Jornal da USP
05/12/2019
Por Luiz Prado, estudante de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e integrante da Confraria das Ideias e do Boi Voador
Este é um informe do futuro.
Estamos em Veracruz, uma nação governada por um partido militarista e religioso. Quando as sirenes de segurança ecoam pelas ruas, praças e avenidas, dez cidadãos entram na quarentena mais próxima, um abrigo nuclear construído pelo Estado para proteger a população. Lá dentro, em meio à escuridão, um comunicado sonoro. “Muitos são chamados, mas poucos escolhidos…”. Desse momento em diante, o grupo tem 30 minutos para provar que é digno de permanecer na quarentena e merecedor dos gastos governamentais com a preservação de suas vidas.
Este é um informe do presente.
Interlagos, zona sul de São Paulo. Quando o amplificador emite o som das sirenes de segurança, dez pessoas trocam o gramado ensolarado do Sesc pela escuridão de um contêiner de 20 m². Lá dentro, carregando apenas um cartão com indicações sobre seus personagens – quem eles serão nos próximos 30 minutos – tateiam entre mesas e cadeiras, encontram lanternas e escutam o comunicado sonoro. “Muitos são chamados, mas poucos escolhidos…”.
O que une essas 20 pessoas, esses dois tempos e esses dois espaços completamente distintos? A explicação chama-se larp.
O larp é um jogo e uma forma de arte cuja essência é a representação de personagens, conforme atesta a origem do termo: live action role play – representação de papéis ao vivo, em tradução aproximada.
Em um larp, as pessoas são apresentadas a um enredo mais ou menos detalhado, como a sinopse de um filme, o programa de um espetáculo teatral ou o texto na contracapa de um livro. São linhas gerais de uma narrativa, que desenham seu começo, mas deixam em aberto seu desenrolar e conclusão.
Junto disso, cada participante recebe um personagem que integra esse enredo. Normalmente um texto, com sua biografia e dados relevantes para a história: informações sobre o passado, que laços o ligam aos demais personagens, quais seus objetivos e desejos.
Com esse repertório, as pessoas passam então a vivenciar a história. O local onde elas se encontram – a sala preta de um teatro, o espaço multiuso de um centro cultural, o salão de uma galeria de arte, um contêiner – se transforma no ambiente ficcional e todos deixam de lado suas personalidades cotidianas para tentar falar, agir, pensar e sentir como se fossem esses personagens.
À primeira vista, parece um espetáculo teatral. Contudo, uma diferença profunda e central distingue as duas artes. No larp, não há plateia. Ninguém assiste ao desenrolar da ação sentado numa poltrona. Todos entram em cena, tornando-se protagonistas da própria experiência. Também não há atores profissionais: todos estão por conta própria. A representação dos personagens e a vivência da história acontecem para a fruição estética dos próprios participantes. O larp é feito para ser vivido, não para ser visto.
Outra diferença em relação ao teatro convencional é que esses personagens não chegam com falas prontas ou roteiros de ação precisos. Eles são pontos de partida para situar os participantes e ativar a criatividade, com biografias que os apresentam e sugerem seus papéis na história. Como se comportarão e por quais transformações passarão dependem exclusivamente das escolhas de quem está no larp.
“Nas outras manifestações artísticas ‘tradicionais’ a pessoa pode usar a imaginação para se ver no protagonismo da situação e até ter certo nível de experiência coletiva, como em uma sala de cinema, por exemplo, mas sempre em uma posição receptiva”, reflete Leandro Godoy, um dos fundadores da Confraria das Ideias, grupo paulistano de larp responsável por Quarentena 64, o comentário distópico sobre a política nacional que abre este texto.
Na percepção de Godoy, as barreiras entre produtor e público ficam nubladas assim que o larp tem início. “Ambos se tornam artistas e responsáveis pela transformação da obra enquanto ela se manifesta. Isso torna cada execução única, mesmo que se tenha o mesmo texto, cenário e pessoas. Cada uma será diferente.”
Ditirambos e distopias
“Não há consenso sobre como o larp surge”, comenta Luiz Falcão, artista visual, educador e integrante do grupo Boi Voador, surgido em 2012 também em São Paulo. “O que é o larp? Uma atividade onde duas ou mais pessoas fingem ser quem não são umas para as outras, de maneira esclarecida e consensual, sem uma plateia para ver isso. Desde quando isso existe?”
