Jornal da USP
24/03/2023
Por Laryssa Tarachucky, pesquisadora Laboratório de Inovação Cidadã do Novale Hub, e Maria da Penha Vasconcellos, professora da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP e do Instituto de Estudos Avançados da USP
Cerca de 87% da população brasileira vive em cidades. Se as projeções de urbanização da Organização das Nações Unidas se confirmarem, até 2050 seremos cerca de 215 milhões de brasileiros (92,4%) compartilhando diariamente infraestrutura, recursos e serviços em centros urbanos. A velocidade e a intensidade com a qual esse processo está acontecendo abre oportunidades de acesso à informação, construção de conhecimento e possibilidades de conexão nunca vistas na história. Entretanto, também traz consigo seus riscos e desafios: as cidades de hoje precisam de estruturas mais ágeis e porosas para que possam responder às questões complexas que enfrentam, como a crise climática, o crescimento demográfico, a crescente desigualdade e o acirramento de tensões sociais.
A construção da cidade do futuro demanda um processo profundo de repensar a forma como nos comportamos, interagimos e colaboramos uns com os outros. Ela demanda – hoje – a criação de estratégias e práticas menos ancoradas nos processos formais de planejamento e desenvolvimento urbano, e mais orientadas ao estabelecimento de espaços de cooperação entre iniciativas bottom-up e as práticas institucionais. Uma agenda de desenvolvimento sustentável capaz de responder à complexidade do cenário urbano que vemos surgir requer não apenas incentivar ações conjuntas entre governos, academia, iniciativa privada e cidadãos em torno de questões de interesse comum, mas também pautá-las em abordagens abertas à experimentação e em espaços mais horizontais e hospitaleiros às necessidades surgidas da vida cotidiana nas cidades.
Laboratórios de inovação cidadã
Já existem no mundo modelos institucionais mais plurais, mais abertos, inclusivos e alinhados com a complexidade das cidades contemporâneas. Os laboratórios de inovação cidadã são um exemplo concreto disso. Eles operam a partir de lógicas e práticas que encorajam a colaboração ao invés da competição, o compartilhamento do conhecimento ao invés de sua exclusividade e a experimentação, nas quais tentativa e erro são vistas como parte valiosa do processo entre seus participantes. São espaços abertos, que incentivam o intercâmbio de visões entre as diferentes partes interessadas em torno de uma questão comum e apoiam a formação de redes de cidadãos ativos, dispostos a se envolver na busca de soluções para os problemas que os afetam.
Um dos mais importantes espaços voltados para a multiplicação das práticas de inovação cidadã em âmbito mundial é o Medialab-Prado. O Medialab-Prado – renomeado Medialab-Matadero devido a uma recente mudança de endereço – é um laboratório de inovação cidadã baseado em Madri que, desde 2002, abriga em sua estrutura atividades de experimentação para a participação democrática, prototipagem de sistemas de dados abertos e ciência cidadã, além dos mais diversos processos de desenvolvimento de soluções para questões comunitárias que abrangem desde estruturas de gestão compartilhada de comuns urbanos até sistemas digitais para a visualização de dados sobre diferentes dinâmicas das cidades.
Proposta por Marcos García e Laura Fernandez, a metodologia desenvolvida para a condução das atividades do Medialab-Prado é orientada a facilitar que pessoas provenientes de mundos diferentes e que antes não se conheciam possam colaborar no desenvolvimento dos projetos. Ela consiste em criar equipes de trabalho mediante convocatórias abertas aos cidadãos para que estes elaborem propostas e colaborem com a criação de soluções para questões que afetam a vida em comum. Essa forma de aproximação vem sendo validada, refinada, replicada e adaptada a diferentes contextos ao longo dos anos, sendo utilizada, por exemplo, na Rede de Laboratórios de Inovação Cidadã da Secretaria Geral Ibero-Americana (Segib), que atua articulando laboratórios nos vinte e dois países da região da Ibero-América, desde 2014.
No Brasil, modelos de formação de comunidades de aprendizado e de prática inspirados nas abordagens abertas, experimentais e colaborativas têm despontado diante desse cenário. A Silo Arte e Latitude Rural é, talvez, um dos mais consolidados e uma das principais pontes no Brasil com a rede de laboratórios cidadãos em formação. Localizada na região da tríplice fronteira entre São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, a Silo ocupa os espaços de um antigo cassino desativado na área de Proteção Ambiental da Serrinha do Alambari. Nele, desenvolve modelos laboratoriais de experimentação e inovação com habitantes, trabalhadores e pesquisadores de áreas rurais e ambientais como forma de promover o trânsito de saberes e práticas entre campo e cidade.
