Jornal da USP
19/02/2020

Auschwitz, Polônia. Imagem de larahcv por Pixabay

Por Hernan Chaimovich, Professor Emérito do Instituto de Química da Universidade de São Paulo

Setenta e cinco anos atrás, o avanço do exército russo “libertou” Auschwitz. Parte da mídia usou a palavra “encontrado”, em vez de simplesmente reconhecer que um soldado chegou ao campo de concentração naquele dia. Eu tinha cinco anos na época e o fato não foi tão alegre para minha família quanto poderíamos esperar. Tínhamos consciência, desde o início dos anos 40, da existência de campos de extermínio. Esse conhecimento era tão predominante que, mesmo vivendo no “fim do mundo”, ou Santiago do Chile, eu, desde muito jovem, estava ciente do Holocausto. Na sinagoga, lembro-me de muitas orações por aqueles que se transformaram em fumaça, bem como pelo fim da guerra.

Logo após abril de 1945 as primeiras fotos dos campos de extermínio começaram a aparecer em uma revista publicada pelo Escritório de Assuntos Interamericanos dos EUA, En Guardia. Essas fotos deveriam ter sido proibidas para crianças de cinco anos, mas, na sala de espera do meu tio médico, não havia censores.

Não pretendo aqui evocar os sentimentos de ver as pilhas de dentaduras, a quantidade de obturações dentárias douradas, a montanha de óculos, as dimensões dos montes de cabelos, os corpos emaciados ou a complexidade do horror retratado em En Guardia. Muitos escritores, historiadores, cineastas, entre outros, mostraram e se referiram a esses fatos.

É outro sentimento intenso que preciso comunicar, pois faz parte de mim e também é um aviso necessário para enfrentar estes tempos. Lembro-me claramente de meus sentimentos contraditórios de raiva, pelos que morreram sem conseguir matar, e de frustração de não ter idade suficiente para acabar com nazistas. Meus brinquedos na época eram relacionados à guerra, e eu matava incessantemente, em minha imaginação jovem, zilhões de soldados nazistas. Minha raiva e desejo de matar nazistas naquele momento provavelmente determinaram boa parte da minha personalidade.

Hoje, ouvimos muitas autoridades políticas e religiosas distintas declarando “nunca mais”. Ao mesmo tempo, ações e declarações antissemitas crescem em quase toda parte. Para mim, o anúncio “nunca mais” é muito mais do que parte de um discurso político ou de uma declaração religiosa. É um convite que exige uma decisão, um compromisso pessoal de todos aqueles que não aceitam perseguição que busca decretar que alguém deve morrer por causa de sua fé, raça ou nacionalidade.

A fim de que não restem dúvidas, quero explicitar minha interpretação da afirmação “nunca mais”.

Para mim, “nunca mais” significa que, enquanto as ações antissemitas forem declarações, sou obrigado a reagir pessoalmente, oralmente ou por escrito, sem deixar que apenas outros assumam essa responsabilidade. Se as ações antissemitas forem escaladas para, por exemplo, profanação de cemitérios, devemos estar prontos para denunciar os autores publicamente e se o Estado, responsável pela aplicação da lei, não reagir, desmascarar e puni-los, a responsabilidade será nossa. Se os atos de violência pessoal decorrentes de ações antissemitas ameaçam a paz ou a vida das pessoas e não são tratados corretamente pelo Estado, a responsabilidade de agir é nossa.

Como citar este artigo: Jornal da USP. “Nunca mais”, minha responsabilidade.  Texto de Hernan Chaimovich. Saense. https://saense.com.br/2020/02/nunca-mais-minha-responsabilidade/. Publicado em 19 de fevereiro (2020).

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