De acordo com Falcão, é possível estabelecer duas origens para o larp, uma contemporânea, localizada na década de 1970, e outra que remete à Antiguidade, anterior mesmo ao teatro. “Quem tem um entendimento mais abrangente parece considerar na conta os primórdios mais arcaicos da linguagem como sendo larp, dos ditirambos gregos aos jogos de representação da corte elisabetana e além”, explica. “Quem começa a contar a partir dos anos 1970 está mais interessado no recorte moderno do larp, com suas características que seriam mais marcantes de lá para cá.”
Essa segunda abordagem, explica o artista, vincula o larp aos RPGs (role-playing games), surgidos na década de 1970. Temas comuns e a frequente transposição das experiências das mesas de RPG para os larps ajudaram nessa identificação. “É a partir dessa carona que o larp pega com os RPGs que ele passa a ser reconhecido como uma prática, se espalha e se desenvolve chegando até mesmo a ser novamente diferenciado do RPG e, em alguns momentos, a ter essa relação rejeitada”, pontua.
Em Quarentena 64, o destino dos cidadãos de Veracruz confinados no abrigo esteve totalmente nas mãos dos participantes. Agindo em equipe ou se perdendo em conflitos, trocando acusações ou sofrendo colapsos nervosos com a falta de informações sobre o exterior, eles criaram com suas próprias ideias e interações a narrativa desse encarceramento.
“A oportunidade de colocar a realidade ou, mais ainda, a si mesmo em perspectiva é um dos elementos que justificam a participação em um larp. É isso que sempre me fascinou e é isso que sempre me provoca a participar de novo”, revela o pesquisador Tadeu Rodrigues Iuama.
Iuama, doutorando em comunicação pela Universidade Paulista (Unip), é autor do livro O Verso da Máscara: Processos comunicacionais nos larps e rpgs de mesa, obra que conjuga revisão bibliográfica do tema e a utilização do larp como instrumento de pesquisa. Em seus estudos mais recentes, o acadêmico continua privilegiando o larp para pensar formas alternativas de comunicação.
“Minha tese circunda a noção de um modelo diferente do tradicional emissor-transmissão da mensagem por um meio-receptor. E é participando de larps que percebo a existência dessa outra estrutura”, conta Iuama. “Além disso, minha pesquisa é alinhada com o papel das mídias na interação entre grupos sociais. Assumindo o larp como mídia, ele me faz pensar em modelos de interação menos competitivos, belicosos e intolerantes.”
Diversidade e democracia
Cada larp é como um filme, uma peça de teatro ou um livro. Seu enredo e sua estrutura são particulares e podem viajar livremente entre gêneros, assuntos e temáticas. A distopia totalitária de Quarentena 64 é apenas um exemplo.
Em julho, a cidade de Bauru, no centro-oeste paulista, presenciou uma das salas da unidade local do Sesc ser transformada numa gruta para abrigar A Demanda de Iscariotes, um larp sobre reis, cavaleiros e sacerdotes em cruzada pelos restos mortais do traidor de Cristo.
Desta vez, as pessoas juntaram à imaginação mantos, casacos, capas, cajados e lamparinas para imergir em uma Idade Média tomada por superstição, loucura e fé, vivendo os momentos derradeiros de uma comitiva exausta e hesitante.
Como o rumo da ação está nas mãos dos participantes, outro traço decisivo de um larp é o caráter único de cada uma de suas execuções. A temporada de A Demanda de Iscariotes foi vivida por várias pessoas distintas, ao longo de vários dias e, em todos eles, a história seguiu uma trajetória particular que levou a fins diversos. Em uma analogia com a literatura, seria como ler o mesmo livro várias vezes e sempre se deparar com um final diferente.
Ficção científica e fantasia medieval não são os únicos territórios explorados pelo larp. Da mesma forma que o cinema abriga desde dramas realistas até aventuras épicas de super-heróis, da poesia hermética de Tarkovski ao pop sanguinário de Tarantino, o larp não se restringe a temas ou gêneros específicos. Qualquer experiência ou narrativa pode ser experimentada pelos participantes.
“Basicamente, os temas e assuntos variam entre dois polos”, comenta Falcão. “De um lado, o cotidiano, como um grupo de amigos desanimados em um bar após um jogo de futebol ter terminado em zero a zero (Stoke-Birmingham 0-0). Do outro, a fantasia, como um castelo de verdade na Polônia onde você passa uns dias sendo estudante em uma faculdade do mundo de Harry Potter (College of Wizardry), e passando por tudo que vai de um polo a outro.”
