Jornal da USP
22/11/2024
A conexão entre intestino e cérebro vem sendo cada vez mais estudada pela comunidade científica e essa comunicação já é reconhecida como um sistema fisiológico fundamental para a regulação homeostática – processo pelo qual o organismo mantém constantes as condições internas necessárias para a vida – do corpo humano.
Chamado também de eixo intestino-cérebro, é composto de três centros principais: conectoma cerebral, conectoma intestinal e microbioma intestinal, além de amplas e múltiplas redes de comunicação entre eles. Imunidade, metabolismo, ciclo circadiano e comportamento são modulados pelo eixo intestino-cérebro.
Quando estamos ansiosos ou estressados, sentimos dores abdominais ou diarreia, por exemplo. Ou aquela sensação de “frio” no estômago que temos antes de passarmos por algo importante. Ou, ainda, quando comemos algo que nos faz mal e instintivamente evitamos ingeri-lo novamente.
Pesquisadores de todo o mundo vêm reportando as consequências das alterações nesse sistema, inclusive em transtornos psiquiátricos. Uma rápida passagem pelo Pubmed (uma base de dados de acesso público, criada e mantida pela Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos) mostra que, em 2023, 1.845 artigos científicos foram feitos tendo como base o eixo intestino-cérebro. Além disso, os estudos abrem perspectivas para novos tratamentos focados nesta conexão.
O livro Eixo Intestino-Cérebro: teorias e aplicações clínicas, lançado pela Manole Editora, aborda aspectos importantes para o melhor entendimento dessa integração, tais como microbiota e o hospedeiro, sistema nervoso central e neuromodulação, impacto da alimentação e do exercício físico na microbiota e no eixo intestino-cérebro em diferentes momentos da vida. Também discute testes laboratoriais, além do uso de prebióticos e probióticos, transplante de microbiota fecal e suplementos, distúrbios gastrointestinais e transtornos neuropsiquiátricos.
A publicação teve coordenação de Carla Taddei, professora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, Marcus Vinícius Zanetti, psiquiatra, coordenador científico do Ambulatório de Depressão Resistente ao Tratamento, Autolesão e Suicidalidade do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas (HC) da FMUSP (Pro-DRAS) e docente na Faculdade Sírio Libanês, e Emeran Anton Mayer, gastroenterologista, neurocientista e professor pesquisador nos Departamentos de Medicina, Fisiologia e Psiquiatria da David Geffen School of Medicine da UCLA, nos Estados Unidos.
O Jornal da USP conversou com Carla Taddei e Marcus Vinícius Zanetti sobre esse tema tão atual e sobre o processo de produção do livro.
Jornal da USP: Por que o eixo intestino-cérebro tem chamado tanto a atenção de pesquisadores e médicos?
Marcos Zanetti: É uma ascendência justamente porque os achados têm destacado como o eixo intestino-cérebro causa alterações em diferentes centros desse eixo, em condições de saúde mais frequentes, com maior impacto na população, inclusive os transtornos mentais. Mas não apenas: síndromes metabólicas, síndromes dolorosas, doenças autoimunes e oncologia. [Com as pesquisas] começa também a ficar mais claro por que os transtornos mentais andam de mãos dadas com os distúrbios metabólicos e com o próprio câncer. Isso não é muito intuitivo, mas a gente sabe que a ansiedade e depressão estão associadas ao aumento de incidência de câncer, de doenças gastrointestinais, não apenas intestino irritável, mas doenças inflamatórias intestinais. Antigamente se falava em distúrbios gastrointestinais funcionais e, atualmente, essas condições foram rebatizadas para interação cérebro-intestino. Observamos que alterações deste eixo [da microbiota intestinal e do intestino-cérebro] vão repercutir na saúde de maneiras diferentes e em diferentes áreas da medicina.
Carla Taddei: As interações entre intestino e cérebro são muito, muito complexas. Assim como o microbioma [conjunto de microrganismos e as atividades que desempenham em um ecossistema ou organismo] depende de cada indivíduo, essa interação também vai acontecer dessa forma porque esbarra na questão de como a sua microbiota está conversando com o seu cérebro. O que estamos vendo com os estudos ômicos [conjunto de técnicas moleculares que auxiliam na compreensão das diferentes moléculas biológicas que dão funcionalidades a um organismo], a metabolômica [base de todos os processos catabólicos e anabólicos de um organismo, refletindo suas vias bioquímicas e metabólicas], o transcriptoma [conjunto de RNAs expressos em uma célula ou grupo de células] e o metagenoma [conjunto de material genético de uma amostra ambiental que contém uma mistura de diferentes organismos microbianos] é que a resposta é mediada por metabólitos [produto do metabolismo das mais diversas substâncias em organismos vivos, ou seja, os resíduos que sobram depois que o organismo aproveita a parte útil de um alimento, por exemplo] comuns. Você pode ter uma microbiota diferente do outro, mas a resposta pode ser muito semelhante porque os metabólitos são comuns. Por outro lado, ainda estamos no caminho de entender o porquê, e o metaboloma está revolucionando esse entendimento, trazendo informações sobre a conexão entre a microbiota e o hospedeiro.
