Fiocruz
25/01/2022
O debate sobre ciência e inovação é amplo, e a categoria inovação, polissêmica. Há muitas formas de se conceber a inovação científica e aqui abordo três pontos que precisam ser discutidos para qualquer encaminhamento a esse respeito. O primeiro é relativo ao presente e, nele, às condições sociais e políticas que apontam para possibilidades e limites de futuro; o segundo refere-se à relação entre ciência e sociedade; e o terceiro, a um projeto para o Brasil, o que, ao fim e ao cabo, engloba os pontos anteriores.
Ao falarmos em inovação, é importante enfatizar a ideia de processo. O sincrônico e o diacrônico precisam sempre ser relacionados, confrontados e repensados, um em relação ao outro. Afinal, como perceber e, sobretudo, qualificar a mudança sem uma perspectiva de processo? Inovação em relação a quê?
Acostumamo-nos a pensar a ciência pelo paradigma das revoluções científicas. Nesse sentido, no entanto, gostaria de chamar atenção para o fato de que a inovação leva em conta, necessariamente, os repertórios científicos existentes, e, assim, se realiza não (apenas) pela ruptura com eles, mas pelo aprendizado e aperfeiçoamento, quando então levamos de modo incremental à transformação desses repertórios. Como a inovação do repertório no jazz, se me permitem a metáfora algo heterodoxa.
Pensar, em 2021, o futuro da inovação e da ciência é fortalecer os repertórios da ciência e da democracia – entendendo-se democracia não apenas como regime político, mas como princípio interno de organização da própria ciência. Ou seja, fortalecer o compromisso da inovação com mudança, sem o que, a confiança nas instituições da ciência como produtoras de bens públicos pode se retrair e permanecer em risco.
1. O presente
As crises sanitária, econômica e política que vivemos hoje no Brasil nos trazem muitos e diferentes desafios. Prestes a comemorar duzentos anos da independência política e cem anos do Modernismo – que, como movimento cultural, buscou justamente enfrentar, a seu modo, o problema da persistente dependência cultural –, a sociedade brasileira se vê, mais uma vez, diante de um conflito agudo, na disputa pelo controle político da mudança social. Como esse confronto se trava também no âmbito da cultura, em sentido amplo, os conflitos entre narrativas – sobre democracia, liberdade de expressão, gênero, ciência, vacina etc. –, que atravessam, dividem e reorganizam a sociedade brasileira, parecem explicitar, como poucas vezes antes, paradoxalmente, a importância da ciência.
Não à toa fala-se tanto – com maior ou menor propriedade – em guerra cultural. O que temos percebido mais claramente, de qualquer forma, é que as mudanças na sociedade, na política e, mesmo, na economia, nunca se realizam desacompanhadas de processos culturais e performances narrativas que lhes dão significados. E estamos aprendendo, também, de modo duro, como a vida social é constituída de uma teia de processos e escolhas, de contradições e interdependências, em cujos ramais e caminhos há inclusive espaço para os imponderáveis.
A ciência se encontra em situação paradoxal neste momento: de um lado, é a grande força de transformação social; de outro, seus resultados são frequentemente ignorados, suas descobertas, negadas e suas normas, transgredidas. Se esse não é um processo exclusivamente brasileiro – e não é mesmo, como apontam indicadores internacionais –, assume sentidos urgentes nos dias que correm no Brasil. Sobretudo, se somarmos à visão sincrônica do presente, a diacrônica do processo histórico, para pensarmos uma sequência brasileira de construção/desconstrução das políticas públicas de CT&I, que, afinal, são partes cruciais da confiabilidade na ciência e suas instituições diante do conjunto da sociedade e do Estado.
Alcançar a confiança nas instituições da ciência e da educação superior como produtoras de bens públicos é, por sinal, nosso desafio mais importante, porque o mais premente no presente e decisivo para que possamos falar, de fato, em futuro para a ciência. Nunca foi tão urgente disputar a reputação das ciências. É preciso, de um lado, refazer com criatividade e responsabilidade a comunicação pública das ciências com a sociedade civil organizada, e, de outro, identificar, promover e expandir os pontos de interseção que nos reúnem a todas as ciências como ciência – ou seja, é o momento de assumirmos uma agenda comum.
São desafios científicos e políticos do nosso tempo. Sobre a comunicação da ciência, precisamos de um paradigma novo de comunicação pública. Não se trata mais de uns ensinarem e outros aprenderem, como tradicionalmente pensávamos a difusão do conhecimento, e sim de um experimento pedagógico de produção de conhecimento compartilhado, em que o sentido de igualdade e empatia avancem sobre o da hierarquia.
Sobre a importância da aproximação entre as diferentes áreas do conhecimento, trata-se de promover um fortalecimento mútuo, decorrente da interlocução com as agências estatais que regulam as atividades de ensino, pós-graduação e pesquisa científica no país. Ao tomarmos parte de uma ação coletiva, nos constituímos como sujeitos políticos, ao mesmo tempo, nos percebendo e produzindo reformulações sobre nós mesmos em meio às experiências que nos reúnem.
Essa política de reconhecimento pode e precisa envolver também ações para além de (necessárias e urgentes) reações às ameaças, digamos, externas, como o desfinanciamento de CT&I em curso. A pandemia de Covid-19 ou as mudanças climáticas, para dar dois exemplos cruciais, mostram sobejamente como a complexidade dos fenômenos em pauta, hoje, também já não permite sua inteira domesticação por um campo disciplinar específico. Antes, exige novas abordagens, multidisciplinares. Isso muda internamente a ciência.