Falcão elenca essa diversidade com exemplos que percorrem as Américas e a Europa. Da fantasia medieval para milhares de pessoas (Bicolline, no Canadá, e Conquest of mythodea, na Alemanha) às simulações de batalhas contemporâneas ou futuristas (como os larps de simulação militar baseados no game Fallout, na Rússia). Há experiências que duram dias, algumas baseadas em obras de ficção como a série de televisão britânica Downton Abbey (Fairweather manor) ou os romances Orgulho e Preconceito (Fortune & felicity) e Drácula (Demeter), todos produzidos nos países nórdicos. O artista ainda lembra dos larps baseados em jogos de RPG comerciais e toda uma série de produções originais.
“Há larps para serem realizados em bares, ônibus, praças, casas. Larps para serem feitos em salas com iluminação e sons controlados. Há larps para castelos e submarinos. E há larps que você pode imprimir e jogar em casa”, conta Falcão. “Há larps sobre relacionamentos amorosos, familiares, sobre a passagem do tempo e sobre o valor da amizade. Sobre as mazelas da guerra e sobre regimes totalitários. Sobre a loucura e o afeto, ou o abandono. E também há larps sobre espadas de espuma, dar tiros, ser um monstro ou matar monstros. Há larps sobre todas as coisas e em todos os formatos.”
Um exemplo dessa diversidade no próprio trabalho da Confraria das Ideias é A Tribuna de Orates, larp que adaptou o conto O Alienista, de Machado de Assis, e ocupou a biblioteca pública Viriato Correa, localizada na Vila Mariana, em São Paulo. Suas salas e corredores se viram transformados na cidade de Alogópolis, com a câmara de vereadores, o mercado central, a barbearia e o ambíguo sanatório, recriando a fábula do bruxo do Cosme Velho sobre as fronteiras tênues entre loucura e razão. Com a especificidade de permitir aos participantes reescreverem os rumos da história e das personagens colaborativamente – um dos atributos do larp.
“É no mínimo curioso como a ampla liberdade que tivemos nos levou a lugares próximos à obra de Machado de Assis”, comenta Iuama, um dos participantes de A Tribuna de Orates. “Ao mesmo tempo, o uso da loucura como instrumento de poder é algo que se fez presente, num infeliz reflexo da nossa vida cotidiana. O larp conseguiu não apenas fazer uma homenagem a Machado de Assis, como também trazer Michel Foucault e Erasmo de Roterdã para o jogo.”
Já com Cegos, Surdos e Mudos, outra produção do grupo, os participantes foram levados para uma experiência mais familiar e diretamente conectada com o contexto social. No larp, amigos de infância atravessam quatro décadas testemunhando episódios marcantes da história brasileira – a Copa do mundo de 1970, o movimento das Diretas, as manifestações de 2013. Para essa vivência, o palco do teatro do Centro Cultural da Juventude, na zona norte de São Paulo, foi transformado em uma sala de estar, modificada pela contrarregragem a cada passagem do tempo, refletindo os avanços tecnológicos e as metamorfoses dos personagens.
Para Godoy, o trabalho que realiza com o larp envolve a criação de uma experiência transformadora. “Esperamos que os larps atuem como meio para ampliar o conhecimento, de forma provocativa, instigante. Buscamos também estimular o encontro de pessoas em um ambiente seguro, que abrace todo tipo de diversidade, onde se possa treinar e exercer empatia. Buscamos lançar, de forma cada vez mais consciente, um olhar sobre a nossa sociedade, posicionando o larp como uma atividade que é a favor da liberdade de expressão, contra autoritarismos e obscurantismos.”
[1] Por RalfHuels (photographer), Anja Arenz, Chris Kunz, Dossmo, Niamh, Paolo Tratzky, Svenja Schoenmackers, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/
Como citar este artigo: Jornal da USP. Conheça o larp, linguagem na qual o público é o criador da experiência artística. Texto de Luiz Prado. Saense. https://saense.com.br/2019/12/conheca-o-larp-linguagem-na-qual-o-publico-e-o-criador-da-experiencia-artistica/. Publicado em 05 de dezembro (2019).