UFRGS
21/10/2024
O ano é 2020, e a pandemia causada pela covid-19 trouxe mudanças significativas à área da educação. Em meio a esse cenário, a professora de matemática Camila Nemos precisou adaptar o seu trabalho para acompanhamento escolar individual em formato remoto. Insatisfeita com a atuação profissional e buscando novos caminhos, surgiu a oportunidade de trabalhar como educadora voluntária no reforço escolar para crianças e adolescentes em tratamento oncológico (em andamento ou finalizado).
Assim, no começo de 2021, a docente começou a trabalhar no Instituto do Câncer Infantil (ICI), onde passou a atender alunos que estavam afastados da escola por conta do tratamento. Logo, surgiram indagações sobre a falta de inclusão no currículo pedagógico, o que motivou o desenvolvimento de seu projeto de pesquisa de mestrado no Programa de Pós-graduação em Ensino de Matemática da UFRGS. O objetivo da pesquisadora era compreender os desafios enfrentados pelos professores ao ensinar matemática para crianças e adolescentes que se ausentaram das aulas por conta do tratamento de câncer e, ainda, propor medidas de adaptação do ensino.
Camila acreditava que a pandemia teria grande impacto no processo de aprendizagem dos alunos com câncer. No entanto, a pesquisadora observou que, como muitos estudantes já estavam afastados das aulas presenciais por longos períodos em função do tratamento, os efeitos do distanciamento social não foram tão sentidos por eles. “Em linhas gerais, os alunos-pacientes vivem um processo de infrequência escolar semelhante ao que aconteceu durante a pandemia antes mesmo de ela ter ocorrido”, relata.
A pesquisa
As leis que regulamentam a educação para pessoas em tratamento de saúde são recentes. Em 2002, o Ministério da Educação (MEC) publicou um documento que norteia o ensino hospitalar e domiciliar; somente em 2015, porém, surgiram novas legislações voltadas a esse público. Conforme Camila, os cursos de licenciatura, em sua maioria, não abordam a aprendizagem voltada a crianças e adolescentes que enfrentam problemas de saúde graves. Muitos educadores que atuam em classes hospitalares não têm formação específica em ensino inclusivo, o que dificulta o desenvolvimento de atividades de disciplinas como a matemática.
Orientada pela professora Marilaine Sant’Ana, a pesquisa de Camila começou com a busca no banco de dados do Instituto do Câncer Infantil por pacientes em idade escolar, focando nos estudantes dos anos finais do ensino fundamental e médio que residiam na região metropolitana de Porto Alegre. Ela selecionou 20 alunos-pacientes e iniciou o contato com as escolas. Muitos números de telefone, no entanto, estavam desatualizados, o que exigiu visitas presenciais às instituições mais próximas.
Durante esse processo, alguns docentes não retornaram o contato, e foi necessário buscar indicações de outros profissionais que haviam trabalhado com estudantes em condições semelhantes. O corpus de pesquisa foi formado por quatro professores entrevistados, que destacaram, como principais dificuldades enfrentadas, a falta de comunicação entre a família e a escola, a falta de recursos e o desconhecimento da instituição sobre a situação de saúde dos alunos.
A escola, além de ser espaço de aprendizado, é um ambiente fundamental para o desenvolvimento das relações sociais. Discentes que não conseguem acompanhar as aulas muitas vezes se sentem excluídos, o que agrava ainda mais sua autoestima, sobretudo no contexto de um retorno para a rotina de estudos após o tratamento de câncer.
“Essas situações são extremamente prejudiciais aos alunos-pacientes, visto que são submetidos a situações similares ao bullying – não por parte dos colegas, mas, sim, devido ao desconhecimento da situação de saúde do paciente por parte dos profissionais da escola”Camila Nemos
Camila reforça a importância da interação das equipes diretiva e docente com os profissionais de saúde envolvidos no tratamento. “Todos os professores de matemática entrevistados relataram que nunca tiveram a oportunidade de conversar com a equipe de saúde do aluno-paciente. Em poucos casos, as informações acerca da saúde dos estudantes eram transmitidas pelas famílias à supervisão escolar, que repassava aos professores”, relata.
