UFRGS
06/03/2019

TKCA Photography – CC BY 2.0

Entender como os casais brasileiros se apoiam e dividem as tarefas quando ocorre a chegada do primeiro bebê da família foi o objetivo do estudo da psicóloga Beatriz Schmidt no seu doutorado no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRGS. No trabalho, a pesquisadora trouxe para a realidade brasileira um conceito bastante utilizado em estudos norte-americanos – a coparentalidade – para observar como seis casais lidaram com esse processo na transição para a parentalidade, isto é, no nascimento do primeiro filho. A pesquisa recebeu o Grande Prêmio Capes de Tese como melhor trabalho na área das Humanidades no último mês de dezembro.

Beatriz conta que, na área da Psicologia, um conceito muito utilizado no estudo das relações familiares é o da parentalidade, que envolve a relação do cuidador (o pai ou a mãe, por exemplo) com a criança. Tradicionalmente, as pesquisas sobre desenvolvimento infantil e as políticas públicas enfatizam a relação mãe-bebê, o que se reflete no maior tempo de licença-maternidade e na ênfase das políticas públicas à saúde materno-infantil. Só mais recentemente (aqui no Brasil, nos anos 90), com o ingresso da mulher no mercado de trabalho e a mudança nas configurações familiares, os estudos começaram a pesquisar a relação do pai com a criança. Os autores também identificaram que não havia pesquisas sobre a relação entre pai, mãe e bebê, e criaram o conceito da coparentalidade para estudar esse fenômeno. “Coparentar é parentar em conjunto: diz respeito à forma como os indivíduos se coordenam, se apoiam – ou, por outro lado, se criticam e se depreciam – dividem tarefas, inclusive as domésticas, no que diz respeito ao bebê”, define Beatriz.

A partir do contexto e desses conceitos, a pesquisadora realizou um estudo longitudinal com seis casais heterossexuais que estavam tendo o primeiro filho. A escolha por casais que estavam experimentando a parentalidade pela primeira vez foi motivada pela complexidade do momento. “Em um casal, a relação que predomina é a conjugalidade. Quando chega uma criança, essas pessoas vão ter que desenvolver a parentalidade e a coparentalidade e ainda incluir os papéis de outras pessoas, como os avós. É uma série de mudanças nas identidades individuais, de casal e de pai ou mãe”, pontua.

Para entender como ocorre esse processo, foram feitas entrevistas com os casais – todos voluntários – durante o chamado período de transição para a parentalidade, aos 6, 12 e 18 meses de vida da criança. A primeira entrevista, realizada aos 6 meses, foi retrospectiva: os participantes falavam sobre como foi a gestação e mencionavam os acordos aos quais chegavam já nesse momento. “Um dos achados da tese é que a coparentalidade inicia durante a gravidez, quando os casais debatem temas como ‘quando vamos colocar o bebê na creche?’, ‘como vamos fazer em relação a limites?’”, relata a pesquisadora. Esses acordos sobre os cuidados da criança são uma das dimensões da coparentalidade e envolvem o gerenciamento de possíveis diferenças entre os pais. “Como eles vêm de experiências de vida familiar diferentes, é esperado que eles tenham ponto de vista distintos. Isso não é um problema, mas eles precisam saber manejar esses conflitos”, destaca.

Outro aspecto investigado na pesquisa foi o apoio (ou a depreciação) coparental. Um dos resultados encontrados é que esses dois fatores não são excludentes: os genitores podem ora se apoiar, ora se depreciar. Beatriz conta que em geral, os casais se valorizavam, elogiavam um ao outro, mas também se criticavam em alguns momentos. Ela ressalta a influência desse aspecto para a segurança emocional e o desenvolvimento socioemocional da criança: “Nos casais que têm um fraco apoio e um alto nível de depreciação, em geral a criança tem mais dificuldades no ajustamento socioemocional. Ela cresce em um ambiente mais competitivo e muito pouco cooperativo, então é esperado que ela seja mais competitiva nas relações na escola, com outras crianças, por exemplo”.

