UFRGS
27/04/2022

Atualmente em exposição no Museu de Ciências e Tecnologia da PUC, o maior pedaço do meteorito de Putinga compõe o acervo do Museu de Mineralogia do Instituto de Geologia da UFRGS (Foto: Flávio Dutra/JU)

Em 1937, um meteorito tão velho quanto o Sistema Solar caiu sobre Putinga, pequena cidade do Vale do Taquari. Pertencente ao acervo do Museu de Mineralogia e Petrologia Luiz Englert, da UFRGS, uma parte da rocha está em exposição no Museu de Ciência e Tecnologia da PUCRS  

O dia é 16 de agosto de 1937, um domingo ensolarado em Putinga, então um pequeno distrito pertencente ao município de Encantado, no Vale do Taquari. O padre Domingos Carlino comandava as homenagens a São Roque, padroeiro da comunidade. Em frente à Igreja Nossa Senhora da Purificação, algumas centenas de pessoas participavam da festa.   

De repente, um forte estrondo assustou os presentes, e o céu passou de azul a cinza. Pensaram ser o prenúncio de uma tempestade – mas, para surpresa de todos, o que caiu foi um meteorito. Aproximadamente uma tonelada de pedra extraterrestre deixou um rastro de fumaça de 15 quilômetros em sua trajetória até o solo putinguense – justamente lá, o distrito cujo padroeiro tem nome que deriva do francês “rocque” (em português, rocha).  

O meteorito percorreu mais de 90 quilômetros a partir do município de Fazenda Vilanova até Putinga. Seu estrondo, semelhante a um prolongado trovão, foi ouvido a 180 quilômetros de distância. Em atrito com a atmosfera terrestre, partiu-se em vários pedaços, espalhando fragmentos por municípios vizinhos, como Arroio do Meio, Candelária, Estrela, Lajeado e Soledade.  

A maior fração do meteorito que segue em solo brasileiro – com 45 quilos – pertence ao Museu de Mineralogia e Petrologia Luiz Englert, parte do Instituto de Geociências da UFRGS (IGeo). 

Desde 2014, o acervo do Museu, que contempla mais de 7.000 peças, está armazenado em quatro contêineres no Câmpus do Vale, aguardando a perspectiva de um ambiente próprio junto ao Instituto, como conta o coordenador Heinrich Theodor Frank. O meteorito fica conservado à parte, em uma sala climatizada no Laboratório Interdisciplinar de Meteorí­tica e Ciências Planetárias (LIMEP). 

Em Porto Alegre, as pessoas interessadas podem ver o meteorito de perto: ele saiu temporariamente do LIMEP para integrar a exposição Mudanças Climáticas e Tecnologia, do Museu de Ciências e Tecnologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), onde deve ficar exposto por pelo menos um ano, segundo a organização da mostra. O Putinga serve de exemplo de meteorito na “Experiência 8: crises climáticas e extinções em massa”, que trata do desaparecimento dos dinossauros não aviários durante o período Cretáceo. Composta de 14 experiências interativas que abordam a crise climática global em perspectiva interdisciplinar, a exposição tem tradução para inglês e Libras, além de audiodescrição. 

Fragmentos espalhados 

Armando Otávio Manica conta, aos 93 anos, as memórias do dia da queda do meteorito em Putinga: “Eu era um guri de oito anos e estava lá na casa de um vizinho. Quando eu vi, fez um estrondo, vim para casa. Estava todo mundo espantado. E daí, não demorou muito, os moradores disseram que caiu uma pedra”. 

O susto foi grande: “Eles imaginaram que estava acabando o mundo, coisa desse tipo”, diz Paulo Martini, pesquisador da área de geociências do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e estudioso do caso. As mulheres, nervosas, sovaram as massas de pão com mais vigor, e os pães acabaram maiores que normalmente. “Até hoje tem uma anedota em Putinga que diz que o pão de São Roque é o melhor pão do ano, o pão que mais cresce”, conta Paulo, bem-humorado.  

Foi na Linha Carlos Barbosa, sobre as propriedades de Antonio Noatto, José Marchese, Rosa Secco, a pouco mais de dois quilômetros do centro de Putinga, em que caíram as maiores frações do meteorito. 

Os fragmentos foram divididos “um pouco para cada um”, conta Armando. Seu pai até guardou um pedaço para si, que, com o passar dos anos, acabou se perdendo. “Até então era uma pedra só, uma simples pedra. E acabou se extraviando, não tenho nem ideia de onde está”, diz a filha de Armando, Gabriela Manica.  

Há quem tenha se desfeito de sua parcela do meteorito com temor de maus presságios; outros venderam, doaram, perderam. Passada de mão em mão, parte dos cerca de 200 quilos de fragmentos recolhidos em Putinga e nas redondezas acabou, inclusive, no exterior, em institutos e museus na Alemanha, nos Estados Unidos, na Itália e no Vaticano. No Brasil, há partes do Putinga na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no Museu Nacional (RJ), no Museu de Geociências da Universidade de São Paulo (USP), no Museu Geológico da Bahia e no Colégio Anchieta, em Porto Alegre.  

Já Putinga, tornado município em 1963, detém um pequeno fragmento, comprado da vizinha Ilópolis em 1999. Ele fica exposto no Centro de Cultura do município, onde educadores contam às crianças a história do dia da queda. Uma iniciativa que, para o prefeito Paulo Sérgio dos Santos (PP), colabora para “manter viva na população, nos mais novos, esse capítulo importante da história da cidade”. Mileidy Lumi, responsável pelo Departamento de Turismo, complementa: “O pessoal vê isso como uma história importante no nosso município. Os mais antigos gostam muito de conversar sobre esse assunto”.  

