Jornal da USP
14/04/2025

Exatamente quando surgiu a linguagem é uma pergunta que pode nunca vir a ser respondida. Mas os cientistas agora propuseram com mais precisão uma data em que a capacidade do Homo sapiens para a linguagem teria se desenvolvido: 135 mil anos atrás.
Um estudo que reuniu pesquisadores da USP e instituições dos Estados Unidos, Suíça e Japão parte de uma informação já bem consolidada entre os cientistas sobre quando se deu a primeira cisão populacional entre os seres humanos. Ocorrida na África, ela deu origem a dois grupos: os Khoe-Sān, ainda presentes no continente, e outro um grupo que se ramificou em todas as outras populações de Homo sapiens que se espalharam pelo Planeta.
“Nos baseamos na premissa de que, atualmente, todas as populações humanas têm linguagem e que então, nessa primeira divisão, já tinha que estar disponível a capacidade para a linguagem”, conta Mercedes Okumura, do Instituto de Biociências (IB) da USP e uma das autoras do artigo publicado na Frontiers in Psychology.
A ideia não é nova, sendo inspirada num trabalho anterior que também junta dados arqueológicos e alguns estudos do genoma humano para tentar estabelecer esse limite. O que diferencia o estudo atual é que ele se apoia num corpo maior e mais recente de evidências – em especial no nível genômico, para refinar a estimativa para o ponto mais remoto do surgimento da capacidade linguística em 135 mil anos atrás.
A professora do IB explica que agora estão disponíveis diversos estudos de paleogenomas e de genética de populações atuais, usando diferentes marcadores. “Alguns vão olhar o DNA mitocondrial, que são as linhagens maternas; outros, o cromossomo Y, que são as linhagens paternas. E há ainda os que vão olhar diferentes partes de genomas inteiros. Fizemos um compilado para chegar não em uma data, mas nessa ‘amplitude de datas’, uma data mínima. E chegamos a esse número, a partir dessa premissa simples”, diz ela, ao Jornal da USP.
“A estrutura que organiza as línguas atuais parece ser bastante uniforme. Usamos o termo capacidade linguística porque não sabemos dizer em que medida, naquele ponto, havia de fato a expressão de uma língua ou qualquer sistema organizado seguindo as regras da linguagem humana moderna. Mas aquilo que servia de ingrediente para a manifestação desse conhecimento linguístico, muito possivelmente já estava disponível nesse momento, 135 mil anos atrás”, complementa Vitor Augusto Nóbrega, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coautor do artigo.
Comportamento moderno
O artigo apoia ainda a hipótese de que a linguagem deve ter dado origem à dispersão do comportamento humano moderno há aproximadamente 100 mil anos. “Este é um momento em que se começa a observar na cultura material dos primeiros humanos modernos um comportamento que parece estar mediado por símbolos”, explica.
“Os artefatos encontrados – que não eram somente para a sobrevivência – são tão peculiares, que parece que, naquele ponto, houve um momento de inflexão em que os humanos começaram a se comportar de maneira diferente.”
“Os humanos começaram a produzir, por exemplo, uma série de gravuras rupestres com formas não figurativas, geométricas. Começaram a se pintar, se enfeitar e a organizar o espaço de maneira diferente, o que sugere que eles passaram a se comportar fazendo uso de símbolos”, detalha o linguista ao Jornal da USP.
Esses são registros mais recentes, de cerca de 85 mil anos atrás. Mas muito antes de haver, no registro arqueológico, qualquer evidência de uso de adorno ou grafismos, temos a evidência de troca de matéria prima. “Principalmente rochas – esse pessoal mais antigo já gostava de lascar uma pedrinha”, brinca Mercedes Okumura.
Então teria que ter havido troca de matéria prima de longa distância – um grupo que morava na costa poderia trocar com um que mora mais para o interior. “E para isso, a gente pressupõe que já deveria haver algum tipo de linguagem. Não só isso, mas que talvez essas trocas seriam importantes para reforçar laços entre diferentes grupos. Pense na nossa geopolítica atual, em como são complexas as negociações para um país vender coisa para outros países, como se faz a reciprocidade.”
Entre os trabalhos que suportam a hipótese, ela cita o artigo The Revolution That Wasn’t. Nele, “as autoras vão mapear comportamentos que antes não eram tidos como tão importantes, mas que elas propõem que sim, poderiam estar nos indicando a presença um comportamento moderno, simbólico – muito antes nos diziam os meios mais óbvios, que era olhar para a presença de arte e adornos”.
Além disso, elas chamam atenção para o fato de os itens encontrados que indicam esses comportame ntos não ocorrerem repentinamente juntos, como previsto por um outro modelo – chamado de “revolução humana”-, mas em locais amplamente separados no espaço e no tempo. “Isso sugere uma montagem gradual do pacote de comportamentos humanos modernos na África e sua posterior dispersão para outras regiões do Velho Mundo”, escrevem.
