Bruno Carneiro da Cunha
07/08/2017

A criação e decaimento de um quark “top” (“t”) e sua antipartícula (“t” com a barra em cima, ou “t-barra”). Sendo criados pela interação entre prótons e anti-prótons, os quarks se separam até eles próprios decairem em quarks tipo “bottom” e “charm” que em seguida geram mais partículas, e em léptons como o múon (“𝜇+”) e o neutrino associado (“𝜈𝜇”). Todos estes decaimentos são mediados pela força fraca, tendo como mensageiro o bóson vetorial massivo “W”. [1]
O que é, afinal, uma “partícula elementar”?

Este é, no âmago, uma construção teórica: partículas elementares são os tijolos básicos da construção de modelos como o modelo padrão: a partir delas são geradas todas excitações e transições que vemos, não só nos aceleradores como o LHC, mas também todo o resto do universo: explosões de supernovas, a queima de gás nos fogões e a fina camada de partículas de látex deixadas no asfalto pelos pneus dos automóveis.  Como modelar esses tipos de fenômenos a partir dos blocos fundamentais são problemas muito interessantes em neles próprios, mas há uma diferença de postura, ou ônus da prova: há uma percepção, na maioria das vezes muito bem fundamentada, que fenômenos como o colapso estelar ou na junção de prótons e nêutrons em um núcleo atômico são derivados, enquanto as partículas elementares são postuladas.

Em alguns casos, o status de elementar parece óbvio: ninguém hoje disputa que o elétron é um exemplo de partícula elementar. Com outros componentes do modelo padrão, a situação é um pouco menos clara para o público geral. Em um certo sentido, o nome “partícula”, como é usado pelos físicos, carrega um pouco de jargão.

Desde de Broglie, sabemos que as entidades que compõe o mundo atômico (nesse caso, subatômico) são duais: contém características de partículas e características ondulatórias. A imagem de “bola de gude” que vem à cabeça está longe da realidade: dada uma partícula com energia e momento bem definidos, associamos uma onda com frequência e comprimento de ondas bem definidos. No entanto, por decorrência do princípio da incerteza, uma vez que o momento esteja bem definido, a incerteza na posição é máxima. Para obter algo com alguma localização, temos que assumir alguma incerteza no momento, e assim na energia.

Do ponto de vista de mecânica pré-Einsteiniana, não há problema nenhum em assumir alguma incerteza na energia: a partícula não muda sua natureza, ou suas características por meio de processos dinâmicos. Quando Einstein propõe que massa é, na verdade, energia em repouso, ele  dá uma chave para que partículas mudem de identidade por meio de interações. Ao tentar localizar a partícula, sua incerteza no momento aumenta, e em algum momento a consequente incerteza na energia nos leva a considerar que aquela pequena região pode conter a energia depositada em uma única partícula ou em múltiplas. A escala de transição — chamada comprimento de Compton — é assim uma escala de comprimento associada à partícula — ou partícula-onda — a partir da qual começamos a ter problemas em definir explicitamente perguntas sobre sua identidade. Dentro daquela região, temos assim uma caixa preta: tudo que podemos dizer sobre ela são suas “quantidades conservadas”: energia, momento angular, carga elétrica, carga da força forte.

Uma partícula elementar é aquela que não tem nenhuma outra estrutura além destas.

Por comparação: um elétron é assim uma partícula elementar, todas as tentativas experimentais em encontrar estruturas além das citadas acima, como por exemplo uma estrutura de distribuição de carga elétrica resultaram em nada. Um próton, por outro lado tem uma estrutura não-trivial de distribuição de carga elétrica que pode ser mensurada experimentalmente, e modelada [2]. Não cabe assim, no critério.

Nesse momento, o leitor pode se perguntar o porquê de selecionarmos algumas características e não outras no rol de requerimentos necessários para uma dada partícula ser inclusa no rol de elementar. Em primeiro lugar, estas quantidades são escolhidas para “rotular” a partícula pois elas fazem sentido: são quantidades que se mantêm constantes com o passar do tempo. Mesmo em mecânica clássica (e tudo o que ela modela a contento), se define quantidades como a energia e o momento angular justamente por elas se manterem constantes em sistemas isolados. Em mecânica quântica estas propriedades também são usadas para rotular o sistema. Mesmo com o princípio da incerteza, ainda usamos energia — em repouso, ou massa — o momento angular intrínseco — às vezes chamado de “spin” — e o conjunto de cargas para diferenciar partículas elementares.