“Ansiedade e depressão estão associadas ao aumento de incidência de câncer, de doenças gastrointestinais, não apenas intestino irritável, mas doenças inflamatórias intestinais”
JUSP – A primeira seção do livro é focada na microbiologia e em metodologias ômicas. Que tipo de conteúdo o leitor vai encontrar?
CT: Esses temas são muito pouco conhecidos no meio médico, mas os nutricionistas estão bem envolvidos por conta das dietas. São assuntos pouco explorados: o que é microbioma? Como se diferencia microbiota de microbioma? O que são os metabólitos? Como é essa conexão na produção de metabólitos? Como se estuda o microbioma, como se interpretam resultados? Quais são as ferramentas de bioinformática disponíveis? Essa primeira parte vai trazer um pouco de luz para entender o resto do livro. Depois vem o eixo microbiota, intestino e cérebro.
MZ – A gente fala muito do eixo microbiota-intestino-cérebro, porque microbiota é uma protagonista, né? Ao longo da nossa evolução, o nosso organismo, de forma muito elegante, foi descentralizando e delegando funções para esses microrganismos. O genoma da microbiota excede o genoma humano por um fator de mil: são mais de 22 milhões de genes em comparação aos cerca de 23 mil genes do genoma humano. Estamos falando de uma série de genes e sistemas enzimáticos que codificam proteínas que o nosso corpo não codifica mas que, de certa forma, estão associados a funções das quais a gente depende hoje. Isso mostra como dependemos simbioticamente da nossa microbiota, do nosso microbioma. Em um estudo do microbioma intestinal com ratos germ-free (livres de germes e parasitas, tanto internos como externos) o parto é feito de uma forma séptica. Quando se elimina a microbiota, o organismo se degenera. Então, precisamos da microbiota, mesmo para se desenvolver e para manter funções. Existe todo um paralelo da evolução, da composição e da diversidade da microbiota intestinal ao longo da vida e os vários processos muito importantes do desenvolvimento, amadurecimento e envelhecimento tanto do sistema nervoso como do sistema imune (e, certamente de outros órgãos). Eu diria que a microbiota é fundamental para a vida. Ela faz parte de nós, não conseguimos nos livrar dela e, por isso, temos que cuidar bem dela.
JUSP – As seções seguintes abordam o impacto da atividade física na microbiota intestinal e exames laboratoriais. Qual foi o perfil dos profissionais que vocês escolheram para colaborar nesses capítulos?
CT – Na parte da atividade física, nós chamamos um pesquisador da USP que já estudou bastante o impacto do exercício físico, da atividade física, na saúde. Obviamente, por causa do meu trabalho, tenho proximidade com nutricionistas com conhecimento muito vasto sobre a importância da dieta na modulação do microbioma.
JUSP – Já existem exames complementares disponíveis para avaliar a saúde gastrointestinal?
CT – O exame para a detecção do microbioma é uma coisa muito específica e se não for bem feita não serve para nada. Por que o paciente quer saber se você tem uma bactéria x, y, z, se ele não sabe interpretar o exame? Precisa ser uma coisa muito bem direcionada e com indicação médica. Nós temos vários exames complementares: bioquímicos, voltados para a saúde intestinal, que acabam sendo mais importantes do que de fato o da microbiota.
MZ – Como toda a área nova, às vezes existe o interesse comercial, que anda mais rápido do que o conhecimento científico subjacente. As coisas vão acontecendo em paralelo. Por um lado, temos um exame que é muito precioso, amplamente disponível e os convênios cobrem. O único problema é que existe uma baixa padronização entre os diferentes laboratórios. O [exame] coprológico funcional, que avalia o processo digestivo e o PH fecal, também varia bastante. Eu diria que você hoje pedir um exame que dê ali uma estimativa de composição da microbiota intestinal, sem um coprológico funcional, vai ser difícil de interpretar. Agora, existem vários exames já comercialmente disponíveis e que ainda não fazem parte do rol de procedimentos da ANS [Agência Nacional de Saúde]. Um dos objetivos do nosso livro é também instrumentalizar profissionais de saúde para entenderem e interpretarem melhor essa tecnologia e a qualidade de um exame, até porque hoje nós falamos que uma microbiota saudável tem características específicas. Por outro lado, ainda não temos assinaturas bem definidas de doenças específicas. No caso dos transtornos mentais graves, eles parecem estar associados a um padrão alterado com redução de bactérias benéficas e excesso de bactérias que têm um potencial inflamatório. Mas o microbioma intestinal não é formado só de bactérias: temos os vírus, os fungos, as arqueas e essas relações ecológicas são uma fronteira muito inexplorada. A ciência já sabe bastante sobre o bacterioma, mas muito pouco ainda dos outros biomas. Então, é importante olharmos para esse conhecimento com um pouco de humildade e entender que ainda existem limitações.