Os educadores entrevistados também apontaram o desconhecimento de como tratar as questões emocionais de seus alunos-pacientes. Apesar do interesse em ajudar, eles relataram desconhecimento sobre como lidar com a situação, o que evidencia a necessidade de capacitação e de discussões sobre essa temática nos cursos de formação continuada e licenciatura. “O professor pode por vezes se perguntar: flexibilizar? Como? O quê? Será que pedir trabalhos domiciliares ajuda? Ou atrapalha, já que o estudante está em tratamento? Será que dar menos atividades o deixa mais livre para fazer seu tratamento com tranquilidade? Será que não cobrar nesse momento é o correto? Discussões sobre essa temática precisam ser promovidas a fim de tentar olhar para cada caso da forma mais correta possível”, alerta Camila.
Nesse contexto, a pesquisadora sugere algumas medidas que podem garantir o direito à educação aos estudantes-pacientes. Ela sustenta que o uso de ferramentas de educação a distância, como aulas síncronas em plataformas digitais, é uma forma de aproximar as pessoas que estão afastadas para tratamento.
Além disso, com a chamada matemática inclusiva, o ensino é feito por meio de estímulos sensoriais diversificados, permitindo que cada indivíduo aprenda de uma maneira que respeite suas dificuldades. Esse modelo é crucial para que crianças e adolescentes acompanhem suas turmas sem sentir que estão abaixo do rendimento escolar. “À medida que outros sentidos são estimulados, se amplia a possibilidade de aprendizagem de determinado conceito e permite que todos os estudantes consigam aprender”, explica a pesquisadora.
Desafios
Um dos principais motivos para o baixo rendimento escolar apontados pela pesquisa está relacionado à baixa autoestima dos alunos que passaram pelo tratamento do câncer. Assim que são liberados para retornar à escola, algumas características do tratamento ainda se fazem presentes, como a queda de cabelos. As questões relacionadas à aparência fazem com que as crianças e adolescentes não queiram estar presentes na sala de aula por medo de julgamento dos colegas. Além disso, houve o relato de um dos entrevistados a respeito de um aluno-paciente que afirmou não ter vontade de aprender matemática, afinal, talvez tivesse pouco tempo de vida.
A dissertação de Camila apresenta a relevância da implementação de políticas públicas voltadas para a melhoria da experiência educacional de estudantes e professores. Visando um processo de aprendizagem mais eficaz e humanizado, a pesquisadora enfatiza a importância da integração entre as equipes de saúde e das escolas, de modo que os docentes recebam orientações adequadas sobre as condições de seus alunos. “Dessa forma, o aluno-paciente que ficou afastado da escola regular consegue acompanhar sua turma sem que se sinta diferente intelectualmente. Quando este estudante se sente parte daquele meio ao qual está inserido, se sente pertencendo àquele grupo social, sua autoestima se eleva, o que traz benefícios à sua saúde mental e ao seu tratamento”, conclui a professora.
A dissertação de Camila estará disponível na íntegra em breve no Lume – Repositório Digital da UFRGS, mas artigos derivados da pesquisa já foram publicados e estão disponíveis na ferramenta Even3, nos anais da Conferência Nacional sobre Modelagem na Educação Matemática (CNMEM) e na revista acadêmica VIDYA. [1], [2]
[1] Texto de Renata Rosa
[2] Publicação original: https://www.ufrgs.br/jornal/estudo-propoe-adaptacoes-no-ensino-de-matematica-para-alunos-em-tratamento-oncologico/
Como citar esta notícia: UFRGS. Estudo propõe adaptações no ensino de matemática para alunos em tratamento oncológico. Texto de Renata Rosa. Saense. https://saense.com.br/2024/10/estudo-propoe-adaptacoes-no-ensino-de-matematica-para-alunos-em-tratamento-oncologico/. Publicado em 21 de outubro (2024).