionalmente consumida pela manhã, antes do trabalho, para fornecer energia para o resto do dia. Atualmente, sem espaço propício para o cultivo do milho e de outras hortaliças nos 283 hectares que a aldeia abrange no distrito de Itapuã, para muitos dos Mbyá que vivem na terra indígena, o café em pó fornecido nas cestas básicas que recebem como doações tomou o lugar do kaguijy no café da manhã.
Para outros habitantes da Jata’ity, a situação é ainda mais complexa. Com o acesso cada vez mais facilitado a produtos ultraprocessados e a dificuldade crescente em acessar os ingredientes necessários para a produção de receitas tradicionais, a moradora Carina da Silva agora começa seus dias bebendo refrigerante. “Já não é mais saudável o que eu tô consumindo, daí eu já fico meio doente”, conta. “O que a gente consumia antes já ficou pra trás, e a gente tá consumindo mais a alimentação de vocês [os não indígenas] agora.”
“Como a gente tá perdendo a terra, a gente perde também a nossa cultura”Carina da Silva
O limite traçado por Carina entre a alimentação tradicional dos Mbyá e a alimentação dos não indígenas — os juruá, em guarani — é uma demonstração fundamental sobre o que os hábitos alimentares representam na cosmologia Mbyá-guarani. Conforme o professor do curso de Arqueologia da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e doutor em Antropologia Social pela UFRGS Mártin Tempass, os Mbyá acreditam que a alimentação tradicional foi ensinada por Ñande Ru Tenondé, o ser criador na mitologia Tupi-guarani, e por outras divindades. Segundo essa cosmologia, é através da alimentação adequada e de outros cuidados com o corpo e o espírito que os Mbyá-guarani se transformariam em divindades após a morte. “A chave pra esse viver corretamente está na alimentação”, explica o professor.
As cestas básicas doadas por entidades privadas ou governamentais passam longe de resolver o problema e fornecer alimentação adequada aos moradores da Jata’ity. “Eles chamam de cesta básica, e é básica mesmo”, observa Carina. As cestas doadas são as mesmas encontradas em mercados, que consistem geralmente de arroz, feijão, macarrão, açúcar, café e óleo de cozinha, e não levam em consideração as especificidades da alimentação tradicional Mbyá ou seus ingredientes principais. O milho, a mandioca e a erva-mate, por exemplo, são itens essenciais para a alimentação e a espiritualidade dos habitantes da aldeia, mas de difícil acesso. “Não vêm alimentos ou comidas que são tradição nem sementes”, lamenta Carina.
Mesmo com a falta de espaço adequado para plantio, alguns moradores ainda ensaiam pequenas plantações de mandioca, melancia e milho em diferentes pontos da aldeia. As tentativas, no entanto, não costumam ser frutíferas: o pouco que se produz durante a safra precisa ser guardado para que haja plantio no próximo ano, e o que sobra para consumo é insuficiente. “Tem alguns anos que dá pra colher, mas não dá pra fazer muita coisa, porque é bem pouco. Como já não tem o espaço, eles plantam de pouquinho em pouquinho”, conta Carina.
Na Fag Nhin, o espaço vazio no gramado atrás da escola é símbolo da espera ansiosa da comunidade Kaingang. Os moradores aguardam a verba do governo estadual para estabelecer, no pedaço de terra que hoje é apenas um matagal, uma horta própria que diminua a necessidade pela compra de insumos para a produção de suas receitas tradicionais. Enquanto isso, a maioria dos ingredientes utilizados na alimentação dos moradores da aldeia é comprada em mercados próximos à aldeia, além dos limites da terra indígena.
Desmatamento diminui possibilidades de caça
Antes de entrar na mata para se alimentar, os Mbyá-guarani sempre pedem permissão aos espíritos da floresta. Na cosmologia guarani, bem como os seres humanos, as matas, as águas e os animais possuem espíritos e é preciso permissão para modificar de qualquer maneira o delicado equilíbrio da natureza. “Quando eu vou na casa de alguém, eu peço permissão antes de entrar, e a pessoa decide se me dá ou não permissão”, explica Carina. “Com a natureza, é a mesma coisa.”
Quando se trata da caça, a mesma lógica se aplica. Nenhum Mbyá deve caçar um animal sem justificativa ou sem a permissão da mãe-terra. É apenas quando a devida permissão é dada que o animal pode ressuscitar mais tarde. “Porque é igual a gente, eles têm a mãe e o pai, a família”, aponta Carina. “A gente vai sentir falta se alguém matar o nosso filho ou o nosso parente. É assim também com os bichos, eles também têm sentimentos.”
