Jornal da USP
24/03/2025

Uma tese de doutorado, quatro artigos para revistas científicas e novas informações sobre a influência de fatores biológicos e ambientais no desenvolvimento das psicoses. Esses são alguns resultados do trabalho desenvolvido por Fabiana Corsi Zuelli na Faculdade de Medicina da USP (FMRP) em Ribeirão Preto.
Sob orientação de Cristina Marta Dal Ben, também da FMRP, Fabiana buscou investigar como a inflamação e os fatores ambientais poderiam ajudar na identificação de indivíduos com maior vulnerabilidade biológica para psicoses. E, a partir desta compreensão, pensar em estratégias de prevenção e tratamentos mais individualizados.
Um dos estudos mostrou que o uso diário de maconha, ou durante a adolescência, está associado ao aumento do risco de desenvolver psicose. “Nós vimos que parte desses indivíduos se encontravam em um estado que a gente chama de inflamatório de baixo grau”, explica Fabiana. “Não chega a ser uma inflamação vista em doenças autoimunes ou inflamatórias, mas é um estado que pode gerar, sim, alterações nessa neuroquímica do cérebro.”
Um outro braço do trabalho mostrou que indivíduos com histórico de maus tratos na infância também tinham esse perfil inflamatório quando comparado àqueles que não passaram por eventos traumáticos na infância. A pesquisadora utilizou uma amostra de pacientes controle e irmãos de pacientes com transtorno, ambos pareados por idade e sexo.
Estudos anteriores já haviam destacado uma associação entre inflamação e esquizofrenia, bem como de outros transtornos psicóticos. Além disso, fatores de risco modificáveis, como o consumo de maconha e maus tratos na infância, têm sido associados a um aumento do risco de psicoses. Contudo, os mecanismos associados ainda eram desconhecidos.
“O grande diferencial do trabalho da Fabiana é que ela não focou só na descrição da associação entre inflamação e psicose, mas procurou, dentro do possível, tentar entender os mecanismos de doença”, explica Cristina.
Inflamação x psicose
Em seu doutorado, Fabiana realizou quatro investigações principais. Para os estudos 1, 2 e 3, foram analisados dados transversais de pacientes em primeiro episódio psicótico (PEP), seus irmãos não afetados pelo transtorno e controles da comunidade, de ambos os sexos, com idade entre 16 e 64 anos. Por primeiro episódio psicótico, entende-se as pessoas que faziam o primeiro contato com o serviço de saúde mental da região de Ribeirão Preto com sintomas psicóticos.
No estudo 1, publicado na revista Psychological Medicine, a pesquisadora investigou a relação de citocinas plasmáticas e os diferentes padrões de consumo da maconha em pacientes em PEP e comparou com o grupo controle. O foco foi analisar se a substância atuaria como moderadora e mediadora da inflamação diante desta relação maconha e psicose.
Os achados mostraram que o uso de maconha, quer diário ou na adolescência, somente teve associação significativa com o aumento da chance de desenvolver psicose naqueles pacientes que apresentavam perfil inflamatório de baixo grau. O consumo de cannabis, por si só, não foi associado ao aumento da inflamação.
O segundo estudo, publicado na revista Translational Psychiatry, foi focado em investigar o papel das Armadilhas Extracelulares de Neutrófilos (NETs, neutrophil extracellular traps) e a interleucina 6 (IL-6) na relação com o histórico de traumas na infância em uma amostra clínica (pacientes com esquizofrenia de início recente, seus irmãos não afetados pelo transtorno e controles). Os neutrófilos são células de defesa do organismo do sistema imune inato e os primeiros a serem recrutados durante o aparecimento da infecção. As NETs são estruturas extracelulares que se assemelham a redes, compostas de DNA, proteínas, granulares de neutrófilos entre outras. Em conjunto, compõem um mecanismo crucial para a defesa imunológica.
As análises mostraram que indivíduos com histórico de maus tratos na infância apresentaram perfil inflamatório, com maiores concentrações plasmáticas de NETs e IL-6, em relação àqueles que não passaram por eventos traumáticos na infância.
Além disso, ratos machos jovens foram submetidos a um modelo de estresse na adolescência e comparados com um grupo controle. Os ratos submetidos ao estresse tiveram uma tendência a apresentar maiores concentrações de NETs liberadas da medula óssea.