Outro exemplo a ser citado é o LabIC Novale, laboratório de inovação cidadã que estrutura o eixo de inovação social e urbana do Novale Hub – um dos quinze integrantes da Rede Catarinense de Centros de Inovação, localizado em Jaraguá do Sul. Criado a partir do projeto Laboratorios Ciudadanos Distribuidos (uma parceria entre o Medialab-Prado e o Ministério da Cultura e Esportes da Espanha), o LabIC Novale partiu do modelo de aproximação e escuta de tal projeto para, posteriormente, desenvolver uma estrutura programática que permitisse apoiar processos de design de interação urbana conectando atores urbanos, promovendo novos vínculos entre pessoas e cidades, estimulando a abertura dos sistemas de inovação e de produção do conhecimento, encorajando a formação de redes de cidadãos ativos dispostos a se envolver com as questões urbanas e a prototipar soluções para os problemas que os afetam e testando e avaliando estratégias, abordagens e soluções inovadoras para a criação de impacto social, ambiental, cultural e cívico
Outras experiências igualmente interessantes nesse campo são o LAB Procomum, criado em 2017 pelo Instituto Procomum na região de Santos (SP); o LAB11+, em Santa Cruz de la Sierra (Bolívia); o Medialab UGR, laboratório de experimentação e inovação social da Universidade de Granada (Espanha); o CUIC – Centro Universitário de Inovação Cidadã, impulsionado pela Faculdade de Ciências Exatas da Universidade Nacional do Centro da Província de Buenos Aires (Argentina); e o Slow-U, programa do Tecnológico de Monterrey (México).
Os cidadãos como parte integrante na solução de interesses comuns
O papel dos laboratórios de inovação cidadã no enfrentamento dos desafios globais reside em iniciar processos estendidos de aprendizado social, estimular o surgimento de novas capacidades cívicas em comunidades auto-organizadas e amparar processos de design que favorecem a participação e a formação de redes colaborativas no território. Participação, nesses contextos, significa essencialmente incentivar que as pessoas se envolvam no planejamento e desenvolvimento da cidade, dos bairros ou mesmo das vizinhanças, na conformação do ambiente onde vivem, e em tudo aquilo que acontece em seus espaços. Isso pode significar ter voz em processos de decisão mais distribuídos a respeito do destino dos recursos municipais ou mesmo ser inserido em práticas baseadas no “aprender fazendo” e “aprender com outros” – ou seja, aprender coletivamente a partir de um processo de criação orientado à melhoria da vida em comum. Nesse sentido, criar e gerir espaços para a participação em processos de inovação cidadã envolve não apenas formar estruturas de apoio ao desenvolvimento de soluções para questões de interesse comum, mas também promover espaços de diálogo, de troca de conhecimento e de estabelecimento de visões compartilhadas sobre onde se está e onde se quer chegar.
Espaços como os laboratórios de inovação cidadã guardam o potencial de funcionar como um elo entre as necessidades e expectativas dos cidadãos, academia e autoridades locais uma vez que atuam de modo mais aprofundado nas etapas iniciais do processo de projeto de soluções urbanas – mais especificamente na prototipação – a partir da ruptura da dicotomia entre cidadãos e equipe técnica e de conceitos de inovação aberta, experimentação e da ideia de protótipo. Eles cumprem o papel de envolver os habitantes locais de modo a se chegar a ideias mais precisas sobre as necessidades de uma determinada comunidade (ao invés de assumir essas necessidades a partir de um olhar externo) e, a partir daí, avançar para o desenvolvimento de soluções mais adequadas e/ou legitimadas.
As experiências observadas nos casos supracitados e, em especial, a experiência acompanhada a partir do projeto de pesquisa conduzido junto ao Centro de Sínteses Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados da USP, vem mostrando que o trabalho de escuta, diálogo e experimentação feito a partir dos laboratórios de inovação cidadã podem complementar as abordagens tradicionais de planejamento urbano e de governança nas cidades (top-down) e também contribuir para as práticas mais informais de construção de cidades vindas das iniciativas de base (bottom-up) a partir de uma perspectiva integradora (middle-out). [2]
[1] Imagem: Creativegen / Pixabay.
[2] Publicação original: https://jornal.usp.br/artigos/laboratorios-de-inovacao-cidada-estruturas-emergentes-para-a-cocriacao-de-solucoes-para-questoes-urbanas/.
Como citar este texto: Jornal da USP. Laboratórios de inovação cidadã estruturas emergentes para a cocriação de soluções para questões urbanas. Texto de Laryssa Tarachucky e Maria da Penha Vasconcellos. Saense. https://saense.com.br/2023/03/laboratorios-de-inovacao-cidada-estruturas-emergentes-para-a-cocriacao-de-solucoes-para-questoes-urbanas/. Publicado em 24 de março (2023).