Marcus Eugênio Oliveira Lima
21/06/2020

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Uma pesquisa do Datafolha, feita entre 1º e 3 de abril de 2020, junto a uma amostra de 1511 brasileiros, demonstrou que dentre os eleitores que votaram no presidente Jair Bolsonaro nas eleições de 2018, apenas 17% estão arrependidos; os demais 83% disseram não se arrepender do voto [1]. O dado acima contrasta com outro, encontrado num estudo da XP, também realizado em abril deste ano, o qual apontou que apenas 28% da população aprovava o desempenho do presidente da República, considerando-o “bom” ou “ótimo”; 42% consideravam “ruim” ou “péssimo” [2].

A situação soa estranha, se 55% dos eleitores votou no presidente, totalizando mais de 57,7 milhões de votos, se ele é aprovado somente por 28% (aproximadamente 26,6 milhões), então seria lógico esperar mais “arrependimento” entre os que nele votaram. A questão pode ser traduzida matematicamente assim: Por que apenas 17% (9,1 milhões) se arrependeram do voto, quando há em torno de 31 milhões de eleitores do presidente que avaliam como negativo seu desempenho?

Saber o que acontece em termos afetivos e cognitivos com 22 milhões de pessoas que fizeram algo no passado que agora avaliam como negativo e que mesmo assim não se arrependem de tê-lo feito é, sem dúvida, uma tarefa importante para a sociedade. A psicologia social pode nos ajudar nessa empreitada. Vamos tentar organizar as possibilidades interpretativas do fenômeno considerando teorias sobre mudança de atitudes e de crenças e sobre conformismo.

Em uma série de experimentos clássicos e polêmicos, feitos na década de 1970, Stanley Milgram, um psicólogo social norte-americano, convidou cidadãos comuns a participarem de uma atividade sobre os efeitos da punição na aprendizagem. A tarefa consistia em ministrar choques elétricos para cada erro de resposta do aprendiz. Tudo se passava num laboratório da Universidade de Yale, numa sala ficava o “aprendiz” sentado num simulacro de cadeira elétrica, e na outra, separado por um vidro, o “professor” e sua máquina de dar choques, que tinha um teclado de 30 botões, começando em 15 volts chegando a 450 volts. O “aprendiz” era um bom ator, contratado por Milgram, está claro, sem o conhecimento do “professor”, que era o “sujeito ingênuo” do estudo. Nos choques superiores a 75 volts o “aprendiz” começava a gritar de dor, a partir de 150v ele pedia para sair do experimento, aos 270v eram gritos de agonia, a partir dos 300v ele não respondia mais às perguntas do “professor” e o silêncio era considerado resposta errada e “premiado” com mais choque. Participaram do estudo aproximadamente 500 cidadãos comuns, 63% deles foram até o último botão: 450 volts! [3] Três anos depois do experimento, em 1977, Milgram enviou questionários aos participantes do estudo perguntando se havia algum arrependimento em terem feito o que fizeram. Apenas 1% manifestou arrependimento.

Também aqui deveríamos esperar mais arrependimento, não acha? A psicologia social diria “depende”.

Na psicologia clínica o arrependimento é foco em muitas terapias. Em termos emocionais o arrependimento causa sofrimento. Pacientes relatam com raiva, tristeza, autocrítica e desapontamento as escolhas erradas que fizeram. Em termos cognitivos é preciso considerar que nas escolhas que fazemos geralmente trabalhamos com as informações, opções e intenções que estavam à disposição no contexto específico da escolha. Depois de um tempo, dos acontecimentos se desenrolarem, podemos imaginar que eles talvez não sejam por completo uma consequência da nossa escolha, pois não conseguimos ver com concretude que uma outra e mais positiva realidade teria surgido se tivéssemos feito a outra escolha. Para a psicóloga Nancy Colier, resolveríamos a dissonância cognitiva (guarde esse termo) pensando algo meio circular do tipo: “A única escolha que poderíamos ter feito naquele momento foi a que fizemos, justamente por isso foi que a fizemos.” [4]

Basta ver o modo como o termo “arrependimento” é definido para entender que ele não é um sentimento fácil de ser expresso e admitido: “O arrependimento pode ser entendido como um estado cognitivo ou emocional negativo que envolve culpar a nós mesmos por um resultado ruim, sentir uma sensação de perda ou tristeza pelo que poderia ter sido, ou desejar poder desfazer uma escolha anterior que fizemos” [5]. De acordo com Melanie Greenberg, o arrependimento, quando se transforma em “ruminação infrutífera” e culpa pessoal pode ter efeitos prejudiciais à mente e ao corpo, podendo levar à depressão5 [5].

