Jornal da USP
10/07/2020
“Foi mais do que um projeto científico, foi um propósito de vida!” É desta maneira que a professora Claudia Inês da Silva, do Instituto de Biociências (IB) da USP, descreve os desafios que enfrentou ao colocar em prática um sonho antigo: a Rede de Catálogos Polínicos On-Line, também chamada de RCPol. O projeto, idealizado depois que a professora voltou do doutorado-sanduíche na Espanha, em 2007, protagonizou uma mudança na forma de se pesquisar e ter acesso a informações sobre o grão de pólen – espécie de “impressão digital” da planta que é estudada por diversas áreas da ciência.
Durante anos, os coordenadores trabalharam na estruturação da rede, reunindo pessoas e fazendo a comunidade científica entender a importância de se construir uma ferramenta que democratizasse os conhecimentos sobre a interação entre polinizadores e plantas. Hoje, a RCPol, criada oficialmente em 2013, tem no currículo a formação de 200 pesquisadores, seis livros lançados – e alguns capítulos em finalização-, além de quase 13 mil figuras, incluindo plantas, flores, pólen e espécies de abelhas. Mais de 1.200 pessoas participaram de sete workshops e 12 reuniões científicas, ministrados por 30 instrutores de diferentes instituições.
“Meu objetivo era fazer as pessoas se comunicarem mais, entenderem a ciência como um todo e o quanto a palinologia [veja explicação no quadro abaixo] é importante”, explica Cláudia para o Jornal da USP. “Ver que esse sonho tomou forma é uma satisfação não só para a professora, mas para a cidadã Claudia.”
A pesquisadora contou com a ajuda do professor Antonio Mauro Saraiva, do Departamento de Engenharia de Computação e Sistemas Digitais da Escola Politécnica (EP) da USP. Formado em Engenharia Eletrônica e Agronomia, Saraiva foi o responsável por unir computação e biodiversidade. “Fiz vários sistemas durante a minha carreira, mas a RCPol é o que eu mais tenho orgulho”, destaca Saraiva.
Chave de identificação de espécies
Segundo o engenheiro, a RCPol é muito mais do que um site. “Tem todo um sistema complexo por trás.” Ele criou na página uma ferramenta chamada “chaves interativas com múltiplas entradas para identificação de espécies”. Com ela, por meio de descrições morfológicas de flores e grãos de pólen, o usuário consegue facilmente identificar uma espécie de planta. “Quando você coloca uma característica, o sistema elimina todas as outras que não servem”, explica Saraiva. “O filtro vai se estreitando conforme mais informações são adicionadas, até chegar a um resultado final.”
Para atingir esse grau de excelência, foi necessário se reunir com pessoas de diferentes países, culturas e línguas, até se chegar a um padrão comum. A equipe desenhou uma planilha em Excel, com campos padronizados em inglês, espanhol e português. Esse ajuste é importante porque permite que os dados possam ser utilizados por pessoas de todo o mundo.
Quando alguma palinoteca (coleção de lâminas de referência de pólens e esporos de plantas) vai ser inserida no banco de dados, os responsáveis preenchem o documento e o submetem à equipe da rede. Depois, é feita uma nova checagem e, por último, o grupo curador faz uma análise final. Estando tudo certo, a nova coleção é adicionada ao sistema.
Inquietação
Em 2005, Claudia fez consultoria para o Ministério do Meio Ambiente, onde estudou as interações entre plantas cultivadas e os principais polinizadores no Brasil. Existem vários polinizadores na natureza. Dentre eles, destacam-se as abelhas, os morcegos, as borboletas, as mariposas, as moscas, além de pequenos roedores e pequenos répteis.
Para realizar o trabalho, Claudia utilizou o grão de pólen como um marcador natural. O intuito era entender as interações entre as abelhas que residiam no entorno dos cultivos e as plantas estudadas. “Fiz análise do pólen a fresco, mas essa técnica não me permitiu chegar a um nível mais específico da identidade da planta”, relata a pesquisadora.
Tempos depois, Claudia foi convidada pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) a dar continuidade à sua linha de pesquisa. “Prestei os exames, fui aprovada e fui para a Espanha fazer meu doutorado-sanduíche”, diz. Durante o período, trabalhou com palinotaxonomia, uma área da palinologia que estuda as características morfológicos dos grãos de pólen. Os objetos de estudo foram os maracujás amarelo e doce, plantas muito cultivadas e importantes na região do Triângulo Mineiro. “O resultado foi a produção de um catálogo polínico”, descreve.
Quando voltou ao Brasil, Claudia traduziu o livro em português e voltou a trabalhar com grãos de pólen, mas encontrou alguns entraves. “As palinotecas eram praticamente inacessíveis e os artigos eram publicados em revistas bem esparsas”, relata. “Fazia mais de 30 anos que não publicava um livro como o nosso”.
A ecóloga contou ao Jornal da USP que, com todo esse cenário, havia uma inquietação dentro dela. “Até um livro chegar na mão de alguém, leva bastante tempo, e não são todos que têm dinheiro para comprar um exemplar”. Claudia enfatiza também o quanto folhear um livro é trabalhoso e demanda tempo durante uma pesquisa.
Foi então que ela começou a pensar em algumas redes neurais da computação para expandir a acessibilidade a essas informações. Em 2014, Cláudia conheceu aquele que a ajudaria a entender a complexidade do sistema que ela estava imaginando. “Ele é um mago, né?”, diz ela, referindo-se ao Antonio Mauro Saraiva. “Tudo o que propunha, ele dizia ser possível.
