Fiocruz
15/04/2020

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Simone Kropf*

O laboratório sempre nos pareceu um lugar isolado, distante de nosso cotidiano, habitado por seres e aparatos que não entendemos muito bem. Mas o laboratório está em todo lugar. Em tempos de pandemia, o ritmo vertiginoso dos números, gráficos, curvas, boletins, declarações e artigos que saem dos laboratórios e inundam nossos celulares, rádios e televisões é proporcional à angústia com que tentamos extrair deles algum sentido. Nossas vidas estão em suspenso, acompanhando cientistas, médicos e especialistas das mais variadas áreas que lutam contra um ser invisível que fechou fronteiras e colocou o mundo em quarentena.

O que a história e as ciências sociais têm a nos dizer sobre os atores, as práticas e os lugares que produzem a ciência? Durante muito tempo, este foi um domínio povoado sobretudo por epistemólogos ou pelos próprios cientistas. Em suas reflexões sobre os métodos, experimentos, teorias e práticas de observação que, em sua concepção, explicariam a produção da verdade, eles relegavam as ciências humanas e sociais ao terreno secundário das “curiosidades” sobre o entorno ou os contextos “externos” às ciências.

Esta divisão já foi há muito contestada. Ao assumirem o estudo das ciências, historiadores e cientistas sociais mostraram que a ideia segundo a qual  a ciência é um empreendimento social e dotado de historicidade estende-se muito além de um suposto “muro” a demarcar o que é “interno” ou “externo” a tal atividade. Estudando-a como atividade a um só tempo cognitiva e social, historiadores e cientistas sociais filiados a variadas tendências teóricas compartilham a ideia de que a ciência – inclusive no que diz respeito a seus enunciados e teorias – é produto de atores, práticas e lugares concretos e de acordos compartilhados por diversos “coletivos de pensamento”, para usar o célebre conceito de Ludwik Fleck, agrupamentos estes que são social e historicamente situados.

Em tempos de negacionismos, é sempre necessária a ressalva: não, isso não significa afirmar que a realidade não existe ou que ela é mera invenção. Significa, ao contrário, a busca por compreender os interesses, crenças, valores, negociações e disputas pelas quais as ciências são reconhecidas, em distintos momentos, como fonte de conhecimentos certificados, consensualmente aceitos.

Num momento em que a pandemia de Covid-19 confere ao laboratório força e alcance tão intensos e dramáticos, a história e as ciências sociais têm bem mais a contribuir do que historiar ou narrar “feitos” passados que emergiram dos laboratórios em situações semelhantes. Trata-se de pensar as condições sociais e históricas para a própria constituição e reconhecimento deste espaço concreto e ao mesmo tempo tão simbólico do fazer científico.

Dentre os muitos autores do campo dos estudos sociais da ciência (ou science studies) que se debruçaram sobre esse tema, o clássico livro de Bruno Latour e Steve Woolgar (Vida de laboratório, publicado em 1979) certamente foi um marco importante e muito já foi escrito e discutido a respeito das etnografias de laboratório. No entanto, para pensarmos as questões que o laboratório nos coloca, o atual cenário (em que estamos literalmente isolados em virtude de um microorganismo) nos convida, particularmente, a revisitar o também muito conhecido capítulo ao qual Latour deu o provocativo título de “dá-me um laboratório e eu moverei o mundo”, parodiando a frase atribuída a Arquimedes (“dá-me uma alavanca e um ponto de apoio e eu moverei o mundo”). Nos anos de 1980, o texto foi publicado em importante coletânea que apresentava os muitos caminhos desta seara fascinante de se estudar “a ciência tal qual ela é feita”.

O personagem ao qual Latour atribui  a proeza de mover o mundo a partir do laboratório é Louis Pasteur, conhecido como o pai da microbiologia e do laboratório experimental moderno. Em 1881, ele realizou um famoso experimento público, em Poulliy Le Fort, região rural da França, para convencer os fazendeiros de que a doença que vinha matando seus rebanhos, o antraz, era causada por um bacilo que ele estudava em seu laboratório  e contra o qual havia desenvolvido uma vacina.

Latour examina Pasteur como personagem histórico, mas o trata sobretudo como moldura para seu argumento central de que não há, como muitos estudiosos (inclusive cientistas sociais) supunham, fronteiras entre o “dentro” e o “fora” do laboratório, entre o “contexto estritamente científico” e a “sociedade”. Segundo o antropólogo que viria a ser amplamente reconhecido como autor da teoria do ator-rede, foram justamente estas demarcações que o laboratório veio solapar, ao se tornar um “ponto de passagem obrigatório” para a extensa rede que Pasteur, assim como outros cientistas, criou em torno de seus enunciados.

