Jornal da USP
19/02/2020

Exemplares do molusco recolhido em Trindade foram comparados com conchas existentes no acervo do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, que se acreditava serem da espécie Macrocypraea zebra – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Molusco que só existe na Ilha da Trindade, a 1.160 quilômetros do litoral do Brasil, possui concha com formas que lembram presas de animal pré-histórico

Há muitos anos, moluscos com uma concha brilhante como porcelana chegaram até as rochas no fundo do mar na Ilha da Trindade, localizada a 1.160 quilômetros da costa brasileira, no litoral do Espírito Santo. Os moluscos tiveram mutações que, por seleção natural, deram origem, muito tempo depois, a uma nova espécie, a Macrocypraea mammoth, capaz de sobreviver a predadores como o peixe-papagaio. O molusco era desconhecido dos cientistas, até que três exemplares vivos foram coletados por uma expedição de pesquisa na ilha e identificados no Museu de Zoologia (MZ) da USP. Por existir apenas em Trindade, os responsáveis pela descoberta vão pedir a inclusão do animal na lista brasileira de espécies protegidas, para que não corra o risco de desaparecer.

A descoberta da nova espécie é descrita em artigo da revista científica Plos One. A Macrocypraea mammoth pertence a uma família de moluscos que possuem concha em forma de búzio, com brilho aporcelanado. “De início, pensou-se que fossem animais da espécie Macrocypraea zebra, que é muito comum no litoral das Américas e do Caribe, cujo tamanho de concha pode chegar a até 10 centímetros (cm)”, afirma o pesquisador Luiz Ricardo Simone, do MZ, que assina o artigo com Daniel Cavallari, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP. “Normalmente, moluscos de ilhas oceânicas têm conchas com metade ou um terço do tamanho das que são encontradas na costa. No entanto, os animais estudados tinham conchas de até 15 cm, mais espessas e pesadas, o que abriu a possibilidade de se tratar de uma espécie desconhecida.”

Os moluscos recolhidos em Trindade foram comparados com um grupo de conchas coletadas ali nos anos 1970, emprestado pelo Museu Nacional, no Rio de Janeiro, que se acreditava serem de Macrocypraea zebra. “Graças ao empréstimo, essas conchas escaparam do incêndio do Museu Nacional, em setembro de 2018”, aponta o pesquisador. “A comparação anatômica entre as conchas e os animais vivos permitiu determinar que os animais pertenciam a uma espécie diferente, que ainda não tinha sido identificada pelos cientistas.”

Simone explica que as espécies de moluscos do gênero Macrocypraea costumam fazer referência a animais em seu nome científico devido aos desenhos na superfície das conchas, como no caso da Macrocypraea zebra. “No caso da nova espécie, a concha possui projeções que lembram as presas de um mamute, um animal pré-histórico extinto aparentado com o elefante, por isso ela recebeu o nome Macrocypraea mammoth”, conta.

Proteção contra predadores

Macrocypraea mammoth vive nas rochas no fundo do mar, localizadas em profundidades de 30 a 40 metros, na região da Ilha da Trindade, localizada a 1.160 quilômetros do litoral do Espírito Santo. “Nas ilhas oceânicas da costa brasileira, como Trindade, Martim Vaz, Fernando de Noronha, Atol das Rocas e Penedos de São Pedro e São Paulo, cerca de metade das espécies de invertebrados (moluscos, crustáceos e anelídeos, entre outros) são endêmicas, ou seja, surgidas e existentes apenas naqueles locais”, diz o pesquisador. “A nova espécie surgiu a partir da evolução de outros moluscos que chegaram até a ilha trazidos provavelmente por tempestades marinhas ou mesmo por jangadas.”

De acordo com Simone, os moluscos que chegaram a Trindade desenvolveram mutações ao longo do tempo para poder sobreviver aos predadores, principalmente o peixe-papagaio de água salgada. “Esse peixe possui uma espécie de bico que fura as conchas e permite que ele se alimente de corais e moluscos”, relata. “Desse modo, eles precisaram se adaptar por meio de mutações, que levaram a uma concha de 0,5 cm de espessura, mais resistente à predação. As mudanças foram tantas que aconteceu um processo de especiação, ou seja, de surgimento de uma nova espécie.”

O pesquisador acredita que o Macrocypraea mammoth também desenvolveu hábitos noturnos, para fugir do peixe-papagaio. “Durante o dia, quando os peixes se alimentam, eles ficam escondidos nos vãos entre as rochas, saindo apenas à noite. Isso provavelmente dificultou a coleta de animais vivos, já que em geral as expedições científicas recolhiam apenas as conchas”, afirma. A Ilha de Trindade é administrada pela Marinha do Brasil e possui instalações para pesquisadores. “A coleta, que é feita por mergulhadores, é realizada apenas durante o dia, por razões de segurança.” Os moluscos foram coletados em uma expedição que pesquisava crustáceos e foram enviados ao MZ para identificação.

Depois de a comparação anatômica ter indicado uma nova espécie de molusco, o Macrocypraea mammoth irá passar por testes de DNA para determinar há quanto tempo ela está isolada. “Agora que a espécie foi descrita, por ser endêmica, é preciso que seja incluída na lista de espécies protegidas do governo federal e do Estado do Espírito Santo, para impedir o seu desaparecimento”, ressalta Simone. “As conchas de moluscos do gênero Macrocypraea são muito procuradas por colecionadores, por isso têm grande valor comercial. Assim, apesar da Ilha da Trindade estar muito distante da costa, a coleta com fins comerciais poderia colocar a espécie em risco.”

Mais informações: e-mail lrsimone@usp.br, com Luiz Ricardo Simone

Como citar esta notícia: Jornal da USP. Um “mamute” é descoberto no fundo do mar em ilha brasileira.  Texto de Júlio Bernardes. Saense. https://saense.com.br/2020/02/um-mamute-e-descoberto-no-fundo-do-mar-em-ilha-brasileira/. Publicado em 19 de fevereiro (2020).

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