2. Ciência e sociedade
A metáfora espacial, com referência a dentro e fora da ciência, é limitada, mas nos remete a um problema de ordem geral: as relações entre ciência e sociedade. Não creio que a dinâmica da ciência possa ser reduzida a priori às condições sociais e políticas vigentes na sociedade. É uma dinâmica que tem lógica própria e não se deixa disciplinar pela estrutura social, embora dela faça parte.
A ciência, frequentemente, se encontra em tensão e, em alguns momentos, em conflito aberto, com a lógica social. Isso permite que não apenas reproduza a estrutura de interesses, de valores e de práticas hegemônicas na sociedade, como também a enfrente e contrarie, e descortine novas perspectivas de futuro.
Assim, no lugar da disjuntiva ou, quero enfatizar o e reflexivo e todo o campo de relações múltiplas e também de contradições que isso envolve. Ciência e vida social são teias de relações que envolvem processos e escolhas. Temos que refletir sobre as especificidades das dinâmicas internas da ciência e, ao mesmo tempo, as suas múltiplas relações com a sociedade e perceber que, talvez, sejam essas, as relações, que permitem que as próprias dinâmicas internas se fortaleçam. Autonomia e interdependência, lembra-me a pesquisadora Simone Kropf, da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
Estou sugerindo que o potencial de inovação ou mudança da ciência é outro, quando ciência e sociedade, cada uma a seu modo e seguindo percursos próprios, se comunicam com êxito. Comunicação – pode-se perceber – é uma das minhas palavras-chave. Lembro um dos meus sociólogos contemporâneos preferidos, o alemão Niklas Luhmann (1927-1998), e sua sugestão, formulada com base em um trabalho teórico multidisciplinar, especialmente entre Sociologia, Biologia e Neurologia, de que as sociedades só existem em relações de comunicação, mas que a comunicação é sempre muito improvável. Quando, contrariando todas as expectativas, há êxito nas comunicações, a sociedade acontece.
Entendo que, sem um propósito comum, dificilmente ciência e sociedade inovarão e, mais do que isso, desenvolverão condições de inovação e mudança plenamente. Precisarmos sair todos e, de preferência, juntos da crise aguda em que vivemos. Sem um projeto para o Brasil será muito improvável conferir sentido à inovação científica como mudança social. Por certo, é preciso ressignificar a própria ideia de projeto para o Brasil – não pensemos mais nisso como recurso homogeneizador ou domesticador das diferenças e no Brasil como uma totalidade autocentrada ou fechada. Temos que avançar, antes, na construção dialógica, em uma politica de reconhecimento que liga um eu a um outro; enfim, um projeto de espaço comunicacional que confere sentidos compartilhados à inovação e à mudança – reconhecendo as diferenças entre elas.
3. Um projeto para o Brasil
No início dos anos 2000, no âmbito de um grupo multidisciplinar com físicos teóricos no CBPF, desenvolvi minha pesquisa sobre a escrita pública do físico José Leite Lopes (1918-2006). Observando esse material, percebi que, em um primeiro momento, nos anos de 1950, sua ideia de desenvolvimento parecia confundir-se com a de industrialização. À medida, porém, que os dilemas da industrialização substitutiva de importação tornavam-se claros, Leite Lopes passou a discutir a questão da dependência científica e tecnológica. Na base do seu pensamento, a percepção sobre o fracasso de toda uma geração.
Todavia, a partir do diagnóstico de que a desarticulação entre o processo de institucionalização da ciência e a expansão do capitalismo industrial no Brasil definia, em grande medida, os impasses vigentes na atividade científica, Leite Lopes mostrou-se progressivamente, nos anos posteriores, cada vez mais atento ao sentido político desse processo.
Desse ponto de vista, é possível considerar que a ciência como força social de modernização e/ou desenvolvimento da sociedade não declinou porque os tempos mudaram, e sim porque parece ter cumprido, em parte, seu ciclo. Mas, se houve mesmo esse processo formativo, é preciso reconhecer que, nem por isso, o conjunto da atividade científica se integrou e que, mais importante ainda, como se esperava nos tempos heroicos do nacional-desenvolvimentismo, a sociedade se transformou e suas desigualdades sociais decorrentes da formação histórica, foram superadas.
Como então jovem cientista social, nos anos 2000, foi muito importante perceber isso, encontrar esse fio da meada e situar toda uma geração nacional-desenvolvimentista, no momento em que a sociedade brasileira, com incrementos inovadores, começava a buscar justamente problematizar o paradigma do desenvolvimento, pela associação à democratização das oportunidades e combate às desigualdades sociais.
Pensar o futuro da inovação e da ciência é fortalecer o duplo compromisso da ciência com a democracia de que vimos falando, ou da inovação com a mudança, sem o que, a confiança nas instituições da ciência como produtoras de bens públicos permanecerá em risco. Nosso desafio, então, para construir um projeto para o Brasil, passa, necessariamente, pela recriação e dinamização do paradigma do desenvolvimento pelo da democratização, que precisa ser reafirmado em todas as instâncias, da remodelação da estrutura de oportunidades ao combate às desigualdades sociais – não só fora como dentro da ciência. [2]
[1] Imagem de Gerd Altmann por Pixabay.
[2] Texto de André Botelho. Professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ; presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), Artigo produzido a partir da apresentação realizada no seminário Desafios da Ciência e da Inovação e a Fiocruz do Futuro, em 10/11/2021, evento preparatório do IX Congresso Interno da Fiocruz.
Como citar esta notícia: Fiocruz. Inovação científica com mudança social: articulando desenvolvimento e democracia. Texto de André Botelho. Saense. https://saense.com.br/2022/01/inovacao-cientifica-com-mudanca-social-articulando-desenvolvimento-e-democracia/. Publicado em 25 de janeiro (2022).