Tão velho quanto o Sistema Solar 

Seu Angélico foi uma das pessoas que, em 1937, transportou fragmentos do meteorito até Porto Alegre pelo Rio Taquari. 

O que ele primeiro chamou de pedra, sua neta, Márcia Boscato, geóloga e professora do IGeo, chama de condrito ordinário L6S5. Condritos, explica Márcia, são meteoritos do tipo rochoso formados por pequenas esferas chamadas côndrulos, compostas de minerais ricos em ferro, magnésio e cálcio.  

O Putinga é um condrito ordinário (como a maioria dos meteoritos), o que significa que ele carrega consigo vestígios do período inicial de formação do Sistema Solar. Ao contrário dos condritos não ordinários (que passaram pelo processo de diferenciação, desenvolvendo um núcleo metálico e uma crosta silicática, tal qual a Terra), os condritos ordinários sofreram menos ação metamórfica e impactos com outros corpos, preservando muitas de suas características primitivas.  

Através de estudos geocronológicos, baseados no tempo do decaimento radioativo de certos elementos químicos, a comunidade científica sabe que o Putinga já estava vagando pelo Sistema Solar quando a Terra se formou, há aproximadamente 4,3 bilhões de anos. “O meteorito é um fragmento remanescente desse tempo muito longínquo, uma espécie de fóssil, que, se estudado, nos põe em contato com objetos que estavam aqui há bilhões de anos”, comenta Márcia. Para ela, a singularidade do Putinga está relacionada principalmente a sua chegada à Terra: são raros os corpos que, conseguindo vencer o atrito da atmosfera, chegam ao solo – e ainda têm a queda testemunhada. Segundo André Moutinho, integrante da Associação Internacional de Colecionadores de Meteoritos, ocorreram 19 casos desse tipo no Brasil, mas ele acredita que o de Putinga seja o mais emblemático. “A grande maioria foi de uma ou poucas pedras e poucas testemunhas”, afirma.  

Um dos fatores que fez o Putinga não se desintegrar completamente antes de colidir com o solo foi o sentido de seu movimento. “Como ele veio de Sudeste a Noroeste, acompanhando a direção do movimento da Terra, ele encontrou menos resistência na atmosfera e consequentemente chegou mais inteiro ao chão”, explica Paulo Martini. Ele acredita que boa parte da matéria do meteorito ainda esteja escondida ao longo das encostas dos morros do Vale do Taquari. “Tem muita coisa que foi estudada sobre o evento, sobre o meteorito em si e sobre o rescaldo disso que precisa ser investigado”, diz o geólogo. 

“O que mais me fascina não são as conclusões, mas os desafios” 

Paulo Martini 

Uma das questões para a qual não há conclusão diz respeito ao corpo que deu origem ao meteorito Putinga, assim como aos demais condritos do tipo L (os que têm baixo teor de ferro). Acredita-se que eles advêm de um asteroide equivalente à Terra em tamanho, mas um ou dois bilhões de anos mais velho que os planetas do Sistema Solar, afirma Paulo. “Eu acho que esse evento não acabou ainda. Ele nos alimenta. Cabe à gente, à ciência, tentar buscar mais informações”, conclui. 

Valor científico mensurado em reais 

Como não há legislação internacional que verse sobre a propriedade de meteoritos, cada país define a questão a seu modo. Na Argentina e no Chile, por exemplo, quem acha um meteorito não pode levá-lo consigo, já que eles são considerados propriedade da União. Já no Brasil, na ausência de legislação específica sobre o assunto, os meteoritos são verdadeiras pedras preciosas em um mercado que envolve colecionadores, instituições de pesquisa brasileiras e compradores internacionais. No recente caso de Santa Filomena, cidade do sertão pernambucano que recebeu uma chuva de meteoritos em agosto de 2020, houve uma intensa caçada pelos fragmentos – um deles, inclusive, pesa quase 40 quilos e é considerado o maior meteorito rochoso já encontrado no Brasil. Na mão de colecionadores estrangeiros, as ofertas pelas pedras chegaram à casa das centenas de milhares de reais. Na disputa, instituições brasileiras, como o Museu Nacional, saíram prejudicadas.  

Após o caso de Santa Filomena, a questão da propriedade dos meteoritos veio à tona no Congresso Nacional, que atualmente discute o Projeto de Lei (PL) 4.471/2020, proposto pelo deputado federal Alex Santana (Republicanos). O PL propõe que, caso caia sobre áreas particulares, o meteorito pertença ao dono daquela área e, se a área for de município, estado ou do Distrito Federal, que pertença à União. Se o meteorito cair sobre espaços públicos – mar, rio, lago, lagoa ou área de proprietário indeterminado –, ele pertenceria a quem primeiro o encontrasse. O texto garante, ainda, à União, a posse, durante seis meses, de fragmentos privados que o dono deverá ceder para a realização de pesquisas. Para Márcia, devido à importância científica, os meteoritos devem ser de propriedade de instituições de pesquisa. Ela afirma que o assunto é complexo e envolve diversos fatores, mas deve ser debatido pelo poder público junto à população. 

“É preciso que a sociedade brasileira saiba que é um bem que lhe pertence” 

Márcia Boscato 

[1] Texto de Gabriela Sardi

Como citar esta notícia: UFRGS. Fragmento do meteorito caído em Putinga há 85 anos segue desafiando cientistas sobre a formação do Sistema Solar. Texto de Gabriela Sardi. Saense. https://saense.com.br/2022/04/fragmento-do-meteorito-caido-em-putinga-ha-85-anos-segue-desafiando-cientistas-sobre-a-formacao-do-sistema-solar/. Publicado em 27 de abril (2022).

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