Sobrecarga feminina

O estudo também procurou analisar os arranjos de cuidado e as redes de apoio que alguns casais acionaram após a licença-maternidade. Duas das famílias entrevistadas matricularam o filho em uma escola de educação infantil. Em outros dois casos, foi observado um arranjo bem particular do Brasil: as famílias contrataram babá ou empregada doméstica para ajudar nos cuidados. Em duas famílias estudadas, a mãe deixou o mercado de trabalho para se dedicar integralmente ao cuidado do bebê.

A pesquisadora observou que a divisão de tarefas entre os casais foi impactada pela escolha do arranjo de cuidado do bebê. Nas situações em que a mãe se dedicava exclusivamente à maternidade, a divisão de papéis ficou bem tradicional: o pai não se envolvia no cuidado e trabalhava muitas horas fora de casa, enquanto a mulher assumia todas as tarefas relacionadas ao bebê e ao lar. Beatriz relata que “coincidentemente, nesses casos a coparentalidade era um pouco mais frágil, a mulher estava mais sobrecarregada e sem rede de apoio”.

Nas outras famílias, em que os pais contavam com creche ou babá, foi encontrada uma maior participação do pai nos cuidados com a criança logo após o nascimento – o que pode ser explicado pela licença-paternidade e pelo fato de a mãe estar se recuperando do parto. O estudo também apontou que, mesmo que no começo da vida do bebê os cuidados sejam mais compartilhados, esse trabalho acaba sendo considerado papel da mulher e, ao longo do tempo, é executado majoritariamente por ela.

Em relação à divisão dos afazeres domésticos (como limpar a casa e preparar comida), a pesquisadora percebeu que, nas seis famílias estudadas, ela era muito desigual. “Essas tarefas eram integralmente realizadas pelas mães desde o nascimento da criança, e os homens tinham uma grande dificuldade de se envolver nas atividades”, explica. Isso ocorreu independentemente do arranjo de cuidado escolhido pela família, com algumas diferenças: quando a criança estava sob cuidado exclusivo materno ou frequentava a creche, a mãe assumia majoritariamente a responsabilidade pela realização das tarefas domésticas. Já nos casos em que havia uma babá ou empregada que fazia o trabalho doméstico, era a mãe quem acompanhava o trabalho da profissional e fazia combinações sobre a rotina da casa.

Essa sobrecarga feminina impacta diretamente na saúde da mulher e na satisfação dela com a maternidade. Muitas mulheres estão inseridas no mercado de trabalho, com carga horária similar à dos homens, e ainda acumulam as tarefas domésticas e de cuidado do bebê. “Isso gera uma tendência de elas estarem mais insatisfeitas com a vida familiar depois do nascimento de um filho”, explica Beatriz. “Não é à toa que temos um grande número de mulheres que adoecem – cerca de 15% das mulheres têm depressão pós-parto –, e isso tem muito a ver com a sobrecarga e a transição de papéis”, comenta.

Nesse aspecto, a questão cultural também pesa. Na cultura latina, é bastante comum a família ampliada (como os avós) estar próxima do casal, a mãe e a avó se encarregarem dos cuidados com a criança e excluírem o pai desse papel. Além disso, o pai às vezes não executa algumas tarefas porque não se considera apto, já que a mulher é tida como cuidadora de referência. “Isso o deixa um pouco de fora dessa relação de cuidado, ele participa menos, e muitas vezes as mulheres têm comportamentos que afastam o parceiro, como desencorajar e criticar”, afirma Beatriz.

Rede de apoio e políticas públicas

A criação de uma rede de suporte nas famílias e a formulação de políticas públicas podem ajudar a mudar esse panorama. A pesquisadora observou que, no caso das famílias que matricularam a criança em uma creche, essa instituição foi um elemento importante de apoio (não só pelo local em si, mas pela rede que se forma com os pais e mães de outras crianças). Outro resultado observado no estudo foi que as famílias que puderam contratar uma babá ou uma empregada doméstica também tiveram mais suporte, e a mulher não ficou tão sobrecarregada – ainda que normalmente fique a cargo dela o acompanhamento do trabalho da profissional.