“No caso dos transtornos mentais graves, eles parecem estar associados a um padrão alterado com redução de bactérias benéficas e excesso de bactérias que têm um um potencial inflamatório. Mas o microbioma intestinal não é formado só de bactérias: temos os vírus, os fungos, as arqueas e essas relações ecológicas são uma fronteira muito inexplorada”
JUSP – O que já se sabe sobre a associação da microbiota com transtornos psiquiátricos?
MZ – Transtornos mentais graves parecem estar associados a um padrão inespecífico de redução de bactérias benéficas, principalmente as chamadas produtoras de uma classe de metabólitos bacterianos sabidamente muito importante para a adição dos ácidos graxos de cadeia curta e enriquecimento. Quando a gente compara esquizofrenia, depressão maior, transtorno bipolar, parece ter alguns microrganismos que querem caracterizar uma assinatura específica, mas isso ainda é muito preliminar, muito incipiente, porque o que temos é um padrão inespecífico de uma alteração, mas uma alteração que pode contribuir para neuroinflamação e neuroprogressão, que a gente observa em todos os transtornos mentais graves. Mas de onde vem esse padrão?
Quando olhamos para os estudos com autismo, vemos alguns padrões semelhantes, mas a própria alteração comportamental, a seletividade alimentar associada ao próprio quadro do autismo, por si só vai impactar a composição da microbiota intestinal e vai se refletir em uma menor diversidade de flora, que também vamos observar nos transtornos alimentares, como a anorexia nervosa. Sabemos, também, que o estresse crônico influencia a microbiota intestinal. Pacientes com transtornos mentais graves, na média, têm hábitos de vida poucos saudáveis, eles se alimentam mal, são sedentários. A atividade física tem uma influência positiva sobre a microbiota intestinal. Observamos, também, que existe uma relação recíproca entre a microbiota intestinal e o nosso ritmo circadiano: desequilíbrios da microbiota podem contribuir para a insônia. Os estudos do eixo intestino-cérebro nos transtornos mentais reforçam a importância das intervenções no estilo de vida. Temos que atuar em várias frentes: crenças, medicações quando indicadas, psicoterapia, gerenciamento de estresse, melhora na alimentação, atividade física e técnicas de integração mente-corpo tais como yoga e tai-chi. Precisamos melhorar o estresse crônico, independente de sobre qual transtorno mental específico estejamos falando.
Atualmente, está em andamento uma série de estudos com transplante de microbiota fecal. O que temos de bem definido? Por enquanto nada! Mas essa linha de investigação parece muito promissora. Já existe uma série de casos publicados. Quando pesquisamos no clinicaltrials.gov vemos vários estudos controlados em andamento para diferentes transtornos mentais: transtorno fecal para autismo, depressão maior, bipolaridade, transtornos neurodegenerativos… é um campo muito quente hoje da medicina e da literatura médica.
“Os estudos do eixo intestino-cérebro nos transtornos mentais reforçam a importância das intervenções no estilo de vida (…) Precisamos melhorar o estresse crônico, independente de sobre qual transtorno mental específico estejamos falando”
JUSP – O livro é voltado apenas para profissionais de saúde?
CT – Alguns conceitos podem ser interpretados de uma forma muito simplista por pessoas leigas. As pessoas da área de saúde sabem, pelo menos, alguns conceitos básicos que vão norteá-las melhor.
MZ – Procuramos escrevê-lo de uma forma acessível, até porque tem conceitos bioquímicos que mesmo para o profissional de saúde não são fáceis. Temos capítulos profundos em bioquímica realmente muito técnicos, outros que são mais acessíveis, mas eu tenho recebido na minha rede social muitos comentários positivos de pessoas que são pacientes que sofrem com algum distúrbio intestinal, compraram e estão gostando. [1], [2]
[1] Texto de Fabiana Mariz
[2] Publicação original: https://jornal.usp.br/ciencias/o-que-a-ciencia-ja-sabe-sobre-a-conexao-cerebro-e-intestino/
Como citar este texto: Jornal da USP. O que a ciência já sabe sobre a conexão cérebro e intestino. Texto de Fabiana Mariz. Saense. https://saense.com.br/2024/11/o-que-a-ciencia-ja-sabe-sobre-a-conexao-cerebro-e-intestino/. Publicado em 22 de novembro (2024).