Jornal da USP
01/07/2025

Incertezas sobre identidade de gênero elevam riscos à saúde mental mais do que a identidade trans
A pesquisa revelou que indivíduos transgênero, especialmente os que não tinham certeza sobre a própria identidade, eram mais vulneráveis, com mais sintomas de depressão, ansiedade e pior saúde física – Foto: Marcos Santos – Banco de Imagens USP

Pessoas que vivenciam incertezas sobre a própria sexualidade tendem a sofrer mais com problemas emocionais do que aquelas com identidades e orientações sexuais bem definidas. Essa foi uma das conclusões de um estudo internacional conduzido por pesquisadores da Universidade Charles de Praga, na República Checa, em parceria com o Instituto de Psicologia (IP) da USP. A pesquisa revelou que pessoas transgênero, especialmente as que não tinham certeza sobre a própria identidade, sofriam com mais sintomas de depressão, ansiedade e pior saúde física. Já as pessoas trans com identidade definida não apresentaram piora nos indicadores de saúde, sugerindo que a incerteza é um fator de risco maior que a identidade trans em si.

O levantamento também identificou que pessoas bissexuais, apesar de terem apresentado melhor desempenho cognitivo neste estudo, tinham risco duas vezes maior de depressão e ideação suicida em comparação a heterossexuais. A bissexualidade foi a segunda orientação sexual mais prevalente entre os voluntários, após a heterossexualidade.

A pesquisa analisou dados de mais de 5 mil participantes e sugere diferenças significativas em saúde física e mental, habilidades cognitivas e comportamento sexual entre pessoas com distintas orientações sexuais e identidades de gênero. Os resultados foram publicados no artigo Sexual orientation, preferences, and gender identity: health, cognition, and life history strategies, no The Journal of Sexual Medicine, tendo como uma das autoras Jaroslava Varella Valentova, professora e pesquisadora em sexualidade humana do IP.

Em entrevista ao Jornal da USP, Jaroslava afirmou que a piora na saúde de alguns grupos não está relacionada apenas à condição de minoria, mas às especificidades de determinadas minorias. Ela ressaltou a necessidade de políticas públicas e ações de saúde que considerem a diversidade sexual e de gênero, assegurando atendimento equitativo e o combate à exclusão.

Perfil dos entrevistados

O estudo contou com a participação de 3.518 mulheres e 1.789 homens, todos da República Checa, com idades entre 15 e 80 anos e níveis de escolaridade que variavam entre ensino médio, superior e pós-graduação. Os participantes responderam 264 perguntas sobre saúde, habilidades cognitivas e comportamento sexual. Além disso, eles foram submetidos a testes cognitivos — incluindo avaliações de memória, quociente de inteligência (QI) e atenção —, bem como a testes de personalidade.

Questionada se o fato de todos os participantes serem da República Checa poderia tornar os resultados pouco aplicáveis à realidade brasileira, a pesquisadora afirmou que não, pois os padrões de sexualidade, saúde física e mental são semelhantes entre aquele país e o Brasil.

Bissexualidade

A bissexualidade foi a orientação sexual não heterossexual mais prevalente encontrada entre os participantes da pesquisa. Entre todas as mulheres da amostra, 40% relataram algum grau de atração por ambos os sexos e entre os homens, esse número foi de 25,3%. Sobre o fato do porcentual de bissexualidade ser elevado, Jaroslava explica que a pesquisa adotou um conceito mais amplo e flexível, diferentemente de outras pesquisas que se baseiam apenas na autoindentificação como bissexual, homossexual ou heterossexual. Segundo a pesquisadora, o questionário permitiu que cada participante expressasse livremente sua atração sexual, seja por pessoas do mesmo ou do outro sexo, sendo posteriormente classificadas como bissexuais todas as pessoas que relataram qualquer nível de atração por ambos os sexos. “Esse método é mais inclusivo, pois coloca o foco nas experiencias de atração e não apenas na identidade declarada”, diz.

Homossexualidade

A homossexualidade foi a segunda orientação mais relatada, mencionada por 2,2% das mulheres e 3,5% dos homens. Já a assexualidade — ausência de atração sexual — foi apontada por 0,34% das mulheres e 0,11% dos homens. A pesquisa também identificou que 0,23% das mulheres e 0,22% dos homens se declararam transexuais. Além disso, cerca de 10% das mulheres e 11% dos homens afirmaram ter dúvidas sobre sua orientação sexual ou identidade de gênero. A maioria dos participantes, no entanto, se identificou como exclusivamente heterossexual — 57,8% entre as mulheres e 71,2% entre os homens.