Já no terceiro estudo, a pesquisadora estudou a associação entre mediadores pré e pró-inflamatórios presentes no sangue periférico com as dimensões transdiagnósticas do continuum das psicoses em irmãos de pacientes em PEP não afetados pela doença e controles. O objetivo era estimar sete dimensões clínicas transdiagnósticas da psicopatologia em pacientes em PEP não afetados: geral, alucinação, delírio, desorganização, negativa, mania e depressiva; e quatro dimensões das experiências psicóticas em irmãos de pacientes em PEP. A hipótese era que irmãos de pacientes com psicose não afetados pelos transtorno apresentariam pontuações maiores nas dimensões transdiagnosticadas. A pesquisadora observou associações significativas entre esses mediadores inflamatórios com as dimensões transdiagnósticas da psicose (positiva, negativa e depressiva). O artigo foi publicado na revista Pshycological Medicine.
Por fim, no estudo 4, Fabiana investigou a relação do sistema imunológico e a inflamação nos estágios iniciais e crônicos do transtorno, e sua relação com os sintomas negativos, depressivos, alterações cognitivas e estruturais encefálicas.
As análises mostraram que níveis mais elevados de IL-6 foram relacionados a sintomas depressivos mais graves na esquizofrenia inicial e sintomas negativos na esquizofrenia estabelecida; e que o aumento de IL-6 e menor desempenho cognitivo geral foram associados a um menor volume cerebral.
Pela profundidade e inovação de seus estudos sobre os mecanismos imunológicos nas psicoses, Fabiana foi a primeira brasileira a vencer o Usern Prize 2024 na categoria Ciências Médicas. O prêmio, concedido pela Universal Scientific Education and Research Network (Usern), Rede Universal de Educação Científica e Pesquisa, agracia anualmente cientistas em início de carreira que se destacam por suas contribuições científicas e humanitárias.
Consórcio internacional
Os trabalhos desenvolvidos no estudo de Fabiana são oriundos, em sua maioria, de dados coletados durante a vigência do projeto temático Esquizofrenia e estudos psicóticos: determinantes sociais e biológicos (Stream, do inglês Schizophrenia and Other Psychosis Translational Research: Environment and Molecular Biology), realizado com o objetivo de estimar a incidência da esquizofrenia e outros transtornos psicóticos na região de Ribeirão Preto. Investigar possíveis associações entre fatores biológicos e ambientais no desenvolvimento destes transtornos também foi um foco do projeto.
Por sua vez, o Stream integrou o consórcio multicêntrico internacional European Network of National Schizophrenia Networks Studying Environment Interactions, instituído com a finalidade de investigar as causas, mecanismos e prognósticos dos transtornos psicóticos em 17 centros de seis países. O projeto se encerrou em 2015.
“Um dos estudos deste consórcio mostrou que o uso diário da maconha de alta potência (com níveis maiores de THC) aumentou o risco de psicose em quase cinco vezes quando comparados com aqueles que nunca tinham feito o uso da substância. Decidi ligar os pontos”, relata.
Outros achados europeus suportam a ideia de que essas manifestações psicóticas são parte do que eles chamam de continuum das psicoses (também chamado de fenótipo estendido da psicose). Proposto em 2001, o modelo afirma que as manifestações psicóticas são parte de um espectro. Em um extremo do continuum estão os indivíduos com transtornos que reportam sintomas psicóticos frequentes, com impactos significativos à sua funcionalidade. No outro extremo, chamado extremo saudável do continuum, estão os indivíduos da população geral que reportam sintomas psicóticos de menor intensidade ou experiências psicóticas que não satisfazem o critério formal para o diagnóstico de psicose.
Experiência pessoal
Foi durante a graduação, realizada da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP) da USP, que Fabiana teve o que ela chama de aproximação formal com o tema. Seu projeto de iniciação científica foi sobre saúde mental na atenção primária à saúde e a pesquisadora dava apoio aos profissionais de saúde que trabalhavam nos núcleos de saúde da família.
Mas o interesse pelo tema veio após acompanhar o sofrimento de uma tia com esquizofrenia. “[Eu presenciava] todos os delírios e alucinações dela. Além disso, minha mãe era a cuidadora, então eu via o fardo pelo olhar do cuidador também”, relembra.
Com o tempo, ela se aprofundou nos estudos sobre os mecanismos da doença. “Fugiu um pouco da saúde mental, mas ali eu estava focada na questão da inflamação da célula no sistema imunológico.” Depois disso, ela realizou um projeto que investigou os mecanismos relacionados ao transtorno depressivo maior em roedores.