Os juruá que vivem ao redor das terras indígenas, no entanto, não pedem permissão à mãe-terra antes de entrar em suas matas, derrubar suas árvores e caçar seus animais. Por isso, na Jata’ity, que é cercada por sítios e imóveis residenciais na estrada do Cantagalo, é cada vez mais raro o avistamento dos tatus, gambás e porcos-espinhos que costumavam circular por ali e servir como proteína na alimentação dos habitantes da aldeia. “Quanto mais vai desmatando, as caças também vão se afastando”, observa. “Eles também procuram lugar pra viver. É sobrevivência, igual a gente.”
Hoje, a maior parte da proteína animal que acaba nos pratos dos Mbyá-guarani da Jata’ity é proveniente das galinhas que são criadas dentro da aldeia. Os poucos animais que ainda são caçados são preparados e consumidos principalmente pelos mais velhos, que sabem os lugares exatos onde cortar e as partes que precisam ser retiradas por não serem próprias para consumo. Os métodos de preparo da carne proveniente da caça, que são passados de uma geração Mbyá para outra, são cada vez menos difundidos entre os jovens da aldeia. “Os mais jovens, os adolescentes, não sabem mais preparar”, conta Carina.
Ensinamentos sobre culinária tradicional são passados desde cedo
Por conta da escassez dos ingredientes necessários, Carina nunca aprendeu a preparar a maioria das receitas das quais fala — algumas, ela sequer chegou a consumir. Tudo o que ela sabe é resultado do conhecimento passado pelos mais velhos, que ela chama de sábios, desde que era criança. Para os Mbyá-guarani mais novos, muitas das receitas tradicionais existem apenas em memórias das quais eles não partilham, apenas ouvem falar, como ecos de um passado que eles não tiveram a chance de experienciar. “Nossos avós, nossos pais, sempre falam pra gente não esquecer, daí a gente não esquece. Só que a gente não tá mais conseguindo consumir.”
“Os mais velhos estão plantando pra gente não esquecer tudo, pra que a gente não deixe tudo pra trás, e eles tão correndo atrás pra poder voltar como antes, pra consumir mais e deixar um pouco de lado a comida de juruá”Carina Silva
Na Fag Nhin, a segunda-feira é um dia de pouco movimento nas salas de aula da escola. Todos os alunos preferem estar no centro cultural com seus pais e avós para aprender a culinária Kaingang. Do início da manhã até o final da tarde, os habitantes da aldeia se reúnem para aprender a importância e se familiarizar com o gosto de alimentos tradicionais, como o ẽmĩ, bolo azedo de milho feito no pilão e assado sob as cinzas de fogo de chão, e o fuá, que consiste no consumo de folhas de erva-moura, tudo ensinado pelos mais velhos aos mais novos.
O fogo aceso no centro cultural substitui as mesas e cadeiras, e o ambiente se transforma em uma sala de aula de ser e fazer Kaingang. “Essa é uma escola diferenciada porque a gente mantém os nossos costumes, as nossas tradições”, explica Vera.
Apesar das dificuldades crescentes no acesso à culinária tradicional, Vera acredita que as tradições Kaingang sobrevivem pelo respeito cultivado geracionalmente aos ensinamentos dos mais sábios. Como exemplo vivo disso, todos os dias as crianças e os adolescentes da escola Fag Nhin regam os pés de araucária no terreno da escola, comportamento ensinado pelos mais velhos como sinal de respeito e apreciação a Kamé e Kairu. Acima de uma das portas da escola, uma placa escrita na língua Kaingang pela professora exprime bem essa ideia e serve como mensagem para todos os alunos, para que não se esqueçam da importância da escuta atenta às vozes da experiência: “Todo ser Kaingang deve aprender com os mais velhos”, ela traduz. [1], [2]
[1] Texto de Ana Gonzalez
[2] Publicação original: https://www.ufrgs.br/jornal/ensinamentos-geracionais-ajudam-na-preservacao-da-culinaria-tradicional-indigena/
Como citar esta notícia: UFRGS. Ensinamentos geracionais ajudam na preservação da culinária tradicional indígena. Texto de Ana Gonzalez. Saense. https://saense.com.br/2024/11/ensinamentos-geracionais-ajudam-na-preservacao-da-culinaria-tradicional-indigena/. Publicado em 12 de novembro (2024).