Mais do que um exímio experimentador (como reza a visão idealizada dos cientistas), Pasteur foi, na visão de Latour, um exímio estrategista. Ele teve grande habilidade em “traduzir os interesses” de vários grupos que nunca haviam ouvido falar de pipetas, microscópios e placas de Petri, e assim arregimentá-los como “aliados” em torno da microbiologia. Para isso, tratava-se não apenas de produzir no laboratório “evidências” sobre como o bacilo causava a doença, mas de levar ao público o próprio laboratório, convencendo os grupos que lá estavam de que tais evidências eram dignas de credibilidade quanto à  sua eficácia. Pasteur literalmente levou o laboratório ao mundo, instalando-o em uma fazenda e mostrando aos proprietários que seus interesses enquanto criadores de gado poderiam convergir com os interesses dos que eram capazes de “domesticar” os  micróbios que os aniquilavam.  Negociar e conquistar a adesão desses e outros grupos sociais foi o pré-requisito para que as teses da microbiologia, que na época disputavam legitimidade com outros modos de entendimento e ação face às doenças transmissíveis, se transformassem em “fatos científicos”.

Ao deslocar o laboratório ao mundo e deslocar o mundo ao laboratório, Pasteur não apenas agiu a partir de sua posição na sociedade francesa. Ele criou uma nova correlação de forças e de poder que modificaria para sempre a França. O laboratório criou uma nova sociedade.

A habilidade de produzir uma extensa e heterogênea “rede” em torno do laboratório, que permitia levar à “sociedade inteira” os produtos deste laboratório e com eles controlar um ator (o micróbio) até então extremamente poderoso, foi o que levou ao sucesso da microbiologia. É nesse sentido que a ciência de Pasteur (e a ciência de modo geral) se faz uma “alavanca”, um “ponto de apoio” poderoso que modifica relações de força, inverte escalas e institui mundos. O consenso que confere solidez e estabilidade aos “fatos científicos” – e que serve de base para a própria credibilidade da ciência – depende destas redes. Mas Latour nos faz um alerta. Além de construí-las, é preciso mantê-las coesas, garantir que os “aliados” permaneçam conectados e aderidos, para que os nós não se desfaçam e os fios não se soltem.  

As ideias de Latour – que hoje discute com o mesmo vigor de sempre os desafios postos pela emergência climática – são bastante conhecidas entre historiadores e cientistas sociais que estudam as ciências. Mas relembrar suas proposições sobre o laboratório de Pasteur pode nos ajudar a pensar os movimentos de nossos próprios laboratórios neste momento tão particular, em que, mais do que nunca, “fazer ciência significa fazer política por outros meios”.

Assim como no caso de Pasteur, nossos laboratórios – hoje conectados na arena transnacional da ciência global – estão no mundo. No caso da crise sanitária causada pelo novo coronavírus, eles também estão se transportando literalmente ao campo, em muitas trincheiras (as metáforas da guerra permanecem inevitáveis, ainda que já saibamos que na realidade se trata de um “inimigo” com o qual, como tantas outras espécies humanas e não-humanas, teremos que inevitavelmente conviver). Os enunciados produzidos nestes laboratórios, assim como seus produtos (técnicas, aparatos, instrumentos, gráficos, estimativas), disseminam-se em todos os espaços – hospitais, meios de comunicação, gabinetes governamentais, aeroportos, casas, escolas. Eles se propagam a todos os lugares buscando, de modo estranhamente irônico, convencer as pessoas a não irem a lugar algum.

E é nesses múltiplos espaços que unem o “dentro” e o “fora” dos laboratórios que os cientistas vêm buscando arregimentar aliados para reverter a força descomunal desse ator não-humano que, movimentando-se em nossas vias (nos níveis micro e macro), desfaz nossas redes e cada vez mais se torna, ele próprio, uma alavanca a estabelecer um novo mundo.  

A pergunta fundamental que os estudiosos da “ciência em ação” devem fazer é: quais os aliados estamos conquistando? Com quem podemos contar? Como evitar que nossas redes se enfraqueçam ou mesmo se dispersem face a grupos que parecem estar se alinhando ao vírus, ou pelo menos tentando recrutá-lo como aliado a seus próprios interesses? Como ampliar as conexões e canais para fazer circular os enunciados da ciência se há uma outra rede – a internet – tão oscilante (em vários sentidos) que pode tanto associar-se à rede dos cientistas, quanto a ela se contrapor, disputando-lhe os próprios estatutos de autoridade e credibilidade? Como construir consensos mínimos face aos negacionistas que usam justamente as incertezas típicas de qualquer conhecimento para, como afirmam os historiadores Naomi Oreskes e Erik Conway, “semear a dúvida” e minar os caminhos para estes consensos? (no exato momento em que escrevia estas linhas chegou-me uma notícia, publicada no jornal A Folha de São Paulo (31-03), com a declaração do presidente do Banco do Brasil de que “a ciência médica é tão imprecisa quanto a ciência econômica”).  

