UFRGS
20/03/2025

Pesquisas exploram os impactos da pandemia nos sonhos e destacam a dimensão coletiva do onírico
Foto: Flávio Dutra/Arquivo JU – Abril 2020

Os sonhos têm sido uma preocupação da humanidade desde os tempos mais remotos: o que significam, de onde vêm, como se formam? Filosofia, psicanálise e outras áreas do conhecimento já dedicaram páginas e páginas a essa tarefa. Eles também povoam a linguagem e a cultura, no sentido amplo da expressão. No entanto, podem ainda ser uma porta para a revelação dos efeitos do que a antropóloga Veena Das chamou de “evento crítico”.

Para Das, eventos críticos são momentos marcados pelo desencadeamento de um sofrimento repentino e inexplicável. Eles marcam uma quebra do cotidiano, acarretando transformações às noções e práticas sociais. Foi o caso da pandemia: as instabilidades trazidas pela covid-19 impactaram não só aspectos práticos do dia a dia, mas também a maneira como as pessoas significam suas vidas, implicando mudanças individuais e sociais significativas.

As relações do onírico com a pandemia são tema de duas pesquisas em desenvolvimento na UFRGS. Na mitologia grega, Oniros são a forma personificada que às vezes os sonhos assumem. Filhos da Noite e do Sono, surgem como mensageiros em momentos críticos.

Um estudo publicado recentemente na Revista Brasileira de Sociologia por Enio Passiani, Harlon Santos e Weslley Moraes analisa como o contexto da pandemia de covid-19 influenciou a vida onírica das pessoas. Já a pesquisadora Rose Gurski, do Instituto de Psicologia, Serviço Social, Saúde e Comunicação Humana da UFRGS, coordena uma série de projetos de pesquisa que tem no conceito de oniropolítica a base para analisar relações entre saúde mental, juventude, políticas de vida e produção de futuro.

Sociologia dos sonhos e sensibilização da alma

Professor do departamento de Sociologia e do PPG Sociologia (PPGS) da UFRGS, Enio Passiani se deparou com relatos recorrentes a cada início de aula ministrada no formato remoto durante a pandemia. Quando perguntava às e aos estudantes como estavam naquele contexto, ele obtinha como resposta algo que o deixou instigado: as e os alunos tinham muito sonhos recorrentes e semelhantes entre si, relacionados ao contexto do isolamento social, das medidas protetivas contra o vírus, dos ajustes de rotinas e das inquietações sobre o futuro.

Levando em conta as dificuldades e complicações do período, Passiani reservava um tempo de sua aula para criar um ambiente acolhedor. Às vezes, essas conversas levavam meia hora. “Perguntava se estavam bem, como estavam se sentindo. Numa dessas conversas, eu perguntei: ‘vocês estão dormindo bem?’”, conta. As respostas o surpreenderam.

As e os estudantes, que não se conheciam e eram de turmas diferentes, relatavam sonhos que poderiam ser percebidos como um fenômeno coletivo. Desses, três tipos chamaram a atenção do professor: estar sem máscara em um local público, o falecimento de parentes e amigos que se encontravam bem, mas longe das e dos sonhadores, e estar de volta aos tempos de escola. A coincidência fez o docente perceber que havia algo que poderia ser investigado sociologicamente.

Foi a partir daí que surgiu o projeto “Impactos do contexto da Covid-19 na dimensão onírica: uma análise exploratória a partir da sociologia dos sonhos”, dentro do Grupo de Estudos em Cultura, Comunicação e Arte (GECCA/Sul), do qual Passiani é coordenador. Os pesquisadores criaram um formulário online, com questões abertas e fechadas, para obter relatos de sonhos recorrentes e/ou marcantes durante a pandemia. As mais de 600 respostas obtidas permitiram uma abordagem do sonho como experiência social.

“Do ponto de vista sociológico, tínhamos dois caminhos a seguir: ou tentávamos dialogar com a psicanálise ou fazíamos algo, colocando-a de lado, pelo menos momentaneamente. Optamos por seguir o primeiro caminho. A partir da consolidação da pesquisa bibliográfica, construímos uma tipologia de estudo sociológico do sonho”Enio Passiani

O artigo publicado por Passiani – em colaboração com Harlon Santos, professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), e com o mestrando do PPGS da UFRGS Weslley Moraes – baseou-se principalmente no trabalho de Bernard Lahire. Na interpretação sociológica de Lahire, os sonhos dramatizam e exageram momentos de desconforto, vergonha, medo e humilhação vividos numa teia ampla e complexa de interações sociais. Assim, permitem que esses momentos sejam revisitados e significados, oferecendo a oportunidade de que se exerça algum controle sobre eles.

