Fiocruz
04/05/2021

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Um elo entre a conexão e a segregação. Duas palavras que poderiam iniciar a apresentação de Jaider Esbell, um dos maiores expoentes da contemporânea arte indígena brasileira. Nascido na região hoje demarcada como Terra Indígena Raposa Serra do Sol, mas que quando ele nasceu, em 1979, era apenas parte do município de Normandia, em Roraima, o artista, no entanto, extrapola as definições escritas em seu próprio portfolio e ultrapassa qualquer imagem estereotipada de artista ou de indígena — ou de “artista indígena”. Autodidata, multifacetado e comprometido com a luta de resistência indígena, suas atividades o colocam hoje como poeta, escritor, arte-educador e curador, como registra o texto que apresenta Ruku, sua mais recente exposição, em cartaz até o dia 30 de abril na badalada galeria Millan, em São Paulo.

Foi durante a montagem da exposição que Jaider conversou, pelo telefone, com a Radis. Na entrevista, que partiu da reflexão sobre uma suposta invisibilidade da Região Norte no restante do país (e que integra uma reportagem sobre o tema na edição de maio), o artista criticou o “apagamento” do Norte do Brasil e creditou sua existência à desconexão de realidades distintas, reforçada por interesses financeiros e políticos e por modelos tradicionais de educação e de comunicação. Neste contexto, o “artivista” de talento reconhecido e experiente na reflexão sobre arte em escolas — consolidada em seu segundo livro, Terreiro de Makunaima: Mitos, Lendas e Estórias em Vivências, publicado em 2012 — sugeriu que a arte pode ajudar a reverter este quadro de desequilíbrio. “A arte pode reforçar denúncias e alcançar outras sensibilidades”, apontou.

Para ele, a arte é uma aliada da saúde, já que é capaz de fazer despertar, nas pessoas, a consciência de que estão doentes, de que padecem do que ele classifica como grave doença da memória. “Quando a pessoa aceita que nasceu para sofrer, ela adoece”, justificou. Estas e outras questões estão presentes em Ruku, onde Jaider combinou pintura, escrita, desenho, instalação e performance para entrelaçar discussões interseccionais entre cosmologias, narrativas míticas originárias, espiritualidade, críticas à cultura hegemônica e preocupações socioambientais. Em cena, as visões do artista em torno da árvore-pajé Jenipapo (ou Ruku), um “frutotecnologia e uma de minhas avós”, como ele mesmo descreveu no programa da exposição. “Hoje em crise, humanos que nos achamos, ainda temos, talvez, as últimas chances de nos conectarmos ao todo”, adverte o artista. Sem desconexões ou segregações, recomenda.

Como cidadão de Roraima, você concorda que há uma certa invisibilidade da Região Norte no restante do país?

Tenho andado pelo Brasil nos últimos anos e sentido que há um apagamento, um total desconhecimento, as pessoas não fazem ideia do que é o Norte, não sabem nem que existe, pelo menos aqui no Centro-Sul, Rio, São Paulo. É muito fora da realidade para esta turma daqui. Também tenho observado há algum tempo que o Norte só é noticiado por aqui quando há tragédia ou quando há festa. A região é vista como um lugar remoto, que não dialoga com as realidades aqui do Centro-Sul. Eu falo da perspectiva de um artista que tento na prática, com meu trabalho e com o meu deslocamento, fazer um contraponto a esta invisibilidade. Mas também há desconhecimento do Norte para cá, que ainda é um outro mundo impossível. Falta interatividade entre as realidades. Lá temos situações muito específicas, como a dificuldade de acesso às tecnologias e, também, o preço dos produtos, reflexo que nós sofremos diretamente em nossa economia. Como a gente não tem indústrias, tudo lá é muito mais caro, tudo é muito mais complexo, mais difícil.

Como você diria que é a imagem que as pessoas fazem de Roraima fora de lá?

Eu não estou exagerando quando digo que as pessoas não fazem ideia do que é Roraima. Elas procuram no imaginário, mas não acham. Acham que Roraima é Rondônia. Há uma grande confusão de referências. Mas é tudo muito complicado e distante. Eu fico pensando como as pessoas vivem sem conhecer minimamente o território onde estão. Desconhecem o mapa do Brasil, especialmente.

Isso se reflete na maneira como as pessoas veem o seu trabalho?

Com certeza ele sofre reflexo deste desconhecimento. Primeiro porque quando me apresento por esta parte do Brasil, as pessoas não associam a minha existência à Amazônia brasileira. Elas sempre me jogam para o Peru ou para Colômbia. Elas não concebem que as populações nativas brasileiras permanecem vivas e estão se deslocando para caminhar pelo mundo e fazer parte das coisas. Essa porção aqui do território brasileiro não está preparada pra isso. Elas acham que os nativos já se acabaram há muito tempo e que só há indígenas na Colômbia, na Bolívia ou no Peru. Então boa parte do meu trabalho tenta situar as pessoas, fazer com que elas entendam que boa parte dos recursos que elas usufruem aqui vêm da Amazônia — que a Amazônia há muito tempo vem fornecendo insumos para a indústria, como o ferro, ou mesmo de energia elétrica, que vem das hidrelétricas de lá. As pessoas não têm noção desta conexão econômica, ela não é colocada no seu cotidiano. Elas não estão conectadas com isso. Então há uma desconexão de realidades. A ideia de como o Norte e o Sul estão interligados não chega ao brasileiro comum.

