UFRGS
28/05/2025

Publicado originalmente como folhetim no jornal A Estação, entre 1886 e 1891, e adaptado em livro em 1891, Quincas Borba faz parte da trilogia de romances realistas de Machado de Assis. Ao lado de Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, a obra retrata a sociedade brasileira do final do século XIX, com a ironia e sutileza características da escrita machadiana.
Carla Vianna, professora de Língua Portuguesa e Literatura e doutora em Letras pela UFRGS, destaca a representação do contexto socioeconômico no livro, principalmente da camada mais rica da capital federal da época, o Rio de Janeiro. Situado no fim do período escravocrata, o romance é marcado pela ascensão de uma burguesia que lutava para assimilar os costumes de países europeus, enquanto abdicava de sua própria história. “Uma grande sátira, mas que traz um amplo panorama dessa sociedade fluminense do século XIX, e que, de um modo ou de outro, retrata o Brasil maior”, defende a professora.
O protagonista, Rubião, um professor de Barbacena, Minas Gerais, herda a fortuna de seu amigo e filósofo Quincas Borba e decide deixar o interior em busca da vida urbana da metrópole carioca. Sua trajetória é marcada por amizades interesseiras e pelo declínio de sua sanidade mental.
Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), Tiago Seminatti reforça as analogias presentes na narrativa. Tiago argumenta que, assim como Rubião, o Brasil passava naquele momento por uma transição: enriquecido pela indústria cafeeira, o país deixava suas origens rurais para abraçar a modernidade. O pesquisador argumenta que, da mesma maneira que o personagem encontra dificuldades para assimilar sua nova realidade, a população brasileira enfrentava dilemas ao lidar com os novos tempos.
O Humanitismo
Além de realizar uma crítica à sociedade do final do século XIX, Machado retrata ironicamente as diversas teses pseudocientíficas que surgiam naquele momento, como o positivismo e o darwinismo social, que buscavam justificar ideias racistas e comprovar uma suposta superioridade racial do povo europeu. O autor faz isso por meio do Humanitismo, filosofia fictícia criada pelo personagem Quincas Borba que prega o conceito de que os mais fortes sobrevivem.
A teoria tem como síntese o conceito de “ao vencedor, as batatas”, proveniente de uma fábula que imagina duas tribos famintas disputando um campo de batatas. Caso compartilhassem o alimento, nem todos seriam alimentados; portanto, seria necessário que uma delas conquistasse o campo para si. Assim, a tribo vencedora, e por consequência a mais forte, ganharia as batatas e sobreviveria.
Machado apresenta essa tese com um tom debochado e pessimista, característico do seu período realista. Tiago relembra a ironia do personagem que inventa essa premissa ser justamente de alguém que já perdeu suas faculdades mentais e sucumbiu à loucura. Ele ainda aponta que, à medida que o protagonista Rubião perde a sanidade, acredita cada vez mais no Humanitismo. No final da obra, ao acreditar ser o Imperador Napoleão III, ele repete para si mesmo “ao vencedor, as batatas”, enquanto definha até a morte.
“A gente tem vários ismos, no século XIX. A gente tem sobretudo o determinismo, que, na literatura, vai comparecer na literatura naturalista. E o Machado se distancia um pouco dessa visão que é extremamente cientificista. Não que o Machado negasse a ciência, mas ele nega a radicalização desse ponto de vista supostamente científico”, comenta Tiago.
Quem conta a história
Para Carla, um dos pontos marcantes do livro é o narrador, que, em terceira pessoa e onisciente, reconta a história do protagonista trazendo diversas referências, como eventos históricos, passagens bíblicas e até citações de Shakespeare. Ao longo do texto, o narrador conversa com o leitor, pede atenção, chama-o de “desgraçado” e “desorientado”. A docente aponta que a obra “é o único romance do Machado que não é narrado por um representante da elite, mas pelo herdeiro. Rubião, um homem livre, mas que ganhou o capital mediante uma herança”.
Ao contrário de Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro – narrados, respectivamente, por Brás Cubas e Bento Santiago, ambos provenientes de famílias abastadas –, a história de Quincas Borba é relatada por um narrador sem nome, com um protagonista provinciano e marcado por incertezas. Tiago lembra ainda a dubiedade de quem seria o personagem a que o título da obra se refere, o filósofo ou seu cachorro, herdado por Rubião – uma ambiguidade observada pelo próprio narrador.
Mas é justamente por meio dessas imprecisões, contudo, que a obra se torna tão complexa e atemporal, expondo as hipocrisias e ganâncias de personagens densos, com perspectivas diferentes. Com isso, Machado tece críticas à sociedade brasileira que reverberam até a atualidade. [1], [2]
[1] Texto de Matheus Konzen
[2] Publicação original: https://www.ufrgs.br/jornal/machado-de-assis-e-a-satira-da-sociedade-brasileira/
Como citar esta notícia: UFRGS. Machado de Assis e a sátira à sociedade brasileira. Texto de Matheus Konzen. Saense. https://saense.com.br/2025/05/machado-de-assis-e-a-satira-a-sociedade-brasileira/. Publicado em 28 de maio (2025).