À diferença do que imaginava o fundador da Psicanálise, Sigmund Freud, Lahire não enxerga a presença de mecanismos de censura que deformem os pensamentos oníricos, e sim um processo de sentido inverso. “Os sonhos estabelecem uma forma de consciência sobre a vida cotidiana que, quando acordados, paradoxalmente não possuímos”, destacam Passiani, Santos e Moraes no artigo.

Para Passiani, o grande ganho do estudo foi demonstrar que, embora a pandemia tenha afetado a sociedade brasileira como um todo, seus efeitos foram sentidos de forma diferente por grupos sociais distintos. “Nossa amostra aponta que as mulheres, as pessoas mais jovens e as com menor renda e escolaridade foram mais afetadas”, explica o pesquisador.

Em relação às mulheres, ele salienta que o artigo corrobora o que outros estudos já mostraram: os trabalhos de cuidado dentro e fora de casa geralmente ainda recaem sobre elas. Em relação às pessoas mais jovens, indica uma espécie de consciência de comprometimento do futuro. No caso das pessoas com menor renda e escolaridade, Passiani destaca a questão da vulnerabilidade. “Percebemos uma predominância do que chamamos de ‘sentimentos negativos’, como desconforto, tristeza, medo e raiva nesses grupos. Em contrapartida, a pesquisa mostra que pessoas com maior renda tiveram menos sonhos negativos. Isso porque puderam continuar trabalhando de casa, sem precisar circular” aponta. Os mesmos preceitos podem ser aplicados a outras catástrofes coletivas, como as enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul e a crise climática.

“O que está em jogo aí é uma relação com o que a sociologia, principalmente de extração norte-americana, chama de trauma cultural. Ou seja, que determinados eventos têm o potencial de se tornarem traumáticos a partir do momento em que determinada cultura os enxerga assim. Esse repertório cultural é o que permite que as pessoas se aproximem e olhem o mundo dessa maneira, que sintam uma ameaça na continuidade dos vínculos sociais”Enio Passiani

O pesquisador defende que a abordagem sociológica do mundo onírico pode ser estendida à análise de outros tipos de problemas, como o racismo estrutural, a desigualdade e a violência, por exemplo. “O que eu tento fazer é usar a Sociologia como uma forma de sensibilização. O sociólogo Charles Wright Mills usava uma expressão que era algo como ‘sensibilização da alma’. É um pouco o que eu e o nosso grupo de pesquisa buscamos”.

Uma interface com a Psicanálise será incorporada no segundo momento do estudo. Passiani revela que está prevista para este ano a divulgação da segunda parte da pesquisa, que envolve a categorização dos sonhos coletados e sua análise a partir de uma Sociologia com e contra a Psicanálise. A ideia é mostrar como uma sociologia dos sonhos pode contribuir para uma análise interdisciplinar do trauma.

O despertar e a oniropolítica

Rose Gurski é professora do departamento de Psicanálise e Psicopatologia e do Programa de Pós-graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS. Ainda que os sonhos e suas relações com a vida social e política tenham sido seu interesse de pesquisa há muito tempo, foi em dezembro de 2020 que Gurski iniciou o projeto “Rodas de Sonhos com adolescentes em situação de vulnerabilidade social”, realizado com adolescentes que cumpriam medida na Fundação de Atendimento Sócio-educativo do RS (Fase). O tema foi continuado em seu estágio de pós-doutoramento sênior na Universidade de São Paulo pelo projeto “Rodas de Sonhos na Socioeducação: saúde mental e oniropolítica em tempos de pós-pandemia”.

O conceito de oniropolítica começou a ser concebido coletivamente por pesquisadores da UFRGS e da USP em 2019.  Ele articula a noção do “despertar” de Walter Benjamin à psicanálise, aos sonhos e à política. Construída para se pensar o laço social, a oniropolítica serve como ferramenta para a análise da função coletiva do sonho e do sonhar a partir de questões que se estendem às formas políticas e sociais nas quais os sujeitos estão inseridos.

A pesquisadora reflete que, à época do começo do projeto, a sociedade enfrentava uma crescente polarização que parecia “adormecer” o livre pensar. Por isso, ela defende a associação com a ideia de um despertar.