Como muitos autores vêm apontando, apesar de vivermos processos e crises globais como esta, elas se expressam concretamente em espaços e sob correlações de forças locais. É nestas dinâmicas particulares que cabe a nós, historiadores e cientistas sociais, buscar respostas às perguntas acima.  

No caso brasileiro, o desafio é particularmente perturbador, já que o mais alto representante do Estado se contrapõe sistemática e frontalmente às orientações dos cientistas, vocalizadas inclusive por outros membros de seu governo. Há os que dizem que se trata uma voz cada vez mais isolada, uma força progressivamente atenuada – para usar uma metáfora pertinente ao mundo dos micróbios. No entanto, no tabuleiro dinâmico em que se agregam e desagregam arranjos da sociedade e da política, este é um ator que também tem estratégias para buscar “aliados”. E é articulando a narrativa sobre uma outra crise (a econômica) que ele busca enredar, à sua teia, os grupos sociais mais vulneráveis e fragilizados face ao horror da perda do emprego.

Se, como afirma Oreskes, o discurso negacionista e anticientífico está longe de ser uma coleção de devaneios, mas, ao contrário, se apresenta (já há muitas décadas) como projetos articulados a partir de interesses muito concretos, cabe a nós explicitarmos as lógicas e os atores que os sustentam. A defesa da ciência (uma defesa que não deve abdicar da crítica, mas justamente intensificar os esforços por ampliar a compreensão de seus mecanismos) depende desta arena política em que nós, estudiosos da ciência, somos atores importantes.

Seguir os cientistas e seus aliados – como fez Latour ao acompanhar Pasteur em seus encontros com fazendeiros para interessá-los na vacina contra o antraz – implica descortinarmos as dinâmicas particulares pelas quais ciência e sociedade se constroem mutuamente.  E aqui, uma ressalva. Mesmo reconhecendo que Pasteur foi o mote histórico para Latour armar sua perspectiva analítica, é importante deixar claro que a ciência não se resume (e não deve se resumir) à figura do cientista homem branco europeu. Nesse sentido, devemos revisitar igualmente as teóricas feministas que, desde a década de 1970, vêm reivindicando o reconhecimento das assimetrias e das relações de poder que atravessam a ciência, de modo a desenhar um novo caminho político e epistemológico no qual sua força seja proporcional justamente a sua capacidade de ser mais diversa e inclusiva – em termos de gênero, etnia, cor e vários outros marcadores sociais. Como produtores de conhecimentos e práticas situadas num país da América Latina, que enfrenta persistentes estruturas de pobreza e de desigualdade, temos desafios particulares quanto aos contornos sociais, culturais, políticos e econômicos que nos cabe analisar neste e em outros problemas de saúde pública.

Assim como os laboratórios da microbiologia mudaram o mundo ao final do século 19, o mundo neste início do século 21 não será o mesmo depois da pandemia de Covid-19. Os rumos desta transformação dependerão das alianças e questionamentos que estabelecermos hoje. Que nós, historiadores e cientistas sociais, que já temos nos mobilizado sistematicamente em defesa de nosso próprio campo enquanto intelectuais, sejamos um elo importante nesta rede, levando os nossos próprios laboratórios e enunciados ao público amplo e aos diversos atores interessados em conter essa pandemia. Que dessa forma possamos ser alavancas e pontos de apoio para mover o mundo e reconstruir suas bases sob novos alicerces.

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Agradeço a meus alunos do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Fiocruz, cujos rostos tenho encontrado como janelas a descortinar novas conexões. Com eles discuti o referido texto de Bruno Latour como “porta de entrada” para sua travessia pela historiografia das ciências e como convite para que se tornem aliados nesta rede pela qual devemos pensar o mundo que nos cabe reinventar.  

*Simone Kropf é pesquisadora do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde (Depes) da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz)

[1] Imagem de fernando zhiminaicela por Pixabay.

Como citar este artigo: Fiocruz. O laboratório e a urgência de mover o mundo.  Texto de Simone Kropf. Saense. https://saense.com.br/2020/04/o-laboratorio-e-a-urgencia-de-mover-o-mundo/. Publicado em 15 de abril (2020).

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