Nessa nossa incursão pela psicologia social do arrependimento vale a pena voltarmos à “dissonância cognitiva”. Não teremos tempo aqui para contar o fascinante estudo de Leon Festinger feito em 1957, pois o que nos interessa agora é entender o impacto de situações dissonantes nos sentimentos e comportamentos [6]. Em linhas gerais, a Teoria da Dissonância Cognitiva (TDC) propõe que uma vez tomada uma decisão procuramos justificá-la “modulando” nossas crenças e sentimentos para nos mantermos confortáveis e consonantes. Algo do tipo: você compra um carro e uma semana depois descobre que poderia ter comprado pelo mesmo preço algo bem melhor. O que fazer? A teoria propõe que você possa racionalizar, de vários modos, inclusive plagiando a raposa de Esopo na fábula das uvas, você poderia dizer “Ah aquelas uvas não eram nem tão doces”.

Sabemos que esse “mecanismo psicológico” tem uma série de inconvenientes, levando as pessoas e as sociedades a muitas vezes não questionarem suas decisões erradas e, até pior, tentar legitima-las. Por isso vamos tentar destacar alguns elementos que segundo a TDC podem aumentar a probabilidade de produzir arrependimento das más decisões, e por conseguinte, mudança individual e social.

A TDC destaca quatro situações que podem produzir a dissonância necessária para a desejada mudança atitudinal [7]:

  • É importante que fiquem evidentes as consequências concretas que nossas ações tiveram. Estudos mostram que pessoas que são convidadas a escreverem um texto defendendo a cobrança de taxas nas universidades só se arrependem de tê-lo feito se perceberem que sua ação implicou efetivamente na cobrança de taxas.
  • Para que alguém se sinta mal por algo negativo que fez e assim se arrependa é preciso que se sinta responsável pela sua ação. Ou seja, a pessoa precisa acreditar que fez aquilo por razões “internas” a ela, de livre escolha, que não foi forçada pelas circunstâncias a escolher uma determinada ação por, por exemplo, falta de outras opções.
  • É preciso sentir um mal-estar físico ou psicológico com as consequências da escolha. A escolha feita tem que gerar uma dissonância que seja sentida intensamente. No caso do estudo de Milgram, se fossem os “professores” a receberem os choques, supondo que estes fossem reais, certamente haveria mais arrependimento da sua parte.
  • Finalmente, é preciso perceber que o mal-estar está diretamente vinculado às consequências da decisão tomada e que ele não é passageiro. Participantes de outros experimentos, que recebiam pequenos choques elétricos, se incomodavam menos com eles quando acreditavam na informação do pesquisador de que o desconforto era causado pela oscilação da luz. Ou seja, há mais dissonância e, portanto, mais arrependimento, quando não é possível descrever o “mal-estar” de forma circunstancial e passageira.

Mais recentemente, a psicologia social do arrependimento tem realizado uma série de pesquisas que nos ajudarão numa compreensão mais detalhada de porque é tão difícil se arrepender [8].  O primeiro passo é separar dois tipos de experiências de frustração de expectativas que podem acontecer depois que tomamos uma decisão ruim. A primeira dessas situações é aquela em que a opção escolhida se mostrou pior que a opção rejeitada. A segunda situação ocorre quando a opção escolhida se mostra pior que o que esperávamos que ela fosse – frustrando nossas expectativas.  O sentimento decorrente da primeira situação é o arrependimento, ao passo que o desapontamento é a consequência emocional da segunda situação.