O linguista Shigeru Miyagawa, primeiro autor do artigo sobre a capacidade para linguagem, conta que sempre houve uma questão sobre como pensar a linguagem em relação a outros comportamentos humanos modernos, como decorações corporais e ferramentas. “Uma escola de pensamento considera a linguagem como parte desses outros comportamentos, que surgiram juntos. Outra, acredita que foi a linguagem que os desencadeou. Nossa pesquisa sugere que a segunda é mais plausível”, afirma ao Jornal da USP.
“A linguagem também tornou possível comunicar ideias complexas, o que impulsionou a inovação”, diz Miyagawa, professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e pesquisador na USP como membro do projeto Inovações em comunidades humanas e não humanas, apoiado pela Fapesp.
Juntando ciências
Durante muito tempo o registro simbólico foi o critério de base para dizer que provavelmente dado grupo humano acabou desenvolvendo algo que teria que envolver linguagem, e a partir disso poderia se especular que a linguagem estaria disponível. “O que a gente está fazendo neste trabalho é tentar olhar para alguma coisa um pouco mais robusta e que pode ser falseável” diz Vítor Nóbrega ao Jornal da USP, ao citar o uso dos dados genômicos.
“Buscamos trazer um pouco mais de clareza sobre quando uma capacidade linguística estava disponível. O ponto mais remoto em que podemos identificar a disponibilidade dessa capacidade. Quando ela surgiu mesmo a gente não tem uma resposta, por não haver evidências diretas”, explica ele.
“Existe esse jargão já muito popular, de que ‘as línguas não fossilizam’, e é verdade. A gente tem que procurar outros modos de tentar entender quando, como e onde aparece essa capacidade da linguagem. A escrita é muito, muito posterior e muitos grupos não têm escrita”, explica Mercedes Okumura.
“Temos algumas alternativas de olhar para o registro arqueológico, para essa questão da genética, da primeira divisão, e assim por diante, mas ainda assim é um tema difícil de pesquisar. Ele certamente requer um grupo interdisciplinar pensando nisso, pessoas ousadas o suficiente para tentar se arriscar a responder perguntas para as quais não temos muitos indícios.”
Vítor Nóbrega espera que o trabalho possa servir de provocação para diferentes disciplinas, “não só para elas se unirem, mas também para que elas verticalizem e refinem a maneira de ler o registro genômico ou inferido, ler o registro arqueológico e articular à linguagem”. Com verticalização ele se refere a um refinamento dos métodos de se extrair do registro arqueológico uma evidência que seja minimamente robusta e objetiva para dizer “aqui parece haver linguagem”.
“Tudo passa muito pelo ponto de vista de quem analisa. O analista está vendo símbolos, logo linguagem. Mas trata-se de um analista humano – e os humanos tendem a inferir símbolos de quase tudo. A partir dessa correlação, que não é fundamentada, começa-se a especular uma longa história sobre como a linguagem emergiu. Isso é o que a gente deveria estar evitando”, diz ele.
E pontua que as disciplinas individualmente também ampliaram o seu repertório de investigação.
“Agora sabemos muito mais sobre genômica de populações e sobre os registros materiais de diferentes épocas. E a gente também sabe muito mais sobre a linguagem humana. Estamos em um ponto em que parece ser possível articular esses conhecimentos, mas ainda assim é preciso que a gente fique alerta para que a costura fique bem alinhavada.”
Só os Homo sapiens desenvolveram linguagem?
O debate sobre a existência de componentes da linguagem em outros primatas foi reaceso nos últimos dias com a publicação de um artigo na Science. Após analisar várias horas de gravações de bonobos, os autores sugerem que estes animais podem gerar significado ao encadear sons em pares. Esta é uma característica marcante da linguagem humana – “a combinação de elementos em estruturas significativas maiores, um padrão conhecido como composicionalidade”, escrevem.
Para alguns especialistas, isso deixa menos marcantes do que pensávamos as diferenças de comunicação entre os primatas humanos e não humanos; para outros, a descoberta não diz nada sobre a evolução da linguagem.
Pesquisadores como Shigeru Miyagawa, inclusive, a atribuem unicamente ao Homo sapiens entre todos os hominídeos. Ainda que em outros trabalhos ele argumente que um componente importante da linguagem humana pode ser compartilhado com outros primatas, ele reforça que a linguagem humana é única, combinando características para formar um sistema muito complexo.
Mais informações: e-mails miyagawa@mit.edu; okumuram@usp.br; e vnobrega@usp.br [1], [2]
[1] Texto de Luiza Caires
[2] Publicação original: https://jornal.usp.br/ciencias/quando-desenvolvemos-a-capacidade-para-linguagem/
Como citar este texto: Jornal da USP. Quando desenvolvemos a capacidade para linguagem? Texto de Luiza Caires. Saense. https://saense.com.br/2025/04/quando-desenvolvemos-a-capacidade-para-linguagem/. Publicado em 14 de abril (2025).