Agência FAPESP
11/03/2019

Bairro Cantinho do Céu, São Paulo. [1]

A vida social concebida como uma “guerra” e os indivíduos pobres idealizados como “guerreiros”: nesse quadro, a receita para ser um “guerreiro” impecável e transitar em meio ao conflito de cabeça erguida é adotar o “proceder”, um padrão ético que deve guiar pensamentos, palavras e ações. O “proceder” baliza os passos dos trabalhadores honestos. E também daqueles que enveredaram pelos caminhos do crime, definindo para estes “a maneira certa de fazer a coisa errada”.

Esta construção ideológica, que se difundiu nas periferias de megalópoles como São Paulo, constitui o fio condutor do livro Sobreviver na adversidade: mercados e formas de vida, de Daniel Veloso Hirata, publicado com apoio da FAPESP. Parte do estudo foi feito no Centro de Estudos da Metrópole (CEM), um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP. 

“Meu foco foram as relações entre os mercados informais ilegais e as formas de vida que se estruturam a partir disso. ‘Mercados e formas de vida’, aliás, é o subtítulo do livro”, disse Hirata à Agência FAPESP. 

Quanto ao título, “Sobreviver na adversidade”, Hirata contou que o copiou de uma frase de William da Silva Lima, vulgo Professor, que foi um dos fundadores da organização criminosa Comando Vermelho. “Em seu livro 400 contra 1, que depois virou filme, William afirmou ser impossível destruir o Comando Vermelho, pois este não era propriamente uma organização, mas uma maneira de ‘sobreviver na adversidade’. Essa expressão me pareceu muito importante, por deslocar a compreensão usual que se tem do crime”, disse o pesquisador.

Atualmente professor de sociologia na Universidade Federal Fluminense (UFF), Hirata vem estudando as formas de vida e as construções culturais das periferias desde 2001. “Comecei, quando ainda estudante de graduação na Universidade de São Paulo (USP), participando de uma pesquisa coordenada por Vera da Silva Telles. Queríamos entender as mudanças que estavam ocorrendo na vida urbana e no mercado de trabalho. Era o início da década de 2000, mas o momento ainda trazia as marcas das transformações ocorridas ao longo dos anos 1990: desindustrialização, aumento da informalidade nas relações de trabalho, reconfiguração urbana, favelização, chegada de grandes equipamentos de consumo, como as redes de supermercados, às periferias. Aprofundei esse estudo no mestrado e doutorado, ambos orientados pela Vera”, afirmou.

O livro agora publicado é um desdobramento da pesquisa de doutorado. E resultou, em grande parte, de um encontro inesperado. “Estávamos pesquisando em oito territórios do município de São Paulo, quatro na Zona Sul e quatro na Zona Leste. Em um desses territórios, havia um homem, Paulo, que estava saindo da prisão após 10 anos. Ele ouviu dizer que havia pesquisadores andando pelo bairro, querendo saber das histórias das pessoas. Por intermédio de pessoas com as quais tínhamos contato, Paulo nos procurou para dar o seu depoimento pessoal. Foi um desses encontros decisivos, que bifurcam os caminhos de uma pesquisa. Começamos uma série de entrevistas, não apenas com ele, mas também com seus antigos parceiros. E isso foi abrindo, cada vez mais, o campo de investigação. Foi um trabalho que se estendeu de 2004 a 2010. E, de certa forma, prossegue até hoje”, relatou Hirata.

Foram esses encontros que forneceram ao pesquisador o material empírico para entender as relações entre formas de vida e mercados informais ilegais. E deram concretude às ideias de “guerra”, “guerreiro” e “proceder”. “Busquei explorar principalmente lugares muito violentos, onde as fronteiras entre o legal e o ilegal, a vida e a morte são extremamente tênues – lugares em que a sobrevivência na adversidade era um desafio cotidiano”, disse.

Naquele momento, essa investigação era especialmente importante – não apenas porque se tornara um forte tema acadêmico, mas também porque buscava explicar um fenômeno novo, muito relevante. Esse fenômeno era uma queda sem precedentes na curva dos homicídios em São Paulo. Ao longo de uma década, entre a metade dos anos 1990 e a metade dos anos 2000, os homicídios caíram mais ou menos 70%. Por que isso aconteceu?

“O enunciado hegemônico atribuía tudo às políticas de Estado, enfatizando medidas relativas à polícia e ao regime prisional. Nossa pesquisa de campo nos trouxe um quadro mais complexo, mostrando um outro fator que estava sendo negligenciado: a dinâmica interna do crime, pautada pela ideia do ‘proceder’. Na época, nossa interpretação não foi muito bem aceita. Hoje, o enunciado hegemônico nos concede o título de ‘hipótese etnográfica’ para explicar a queda de homicídios”, afirmou Hirata.

“Havia uma disputa nas relações de poder e de gestão da ordem nesses lugares perigosos. O que o PCC [Primeiro Comando da Capital, organização de grande porte envolvida no tráfico de drogas, assaltos e coordenação de rebeliões nos presídios] fez, mas não só ele, foi virar o equilíbrio de forças anterior, organizado a partir das figuras dos ‘matadores’ e dos ‘grupos de extermínio’. Nas ‘quebradas’, isto é, nas periferias das megalópoles, esses ‘matadores’ e ‘grupos de extermínio’ eram, de fato, frutos de uma aliança entre empresários locais [comerciantes, donos de supermercados, donos de padaria] e policiais, na ativa ou na reserva, em serviço ou fora dele. Os alvos desses grupos foram os protagonistas do enfrentamento que alterou em certa medida a correlação de forças”, explicou o pesquisador.