Saúde mental

A pesquisa apontou que pessoas bissexuais apresentaram risco duas vezes maior de depressão e ideação suicida em comparação aos heterossexuais. Já homossexuais e assexuais não mostraram diferenças significativas na saúde física e mental em relação aos heterossexuais, embora homens assexuais tenham demonstrado uma tendência, ainda que não estatisticamente significativa, a ter melhor saúde.

Entre pessoas transgênero, 50% relataram sintomas de depressão ou ansiedade e sua saúde física foi 23% inferior à de indivíduos cisgênero. As pessoas com identidade transgênero bem definida não apresentaram piora na saúde física e/ ou mental em comparação com pessoas cisgênero. Já as pessoas que manifestaram dúvidas sobre sua identidade exibiram indicadores mais negativos, sugerindo que a incerteza — e não a identidade transgênero em si — pode ser um fator de risco.

Para a pesquisadora, pessoas que vivem conflitos ou dúvidas constantes sobre sua orientação sexual ou identidade de gênero tendem a apresentar níveis mais elevados de estresse, ansiedade, depressão e risco de ideação suicida. “Esses impactos são intensificados pela pressão social, estigmas e discriminação que dificultam o processo de autoconhecimento e aceitação”, diz.

Habilidades cognitivas

Os dados da pesquisa revelam que as pessoas bissexuais se destacam em aspectos cognitivos e de personalidade quando comparadas aos heterossexuais. O grupo apresentou QI, em média, 7% mais alto e desempenho 12% superior em testes de memória de reconhecimento. Segundo a pesquisadora, duas teorias podem explicar os resultados relacionados aos bissexuais. A primeira é o “efeito resiliência”, que indicaria que a adaptação a desafios fortaleceria as habilidades cognitivas. A segunda aponta que a piora na saúde mental pode estar ligada à “dupla discriminação”, resultado do estresse crônico causado pela rejeição tanto de comunidades heterossexuais quanto homossexuais.

O estudo ainda mostrou que a atração por pessoas do mesmo sexo tende a diminuir com a idade, especialmente entre mulheres. Já o número de parceiros sexuais atinge seu pico entre os 30 e 40 anos, com um novo aumento observado após os 70 — possivelmente ligado a novos relacionamentos após viuvez ou separações.

Preferências sexuais

Sobre comportamento e preferências sexuais, o levantamento indicou que dinâmicas de poder, de hierarquia, de submissão e de dominância exercem papel significativo durante as relações sexuais. Os dados mostraram que 50% dos homens e 40% das mulheres relataram ter maior estímulo ao desempenhar papéis de dominação e/ou submissão durante as interações sexuais. Entre as mulheres que demonstraram preferência por essas dinâmicas, 82% optaram por posições submissas, enquanto 76% dos homens preferiam assumir o papel dominante. Já no recorte por orientação sexual, os dados mostraram que mulheres lésbicas tendiam a adotar uma postura mais dominante nas relações, enquanto homens gays manifestavam maior inclinação à submissão.

Orientação sexual

A orientação sexual está relacionada à atração sexual e/ou emocional que se sente pelos outros indivíduos. Ela pode ser direcionada a pessoas do mesmo sexo, do outro sexo, ou a ambos os sexos, ou mesmo não ser direcionada a ninguém (no caso da assexualidade).
Exemplos: Heterossexual, homossexual, bissexual, assexual

Identidade de gênero

É a forma como um indivíduo se reconhece e se identifica como homem, mulher, ambos, terceiro gênero ou nenhum dos gêneros. É uma experiência interna e individual, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído ao nascer. Exemplos: cisgênero (quando a identidade de gênero de uma pessoa corresponde ao seu sexo biológico), transgênero/trans (quando a pessoa se identifica com um gênero diverso daquele que lhe foi designado ao nascer), não binário (que não se encaixa na dicotomia tradicional de gênero homem/mulher), entre outras. Pessoas com uma mesma identidade de gênero podem apresentar diferentes orientações sexuais.

Mais informações: jaroslava@usp.br, com Jaroslava Varella Valentova [1], [2]

[1] Texto de Ivanir Ferreira

[2] Publicação original: https://jornal.usp.br/ciencias/incertezas-sobre-identidade-de-genero-elevam-riscos-a-saude-mental-mais-do-que-identidade-trans/

Como citar este texto: Jornal da USP. Incertezas sobre identidade de gênero elevam riscos à saúde mental mais do que a identidade trans. Texto de Ivanir Ferreira. Saense. https://saense.com.br/2025/07/incertezas-sobre-identidade-de-genero-elevam-riscos-a-saude-mental-mais-do-que-a-identidade-trans/. Publicado em 01 de julho (2025).

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