Para Beatriz, a própria legislação brasileira já coloca muita expectativa sobre o papel da mulher na criação dos filhos. No Brasil, a licença-maternidade varia entre 120 dias, para trabalhadoras regidas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), e 180 dias, para servidoras públicas e empregadas de empresas que aderiram ao Programa Empresa Cidadã, instituído pela lei 11.770/2008. Já a licença-paternidade para trabalhadores celetistas é de cinco dias; para servidores públicos federais e funcionários das empresas que aderiram ao Empresa Cidadã, 20 dias; há ainda alguns casos específicos, como o dos funcionários públicos estaduais do Rio Grande do Sul, que têm direito a 30 dias de licença. Uma das possibilidades sugeridas pela pesquisadora para reverter essa diferença é aumentar o tempo de licença-paternidade ou flexibilizar o período entre o casal, como ocorre em outros países. Na Finlândia, por exemplo, o governo anunciou em fevereiro a ampliação da licença-paternidade para 164 dias, o mesmo período concedido às mães. Cada genitor ainda tem a opção de transferir 69 dias do seu período de licença para o outro.

Outra sugestão apontada pela psicóloga é a criação, no Brasil, de intervenções para que os casais aprendam a coparentar, isto é, a trabalhar juntos e com apoio mútuo no desenvolvimento da criança. Durante o seu período de doutorado-sanduíche na Universidade Estadual de Ohio (EUA), a pesquisadora observou que nos Estados Unidos já há grupos de apoio com esse objetivo. Essas intervenções funcionam normalmente em grupos, em centros comunitários e trabalham, além das questões práticas relativas ao cuidado do bebê, aspectos relacionais. Casais que estão esperando o primeiro filho são confrontados com situações e relatos de outras pessoas que já têm crianças e, assim, podem pensar e debater sobre essas questões. “Se, durante a gestação, começarmos a proporcionar esses espaços de conversação, de tomada de decisão conjunta e de apoio, vamos, de alguma forma, treinar essas pessoas para algo que elas vão precisar fazer ao longo de toda a vida enquanto pai e mãe”, esclarece.

Essa coparentalidade positiva impacta no desenvolvimento infantil: quando uma criança percebe que os pais têm pontos de vista diferentes, mas conseguem conversar e chegar a acordos, a tendência é que ela seja uma pessoa capaz de escutar o outro, fazer acordos e ter mais empatia. “A família é uma espécie de laboratório social para a criança: é o local em que ela vai aprender a lidar com a diferença e a saber esperar. Isso dá um senso de segurança e de estabilidade emocional que é muito importante para o desenvolvimento infantil”, explica Beatriz.

O trabalho foi premiado como a melhor tese do país na área de Humanidades no Grande Prêmio Capes de Tese, em dezembro do ano passado. É a segunda vez que uma tese defendida na UFRGS recebe essa distinção, e a primeira na área da Psicologia. Pelo prêmio, Beatriz, que atualmente é professora da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), recebeu uma bolsa de estágio pós-doutoral em uma instituição internacional. A ideia é retornar ainda este ano para a Universidade Estadual de Ohio (EUA) e estudar sobre outros centros que oferecem intervenção em coparentalidade. A psicóloga também pretende continuar pesquisando junto com sua orientadora do doutorado-sanduíche, Sarah Schoppe-Sullivan, sobre o parental gatekeeping, isto é, como um dos pais faz a mediação da relação do outro genitor com a criança. [1]

[1] Texto de Mírian Barradas.

Como citar esta notícia científica: UFRGS. Parentar em conjunto. Texto de Mírian Barradas. Saense. https://saense.com.br/2020/03/parentar-em-conjunto/. Publicado em 06 de março (2019).

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