Os autores citados [8] demonstram, em uma série de pesquisas, que arrependimento e desapontamento são sentimentos diferentes e têm consequências também diferentes. De uma forma geral, os estudos apontam que:

  • No plano das emoções – o arrependimento leva a pessoas sentirem que deveriam ter avaliado melhor as opções, enquanto o desapontamento faz as pessoas se sentirem impotentes;
  • No plano cognitivo – os “arrependidos” pensam mais no que fizeram que os “desapontados”;
  • No plano das disposições comportamentais – os “arrependidos” culpam mais a si mesmos e estão mais motivados a corrigir o “erro”, ao passo que os “desapontados” preferem não fazer nada e evitar a situação;
  • No plano dos comportamentos ou ações – os “desapontados” se afastam ou negam as consequências da má escolha mais que os “arrependidos”. No futuro os “desapontados” serão também mais susceptíveis aos riscos de novas tomadas de decisão, podendo assumir um padrão comportamental próximo da noção de “desamparo apreendido” [9], no qual se cria a sensação que qualquer escolha é a mesma coisa, fomentando a inércia ou as escolhas mais “seguras”.

Como podemos ver isso na vida real? Num estudo sobre satisfação do consumidor em que foram comparadas as consequências emocionais e comportamentais do arrependimento e do desapontamento, foi analisado o efeito de uma insatisfação causada de dois modos: (a) o consumidor poderia ter escolhido uma opção melhor de provedor de internet (condição de arrependimento) e (b) o provedor escolhido prestou um serviço pior do que se esperava (condição de desapontamento). A análise dos resultados mostrou que a condição de desapontamento gerou mais reclamação contra o serviço e maior procura de outros consumidores para conversar sobre a má qualidade do mesmo; enquanto a condição de arrependimento produziu comportamentos de troca de provedor.  Além disso, altos níveis de arrependimento levaram as pessoas a evitarem falar sobre a má escolha que fizeram, como se não quisessem dizer aos outros: “Olhem que escolha estúpida eu fiz!”

Talvez possamos transportar esses dados de estudos experimentais para nos ajudarem a entender melhor a “psicologia” dos “não arrependidos” no estudo do Datafolha que comentamos no início deste texto. Duas conclusões podem surgir dessa interpretação: 1) muitas vezes é melhor perguntar àqueles que fizeram escolhas ruins num cenário em que não viam “opções” se estão desapontados e perguntar àqueles que optaram mal se estão arrependidos e 2) podemos ter perto de 22 milhões de eleitores com muito pouca motivação para fazerem novas escolhas políticas, sobretudo as mais “arriscadas”.

Tentamos apresentar algumas das explicações que a psicologia social produziu sobre o porquê de ser tão difícil nos arrependemos dos nossos atos. Mostramos que é importante entender as diferenças entre arrependimento e desapontamento, pois elas criam “caminhos” emocionais e de ação diversos. Apresentamos algumas de muitas possíveis explicações que a psicologia social pode dar ao fenômeno de “por que é tão difícil se arrepender”. É importante, entretanto, referir que não estamos justificando ou criticando as possibilidades de arrependimento ou de não arrependimento, nossa intenção foi somente ajudar o leitor a entender que no campo das tomadas/justificações de decisão a lógica é muitas vezes mais “psicológica” que matemática. Alguns dos links que deixamos podem ampliar a compreensão do tema e das teorias psicossociais citadas.

[1] https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/09/datafolha-17percent-se-dizem-arrependidos-de-votar-em-bolsonaro-83percent-nao.ghtml.

[2] https://www.agazeta.com.br/brasil/governo-bolsonaro-tem-42-de-avaliacao-ruim-ou-pessima-0420.

[3] https://www.youtube.com/watch?v=fCVlI-_4GZQ.

[4] https://www.psychologytoday.com/us/blog/inviting-monkey-tea/201708/why-regret-is-waste-time.

[5] https://www.psychologytoday.com/us/blog/the-mindful-self-express/201205/the-psychology-regret.

[6] http://www.technopolitik.com.br/downloads/files/PSI-SOCIAL_ed2R.pdf.

[7] Ver J.-P. Leyens & V. Yzerbit (2004). Psicologia Social. Lisboa: Edições 70.

[8] https://www.researchgate.net/publication/202304375_On_Bad_Decisions_and_Disconfirmed_Expectancies_The_Psychology_of_Regret_and_Disappointment.

[9] http://www.scielo.br/pdf/ptp/v29n2/10.pdf.

[10] Imagem de Markéta Boušková por Pixabay.

Como citar este artigo: Marcus Eugênio Oliveira Lima. Por que é tão difícil nos arrependermos do que fizemos? Saense. https://saense.com.br/2020/06/por-que-e-tao-dificil-nos-arrependermos-do-que-fizemos/. Publicado em 21 de junho (2020).

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