“Caso a Psicanálise pudesse contribuir com uma política, seria a política dos sonhos, a política do sujeito e do desejo. E queríamos trazer essa contribuição para se pensarem questões do laço social. Assim, o trabalho com a oniropolítica não é relativo à dimensão terapêutica do sonho nem tampouco à proposta de construir noções específicas da biografia de um sujeito ou mesmo de sua psicopatologia. Trata-se de pensar na função coletiva do sonho e do sonhar”Rose Gurski

Entendida como uma situação traumática, a pandemia de covid-19 foi uma forma de as e os pesquisadores operarem com o conceito de oniropolítica. Para Gurski, foi um momento em que os sonhos funcionaram como uma certa resposta às angústias, ajudando os sujeitos de modo criativo a elaborarem saídas que talvez só pudessem emergir em meio ao campo dos sonhos noturnos.

A psicanalista salienta que crises globais desse tipo se assemelham a situações como as duas grandes guerras mundiais, nas quais a sociedade viu a intensa necessidade de elaboração do luto não só do ponto de vista individual, mas também do coletivo. Nessas situações, os sonhos funcionam como uma espécie de proteção para o psiquismo, ajudando a atenuar os efeitos nefastos de situações críticas, traumáticas e muitas vezes inomináveis. “A partir das articulações imagéticas que produzem cenas muitas vezes assemelhadas a uma alucinação, funcionam como um modo de nomeação para a angústia. Alguns dizem que os sonhos são como uma espécie de cinema privado do sujeito”, completa.

Gurski afirma que foi muito interessante ver a reação das pessoas à oferta de um espaço para a narração dos sonhos em uma proposta de pesquisa-intervenção que, ao mesmo tempo que proporciona coleta material às e aos pesquisadores, oferece um espaço de elaboração para as e os participantes. A acolhida, demonstrada tanto pelo grande volume de sonhadores participantes quanto pela curiosidade da mídia, foi imediata.

“Alguns diziam ‘como é bom contar o sonho para alguém, mesmo que seja por escrito’. Já outros ‘posso contar meus sonhos, mas não os noturnos?’. Também foi interessante ver o espanto de alguns pelo interesse no tema dos sonhos: ‘Por que vocês estão interessados nos sonhos?’. Nos parece que só essa questão já deixa uma interrogação produtiva para as pessoas”Rose Gurski

A pesquisadora ressalta, ainda, o papel das situações traumáticas na produção de grandes transformações sociais, políticas, econômicas, psíquicas. Como são situações que desacomodam o sujeito e requerem uma nova organização mental, costumam gerar o que a Psicanálise chama de um excesso de estimulação para o psiquismo; são situações que desacomodam o sujeito. São momentos em que o nível de sofrimento psíquico se eleva e o sujeito precisa aumentar, na mesma medida, suas operações de elaboração.

Desse modo, os sonhos podem ganhar volume ou, ainda, tornarem-se mais vívidos ou intensos. Ela lembra que situações de lutos e perdas importantes para o sujeito podem ser momentos de intensificação da vida onírica. “O próprio Freud, quando escreveu uma de suas maiores obras, a ‘Interpretação dos Sonhos’, há pouco havia perdido o pai e tentava elaborar esse luto”, lembra a pesquisadora.

As pessoas que participaram do estudo passaram a prestar outro tipo de atenção aos sonhos, a atribuir sentidos e significações, assim como a fazer associações a partir das imagens oníricas. A iniciativa virou o livro “Sonhos Confinados: o que sonham os brasileiros em tempos de pandemia?”, publicado em 2021 pela Editora Autêntica e organizada por Gurski em parceria com Christian Dunker, Claudia Perrone, Gilson Ianinni e Miriam Debieux Rosa.

“Percebemos que o fato de narrar os sonhos tinha algum efeito terapêutico. Nesse sentido, sempre apostamos que há a possibilidade de as narrativas oníricas, quando compartilhadas e endereçadas a outro, poderem decantar na produção de novos sentidos sobre os efeitos do mal-estar”, aponta a cientista. “A oniropolítica em meio à pesquisa sobre os sonhos confinados foi um modo de contribuir com a sociedade brasileira em um momento tão complicado como o da pandemia”, conclui. [1], [2]

[1] Texto de Cristiane Miglioranza

[2] Publicação original: https://www.ufrgs.br/jornal/pesquisas-exploram-os-impactos-da-pandemia-nos-sonhos-e-destacam-a-dimensao-coletiva-do-onirico/

Como citar esta notícia: UFRGS. Pesquisas exploram os impactos da pandemia nos sonhos e destacam a dimensão coletiva do onírico. Texto de Cristiane Miglioranza. Saense. https://saense.com.br/2025/03/pesquisas-exploram-os-impactos-da-pandemia-nos-sonhos-e-destacam-a-dimensao-coletiva-do-onirico/. Publicado em 20 de março (2025).

Notícias científicas da UFRGS Home