Jornal da USP
05/05/2020
O barulho da multidão e das baladas noturnas na região central da cidade de São Paulo deram lugar ao silêncio. Ali se pode ouvir o canto dos pássaros e até dos vizinhos, ao contrário do que acontece nas periferias, como em Ermelino Matarazzo, na zona leste, em que os ruídos continuam intensos e até ganharam volumes, com mais bailes funks e cultos religiosos. “O som é um marcador social relevante da distribuição econômica espacial no contexto de confinamento que estamos vivendo”, afirma a artista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP Giselle Beiguelman.
A professora e um grupo de alunos do Programa de Pós-Graduação em Design da FAU desenvolvem, dentro do contexto da pandemia do novo coronavírus, um projeto de pesquisa que combina questões da arte, do urbanismo e do design a partir do som. O projeto pretende fazer um mapeamento sonoro do impacto da quarentena na paisagem urbana, que migrou para o ambiente remoto, alterando consideravelmente os sons da cidade, mas não de forma homogênea.
Há três semanas, o grupo composto de 16 integrantes, incluindo a professora Giselle, captam os sons de suas janelas, em três horários fixos: às 10 horas, às 13 horas e às 20h30, registrando as alterações na rotina sonora da cidade. Além dos vários bairros da capital, foco principal da pesquisa, há moradores de cidades do interior e da Baixada Santista e também de Santiago do Chile.
Segundo a professora, em certas regiões, onde a rotina sonora não mudou ou apenas acentuou o silêncio que já era presente, a paisagem tende a se mostrar em imagens de uma forma muito mais repetitiva e calma. Em outras regiões, o cenário já é mais ruidoso, mas não regular, como aponta Giselle ao abordar o que chama de “janelaços” – os protestos políticos ocorridos à noite, recentemente, durante pronunciamentos do presidente Jair Bolsonaro.
A partir da pesquisa, diz a professora, foram descobertos sons que estavam perdidos em meio ao cotidiano agitado da cidade, mas há certas características com padrões que se repetem e também muitas exceções. “Dá para notar, por exemplo, uma crescente volta da ocupação do espaço, ou seja, as pessoas respeitando menos o isolamento. Nota-se também o aumento de vozes durante os protestos, com algumas batendo panelas, gritando ou cantando o Hino Nacional, em uma disputa de narrativas ocupando esse lugar estético que no começo não estava tão clara”, comenta. Com a diminuição do número de carros circulando pela cidade, em todas as gravações há a presença constante de motos – os entregadores ou, como a professora define, o “precariado digital”, que tem que estar nas ruas trabalhando.
O projeto deve ir um pouco mais além do fim do isolamento social decretado pelo governo do Estado de São Paulo – previsto para o dia 10 de maio –, para que se possa ter um contraponto com a coleta de sons de retorno às atividades. “É muito interessante contrapor esse universo sonoro. Teremos um mapeamento sonoro na situação de exceção do confinamento ao longo da volta até a retomada de todas as atividades”, prevê a professora. Por enquanto, todos os sons são arquivados em um drive compartilhado. Está em discussão o formato de sua apresentação, que pode ser uma instalação ou uma plataforma digital, ou ainda uma combinação das duas formas. “O que está definido é que o projeto dará visualidade à espacialidade desses sons e à escala temporal em que ele operou”, adianta.
Silêncios e ruídos
Matheus da Rocha Montanari, um dos integrantes do grupo liderado pela professora Giselle, mora na Bela Vista, região central da cidade, e começou a notar um aumento do silêncio durante o dia e a identificar ruídos que antes não eram percebidos. “Apesar de ter diminuído bastante o movimento, ainda tem muita gente na rua. Eu moro em frente a uma praça, onde a movimentação de crianças brincando no parquinho durante o dia aumentou bastante, o que é um pouco preocupante. Os áudios revelam isso, com sons de crianças na praça, que antes estavam na escola e agora têm que ficar em casa, e também dos vizinhos. Enquanto a rua vai esvaziando, o prédio vai ganhando vida. A gente não enxerga, mas escuta”, relata.