A pesquisadora fez dois intercâmbios na graduação e participou, ainda, do programa federal Ciências sem Fronteiras. Segundo ela, as experiências foram fundamentais, pois permitiram uma imersão na cultura acadêmica.
Apesar da formação em enfermagem, Fabiana voltou a sua carreira para a área acadêmica, com pesquisas de mestrado e doutorado.
Um problema de saúde global
Os transtornos psicóticos são um estado mental patológico em que o indivíduo perde o contato com a realidade e passa a apresentar sintomas como delírios, alucinações e desorganização do pensamento. Esses episódios aparecem em diversos transtornos, como a esquizofrenia, o transtorno bipolar e o transtorno esquizoafetivo (doença mental que apresenta características de esquizofrenia e de transtornos de humor).
O primeiro episódio acontece, geralmente, no final da adolescência ou início da idade adulta e gera prejuízos ao paciente e à família. “A característica central das psicoses é a perda crítica da realidade”, ressalta Cristina. “É diferente de uma pessoa que tem transtorno de pânico: ela tem ataques, fica extremamente ansiosa, vêm do nada, vem um medo intenso, o coração dispara, mas ela tem um reconhecimento de que aquilo é estranho a ela, que aquilo não faz sentido.”
O diagnóstico dos transtornos psicóticos se baseia, principalmente, em critérios clínicos. Até o momento, não há nenhum biomarcador que auxilie na identificação ou tratamento.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) e outros sistemas, como a Associação Americana de Psiquiatria, classificam o transtorno em sintomas positivos e sintomas negativos. Os sintomas positivos (delírios, alucinações, pensamento, discurso e comportamento desorganizado) são manifestações que deveriam estar ausentes e indicativos de prejuízo do juízo crítico da realidade.
Já os negativos (embotamento afetivo, avolia, alogia, anedonia, associabilidade) se caracterizam pela redução ou ausência de manifestações psíquicas que deveriam estar presentes.
Os sintomas psicóticos, ainda, podem ser agrupados em psicoses não afetivas (esquizofrenia, transtorno esquizofreniforme, transtorno psicótico breve, transtorno delirante e transtorno esquizoafetivo) ou afetivas (transtorno bipolar e transtorno depressivo maior com sintomas psicóticos.
Do ponto de vista farmacológico, Cristina conta que houve alguma evolução, principalmente em relação aos sintomas extrapiramidais, aqueles efeitos colaterais que afetam o sistema motor. “Por outro, são medicações com um risco grande de síndromes metabólicas”, explica.
Mas as medicações disponíveis tratam apenas os sintomas positivos, e os médicos não conseguem estratificar os pacientes. “Todo mundo recebe exatamente a mesma medicação. Como nós somos um serviço público, temos que começar com as medicações mais antigas, que são mais baratas.”
Essa é uma das dificuldades encontradas pelos profissionais no serviço público. Os estudos epidemiológicos vêm demonstrando que quanto maior o tempo para iniciar o tratamento, pior é o prognóstico. “O Brasil ainda não comprou a ideia de estabelecer serviços de intervenção precoce. Essa abordagem integrada multidisciplinar visa não só redução de sintomas, mas a preservação da autonomia do indivíduo.”
Próximos passos
Fabiana seguiu, no final do ano passado, para a Inglaterra. Foi admitida na Universidade de Oxford, onde dará continuidade à sua linha de pesquisa, agora no pós-doutorado. “Vou ter a oportunidade de desenvolver outros ensaios clínicos, trabalhar com a perspectiva da inteligência artificial”, relata. “O sistema de saúde de lá (NHS) é unificado, então terei a oportunidade de trabalhar com um volume de dados bem maior”, finaliza.
Mais informações: e-mail fabiana.zuelli@alumni.usp.br, com Fabiana Corsi Zuelli [1], [2]
[1] Texto de Fabiana Mariz
[2] Publicação original: https://jornal.usp.br/ciencias/psicose-uma-nova-abordagem-para-entender-o-transtorno/
Como citar este texto: Jornal da USP. Psicose uma nova abordagem para entender o transtorno. Texto de Fabiana Mariz. Saense. https://saense.com.br/2025/03/psicose-uma-nova-abordagem-para-entender-o-transtorno/. Publicado em 24 de março (2025).