Iniciando as atividades
A primeira tentativa de workshop da futura RCPol ocorreu no mesmo ano (2014) e contou com a participação de 16 pessoas, incluindo a então presidente da Associação Latino-americana de Paleobotânica e Palinologia, além de palinólogos e profissionais da área. “Só que no dia seguinte ao evento, houve uma reunião de especialistas mais conservadores que queriam impedir a criação da rede porque achavam que tomaríamos o lugar deles”, conta Cláudia.
Foi em uma palestra na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) que as portas começaram a se abrir. A professora foi apresentada a uma gerente da Bayer. A empresa criou, em 2011, um centro de estudos de abelhas, batizado de Bee Care Center, e, na época, estava à procura de projetos desenvolvidos por universidades para melhorar a saúde desses insetos. Claudia e Saraiva foram convidados a apresentar o projeto da RCPol à empresa e viajaram para a Alemanha em abril de 2015, junto com outros 14 pesquisadores. Cinco meses depois, receberam a notícia que o projeto havia sido aprovado na íntegra.
Com os recursos, os coordenadores compraram equipamentos de microscopia e estruturaram a equipe técnica da rede, formada por mestres, doutores e alunos de iniciação científica. Claudia explicou como seria a estrutura da RCPol aos colaboradores em outro workshop da rede, em 2016. Diferente do primeiro evento, houve 112 interessados, mas só 42 foram selecionados por falta de espaço. “Vieram profissionais da Alemanha, França, Colômbia, Argentina e do Brasil, inclusive alguns daqueles que foram contra a criação da rede”, afirma.
Saraiva desenhou as ferramentas computacionais em consonância à realidade dos países envolvidos. “Considero essa a etapa mais difícil”, explica o engenheiro. “Colocar pessoas de várias partes do mundo em uma sala foi um desafio e tanto.”
“Todos os descritores e glossários que estão no site da RCPol foram desenvolvidos pelos colaboradores”, orgulha-se Claudia. “Constatar que tudo que eu pensei um dia estava aplicado, foi bárbaro. 2016 foi um marco para nós.”
Foram quase cinco anos de estruturação, de treinamento e capacitação. Os resultados, até agora, são motivo de orgulho: nove trabalhos feitos, estudos concluídos sobre dieta de mais de cem abelhas nativas do Brasil, além de seis livros e 22 artigos publicados. A rede disponibilizou toda a sua base de dados, com livre acesso, organizou e revitalizou várias palinotecas no Brasil e no mundo. Atualmente, atende apicultores, melinopolicultores e produtores rurais. “Considero que o principal objetivo foi atingido”, comemora a pesquisadora.
Futuro
Um dos últimos trabalhos da RCPol foi feito no coração de São Paulo. Claudia e um aluno inauguraram, no Museu Catavento, o Jardim de Polinizadores. “Identificamos 26 espécies de abelhas que vivem por lá e quais plantas elas usam”, relata a ecóloga. O jardim, aberto ao público, fornece também informações de como se dá o processo de polinização.
A parceria com a Bayer se encerrou em maio deste ano. Mas Claudia e Saraiva estão à procura de novos parceiros. Um dos projetos a ser colocado em prática é escanear os grãos de pólen, já presentes na base de dados da RCPol, em formato 3D. Além disso, o site precisa de manutenção permanente. “Com o tempo, o sistema fica incompatível com os browsers e ele precisa, no mínimo, ser atualizado”, explica Saraiva. “Precisamos, também, permitir que mais coleções entrem para a rede e isso só será possível com esses aperfeiçoamentos.”
“Temos uma outra proposta, que é trabalhar com avaliação do entorno de áreas de apiários e meliponários para dar um suporte à produção de mel, pólen e própolis e também acompanhar o estado de saúde das abelhas”, conclui Claudia.
Mais informações: e-mail claudiainess@usp.br, com Claudia Inês da Silva.
Glossário
Estudo da estrutura, classificação e dispersão dos grãos de pólen e esporos, incluindo exemplares fósseis.
Fonte: site RCPolPalinotaxonomiaGeopalinologia e a PaleopalinologiaMelissopalinologiaPalinoecologiaEsporos de pteridófitos
Grão de Pólen
O grão de pólen é uma estrutura reprodutiva da planta e tem a função de produzir e transportar os gametas masculinos das anteras para o estigma das flores angiospermas. É dentro do pólen que são produzidos os gametas masculinos e essa estrutura tem a função de proteger esses gametas para que eles cheguem até a outra flor e iniciem o processo reprodutivo da planta.
Cerca de 75% das plantas cultivadas dependem da polinização, ou seja, da transferência do grão de pólen de uma flor a outra. “O pólen é para a espécie da planta o que a impressão digital é para os humanos: cada indivíduo tem o seu”, explica a ecóloga Claudia Inês da Silva.
Com essas características morfológicas, essa estrutura microscópica pode nos contar muitas histórias. Os paleopalinologistas, por exemplo, conseguem reconstruir a vegetação de eras passadas. A palinologia forense é muito procurada para contribuir com investigações criminais, procurando pistas sobre produtos alterados, rotas de crimes e assassinatos.
Uma curiosidade: María José Luciáñez, bióloga e professora da Universidade Autônoma de Madrid, analisou os grãos de pólen do Santo Sudário e encontrou 49 espécies diferentes. Além disso, revelou que o lenço viajou da Ásia Menor à Europa, e que alguns desses grãos correspondem a espécies de plantas desaparecidas há centenas de anos na Palestina. [1]
[1] Texto de Fabiana Mariz.
Como citar esta notícia: Jornal da USP. Rede de Catálogos Polínicos On-Line: o caminho para democratizar dados sobre os grãos de pólen. Texto de Fabiana Mariz. Saense. https://saense.com.br/2020/07/rede-de-catalogos-polinicos-on-line-o-caminho-para-democratizar-dados-sobre-os-graos-de-polen/. Publicado em 10 de julho (2020).