Além disso, com o uso da tecnologia via aplicativos de celular de transcrição de áudio para texto e de identificação de barulhos, que utilizam sistemas de inteligência artificial, Montanari descobriu coisas interessantes. “Por volta das 20h30 todas as noites, aqui na região, acontecem protestos, os ‘janelaços’. Nesse momento, surge uma dicotomia entre imagem e som, porque as ruas aparecem vazias, visualmente, mas estão ocupadas pelo barulho de uma multidão. E é isso que o aplicativo do celular capta, a imagem de uma rua vazia, mas que pelo áudio identifica como sendo o barulho de multidão.”
Também na transcrição do áudio para texto apareceram coisas curiosas: “O sistema capta algumas palavras soltas, e, por vezes, as entende como sendo outras. Por exemplo, durante um protesto, o vizinho gritou ‘Fora!’ e o sistema reconheceu como sendo ‘heal’, que é ‘cura’ em inglês. Achei uma imagem poderosa, dado o estado de pandemia em que vivemos e as incertezas que o governo federal vem gerando na população nos últimos dias, que resultam nesses protestos”.
Já o pós-graduando Vinicius Santos Almeida mora com seus pais no bairro Jardim Belém, que fica em Ermelino Matarazzo, na zona leste de São Paulo. “Aqui o barulho sempre fez parte da paisagem sonora. Na verdade, em todos os lugares aqui da zona leste, música alta é uma característica quase que natural. Mas é alta mesmo, chegando às vezes a tremer as janelas”, informa. Diferente da região central, que ficou mais silenciosa, Almeida relata que em seu bairro não houve essa mudança, mas que nem por isso demonstra que há menos adesão ao isolamento. “Provavelmente indica que a vida cotidiana por aqui tem maiores dificuldades de ser limitada ao espaço doméstico. Por diversos motivos: condição das habitações, número de pessoas por casa, sociabilidade no próprio bairro ou rua”, acredita.
Almeida ainda observa que, além da música alta, há uma sobreposição de músicas, que vêm de casas diferentes. “Eu moro em um apartamento e as músicas, no geral, vêm de casas do outro lado da rua. Funk, forró, eletrônica, gospel, de tudo. Há muitas pessoas na rua, algumas com máscara, outras sem, passando, paradas conversando, tomando cerveja, fazendo churrasco, ouvindo música no som do carro, andando de moto (empinando a moto e fazendo barulho). Enfim, vivendo normalmente.” Almeida ainda diz que a paróquia, que fica atrás de sua rua, parou de funcionar e de dar os avisos cotidianos sobre serviços de saúde e apoio ao cidadão, que eram cotidianos. “Ouvi uma única vez um carro passar dando instruções sobre segurança sanitária, identificando-se como da UBS (Unidades Básicas de Saúde) aqui da região.” Para completar a paisagem, continua, o mercado do bairro segue cheio e a lotérica, com filas enormes. “Não acho que é certo dizer que a quarentena por aqui é uma opção. Não parece ser”, conclui.
Outra participante do projeto, Aline Nakamura, é do interior de São Paulo. “Moro em Atibaia, no bairro Vila Rica. Durante o dia há o barulho da construção civil, em um terreno próximo, e à noite, por volta das 20h30, impera o silêncio, entre um ou outro ruído doméstico”, conta. “Aqui, diferente da capital, não há panelaços em grande peso – em Atibaia, mais de 70% da população votou em Jair Bolsonaro no segundo turno das eleições de 2018”, compara.
“É um mapeamento muito sutil, mas que está mobilizando o grupo todo, que trabalha para além das aulas”, diz Giselle Beiguelman. A professora ainda ressalta que é uma experiência pautada coletivamente, que tem ganhado repercussão, trazendo reconhecimento às áreas de criação e à universidade pública. Uma pesquisa definida por ela – em paralelo com o título de sua coluna semanal Ouvir Imagens, na Rádio USP (93,7 MHz) – como “ver os sons”. [1]
[1] Texto de Claudia Costa.
Como citar esta notícia: Jornal da USP. Como são os sons da cidade na quarentena? Texto de Claudia Costa. Saense. https://saense.com.br/2020/05/como-sao-os-sons-da-cidade-na-quarentena/. Publicado em 05 de maio (2020).