O que há por trás deste desconhecimento?

Quanto mais o brasileiro desconhece esta realidade, maior é o controle que se tem sobre as pessoas, que ficam sem argumentos, não participam das decisões. No atual governo, por exemplo, o presidente deu uma certa atenção à Roraima porque quer financiar o garimpo ilegal — que é outro caso que essa turma não associa de onde vem esta riqueza. Vários estudos mostram que o caminho do minério ilegal, do diamante e do ouro ilegal que saem de Roraima, passa pela Avenida Paulista ou por estas lojas. Isso a gente não fica sabendo, a menos que tenha tino de ativista, de investigação própria, para poder entender a dinâmica. As pessoas acham que os garimpeiros que estão lá, em Roraima, no Amazonas, em Macapá ou em Rondônia, são apenas trabalhadores atrás do seu sustento, mas não enxergam que, como eles não conseguem encontrar o que estão procurando, acabam sendo escravos de um sistema. Eles vão lá, metem a mão na massa, contaminam tudo de mercúrio e logo em seguida o que encontram é tirado das mãos deles e desaparece. Não entra na economia do país ou das cidades e fica nessa coisa clandestina.

Você acredita que os povos indígenas são os mais afetados por esta realidade?

Não tenho dúvidas. As primeiras pessoas afetadas são as que estão morando lá, as pessoas que são expulsas de seus territórios. E não é uma expulsão sem violência. Os próprios garimpeiros também fazem este papel de exclusão. Eles acabam se tornando a figura do Estado. O Estado brasileiro se simplifica na figura desse homem simples e pobre que é o garimpeiro, que chega lá com a espingarda e mata dois, três indígenas e os demais correm pra dentro do mato ou fogem para outros lugares. Muitas vezes o próprio índio, o negro, ou o nordestino que desempenha esse papel, continua sendo o capitão do mato, esta figura que aparentemente teria deixado de existir no Brasil após o fim da escravidão.

Qual é o papel da arte na mudança desta realidade?

A arte pode reforçar denúncias e alcançar outras sensibilidades, provocar outros tipos de sentimento nas pessoas. É função da arte fazer este trabalho, entrar nos espaços onde a escola não deu conta de entrar, e nem vai dar, porque não é o papel dela. A escola é pensada dentro de um sistema que continua manipulando informações e fazendo a edição do que entra e do que não entra nos livros didáticos. Então a arte independente, minimamente livre, tem esse papel, de fazer o que a escola não fez e nem a televisão deu conta. As mídias em geral também são sistemas manipulados por interesses maiores das corporações, então também não fazem esse trabalho, seus profissionais têm uma atuação muito limitada. Embora nem todos os artistas tenham consciência do “artivismo” — essa palavra que eu também tenho experimentado e que fala de uma arte realmente aplicada e comprometida — a arte e o artista representam essa consciência.

De que modo isso acontece?

Os artistas estão aprendendo a se apropriar e a utilizar as ferramentas da, entre aspas, modernidade, como o celular, e usar as redes sociais, essa fatia que ainda funciona da ideia de democracia. Hoje nós ainda podemos usar nossos celulares para fazer denúncias, criar redes, fazer intercâmbios com outros países. Temos uma rede de interlocutores que minimamente funciona e que envolve artivistas e pessoas comuns, com o papel de dar potência e se somar à luta invisível dos caciques, das lideranças que vêm lutando desde que os navios chegaram à Bahia. A arte vem reforçar esta luta com outra linguagem, falando sobre as mesmas coisas que as lideranças falam, denunciam e cobram com a própria vida.

É possível usar esse potencial da arte na construção da saúde?

Com certeza! A arte é uma aliada. Especialmente porque a gente está cada vez mais entendendo que a arte cura, que proporciona um tipo especial de cura que tem a ver com a memória. As pessoas às vezes nem sabem quando estão doentes. A arte pode ajudá-las a despertar para esta clareza, para esta percepção. Muitas vezes o oprimido não sabe que é oprimido, já se acostumou a ser oprimido, acha que aquilo é normal. Ou então acredita que não há outra forma de viver, que não pode, não merece e não deve lutar ou sonhar em alcançar outra forma de viver que não seja a opressão. Isso é uma doença muito grave da memória, uma consequência muito grave do apagamento. Quando a pessoa aceita que nasceu para sofrer, ela adoece — e isso tem muito a ver com a ideia passada pelas igrejas sobre saúde mental. E tem adoecido muitos parentes. Então há todo um esforço feito com os povos nativos para trabalhar seu emocional, conhecer as medicinas sagradas, trabalhar com as pessoas dentro de um contexto político e de um contexto prático. Sabemos que corremos muitos riscos de nos iludirmos quando colocamos estas questões no grande palco, porque envolvem dinheiro, vaidade. Os próprios mestres que lidam com estas medicinas podem se confundir, se perder nas dinâmicas do mundo branco, do mundo do dinheiro e das cidades, ou se encantar com a reprodução de uma outra ideia de qualidade de vida. [2]

[1] Foto: UFRR.

[2] Texto de Adriano de Lavor.

Como citar esta notícia: Fiocruz. “Quando a pessoa aceita que nasceu para sofrer, adoece”.  Texto de Adriano de Lavor. Saense. https://saense.com.br/2021/05/quando-a-pessoa-aceita-que-nasceu-para-sofrer-adoece/. Publicado em 04 de maio (2021).

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