Segundo Hirata, essa virada foi pautada pela “ética do proceder”. “A ideia do ‘proceder’ veio de muitos lugares diferentes. E isso foi, nos últimos anos, objeto de estudo de muitos colegas pesquisadores. Houve, é claro, a influência dos famosos ‘debates do PCC’. Estes eram fóruns de discussão, coordenados pela organização para mediar um sem-número de conflitos, desde brigas de marido e mulher e desavenças entre vizinhos, passando por questões maiores, como ocupações irregulares de terras, até problemas que se estendiam para além dos limites do bairro, como disputas territoriais entre donos de pontos de venda de drogas ou de mercadorias roubadas. A influência dos ‘debates do PCC’ foi forte, mas não foi a única”, disse.

Conforme o pesquisador, o alcance da “ética do proceder” é muito mais amplo do que o mundo do crime. Caso contrário, não teria tido a aderência que teve e continua tendo. “O ‘proceder’ tem a ver com toda essa experiência urbana de ‘sobreviver na adversidade’, de ‘guerra e guerreiros’. Encontramos, muito fortemente, a ideia do ‘proceder’ em letras de rap. Mas também em grupos de pichadores, grupos de baloeiros, times de futebol de várzea e por aí vai. Essa categoria e o léxico no qual se apoia são extremamente difusos”, afirmou.

Em seu livro, Hirata enfocou três fenômenos, ou “cenas”, como ele prefere dizer: a “birosca”, isto é, o pequeno estabelecimento comercial; o transporte clandestino feito por perueiros; e a “biqueira”, como é chamado o ponto de venda de drogas. “A pesquisa de campo nos mostrou toda a inconsistência do enunciado oficial, baseado na dicotomia ‘Estado democrático de direito versus crime organizado’. Isso simplesmente não existe. O chamado ‘crime organizado’ não é um ‘poder paralelo’, que se constitui ‘apesar do Estado’. Ele se constitui ‘sob o Estado’ e ‘junto com o Estado’. O fenômeno da ‘biqueira’ é claríssimo a respeito. Os vendedores de maconha, cocaína e outras drogas, que operam nesses pontos, só podem atuar com uma autorização ilegal da polícia. Em outras palavras, a polícia sabe muito bem onde estão os pontos de venda de drogas e quem atua neles”, disse.

“Verificamos que a delegacia do bairro funcionava como agência de regulação dos vários pontos de venda de drogas atuantes na região. Semanalmente, a delegacia cobrava um preço pelo que eu chamei de ‘alvará de funcionamento’. Porque a coisa funcionava, de fato, como um alvará, isto é, um instrumento que autorizava a venda de determinadas mercadorias, sob certas condições, mediante o pagamento de taxas. A taxa era o que a delegacia cobrava para deixar os pontos de venda de drogas funcionando”, relatou o pesquisador.

“Além disso, havia as chamadas ‘invasões’, que eram incursões da polícia, dentro do perímetro de atuação da ‘biqueira’, para sequestrar alguém que fizesse parte ou não da firma, com o objetivo de exigir um ‘acerto’ em seguida. Evidentemente, quem fazia isso não era o pessoal da delegacia. Eram outros setores da polícia civil ou rondas da polícia militar. Então, havia duas formas de o pessoal do ponto de venda de drogas comprar proteção policial. Uma era estável, mais negociada, menos violenta, análoga à compra de um alvará comum. A outra era instável, abrupta e violenta, que consistia em pagar resgate para obter a liberação de pessoas sequestradas. De uma forma ou de outra, ou eventualmente das duas formas, os envolvidos no tráfico compravam proteção da polícia contra ameaças, potenciais ou efetivas, criadas pela própria polícia”, prosseguiu.

Hirata disse que, ressalvadas as especificidades, essa relação com o poder de Estado também aconteceu nos casos do transporte clandestino e das “biroscas”. Impulsionadas pela acelerada transformação tecnológica e também pelos deslocamentos sociais e políticos dos anos recentes, essas cenas sofreram reconfigurações, é claro. Mas as linhas de força apontadas no livro se mantêm. Elas foram resumidas poeticamente no rap dos Racionais MC’s por meio da expressão “vida loka”. Entender a “vida loka” é fundamental para entender a vida social contemporânea. [2], [3]

[1] Crédito da imagem: Emerson Silva Cavalcante – Wikimedia Commons.

[2] Livro: Sobreviver na adversidade: mercados e formas de vida, de Daniel Veloso Hirata. Edufscar (2018).

[3] Esta notícia científica foi escrita por José Tadeu Arantes.

Como citar esta notícia científica: Agência FAPESP. Sobreviver na adversidade. Texto de José Tadeu Arantes. Saense. https://saense.com.br/2019/03/sobreviver-na-adversidade/. Publicado em 11 de março (2019).

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