A segunda razão é mais sutil, e só foi realmente elucidada graças ao fantástico trabalho matemático de Emmy Noether no início do século XX. Emmy Noether é uma fantástica biografia, um libelo contra os preconceitos em ciências e um exemplo de superação [3]. Seu maior resultado, o teorema que leva seu nome, fundamentou grande parte da física do século XX. Está além desse espaço enunciar o teorema, mas sua mensagem é clara o suficiente para ser resumida em uma frase: essas grandezas conservadas como massa, momento angular e cargas nos leva a considerar simetrias fundamentais do universo. A cada simetria está associada uma lei de conservação, e podemos então entender as características usadas para determinar suficientemente uma partícula elementar como manifestações das simetrias que o próprio universo apresenta.

Enquanto coisas como energia e momento angular, associadas à translação temporal e rotações — as leis físicas não mudam com o tempo nem tem direção privilegiada — são concretas o suficiente, as cargas elétricas e de força forte (ou “cor”) são mais difíceis de visualizar, e são associadas com simetrias de calibre (ou “gauge”, no original inglês). Este é um ponto a que teremos que voltar no futuro, mas as simetrias de calibre não só nos fala sobre leis de conservação das partículas elementares, como também restringe a forma com que elas podem interagir. Na verdade, a listagem destas simetrias constitui a base fundamental do modelo padrão de partículas e muitas de suas predições são decorrências simples das listas de simetrias a que elas são submetidas. Partículas fundamentais são postuladas e definidas como uma lista de valores de quantidades conservadas associadas a essas simetrias. Partículas não-fundamentais apresentam mais estrutura, que pode — em princípio — ser derivada a partir de partículas fundamentais e suas interações.

Por causa destas interações, contudo, nem todas as partículas elementares são estáveis como o elétron. Como o quark “top”, por exemplo: quando consideramos apenas a força forte e eletromagnética, a partícula é estável. Porém, ela pode decair em outras partículas quando consideramos a força fraca. Ela não deixa de ter um caráter fundamental apenas porque decai em outras partículas: sua caracterização satisfaz os critérios colocados acima e de fato sua postulação acaba por resolver algumas inconsistências de linguagem dentro do modelo padrão. É claro, o julgamento final sobre sua existência vem do experimento: a sua detecção, em 1995 é listada como um dos grandes sucessos do modelo padrão.

O modelo para o nêutron: um estado ligado de quarks down e up, e glúons (cujo efeito aparece na animação). Os quarks apresentam carga elétrica e de força forte, que conspiram para o estado final eletricamente e cromodinamicamente neutro. Propriedades como a massa e o momento angular intrínseco (spin) são em princípio derivadas das propriedades das partículas elementares. [5]
Por outro lado, uma partícula composta pode ser decomposta entre partículas elementares, e suas propriedades podem ser em princípio calculadas (mesmo que via simulações computacionais). O próton, por exemplo, é um estado ligado de quarks “up” e “down” via força forte cuja massa e spin podem ser modelados computacionalmente. Por sinal, o próton calha de ser uma partícula composta que estável, não decai. Nenhuma outra partícula composta tem essa propriedade, e assim em geral, para partículas compostas, o tempo de vida médio e a listagem dos produtos de decaimento são testes mais restritivos do modelo padrão que propriamente a lista de propriedades acima. Por exemplo, a massa destas partículas (muitas vezes chamadas de ressonâncias) são propriedades mais sutis de serem confrontadas com os modelos teóricos, dependendo de detalhes que não necessariamente constituem violações.

Com isto, podemos fazer a distinção entre a “detecção de uma nova partícula”, fato corriqueiro que povoa a mídia [6]: na esmagadora maioria das vezes se trata de ressonâncias, estados ligados de partículas elementares. Com a descoberta do bóson de Higgs, a lista de partículas elementares do modelo padrão está completa. Seria um choque e uma surpresa — agradabilíssima — se o LHC nos presenteasse com uma nova partícula elementar.

[1] Crédito da imagem: Raeky (Own work) [Public domain], via Wikimedia Commons. URL: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Top_antitop_quark_event.svg.

[2] Veja http://www.physics.princeton.edu/~mcdonald/examples/EP/hofstadter_rmp_30_482_58.pdf para uma discussão pré-quarks. O assunto hoje requer conhecimento de cromodinâmica quântica para ser satisfatoriamente abordado.

[3] Mais sobre a vida de Emmy Noether em https://www.britannica.com/biography/Emmy-Noether.

[4] Um ótimo artigo de C Quigg sobre a descoberta do quark top em http://lutece.fnal.gov/Papers/PhysNews95.html.

[5] Crédito da imagem: Qashqaiilove (Own work) [CC BY-SA 3.0], via Wikimedia Commons. URL: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Neutron_QCD_Animation.gif.

[6] Por exemplo, https://home.cern/about/updates/2017/07/lhcb-announces-charming-new-particle.

Como citar este artigo: Bruno Carneiro da Cunha. Massa, spin e essas coisas. Saense. URL: http://www.saense.com.br/2017/08/massa-spin-e-essas-coisas/. Publicado em 07 de agosto (2017).

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