Tábata Bergonci
15/06/2016

A planta carnívora Vênus papa-moscas, que percebe e “memoriza” o número de toques da presa em sua armadilha. [1]
A planta carnívora Vênus papa-moscas, que percebe e “memoriza” o número de toques da presa em sua armadilha. [1]
Plantas são seres vivos interessantes, complexos como os animais e, tais como eles, espalhadas por todo o globo terrestre, mas possuem uma diferença clara: são sésseis, ou seja, não possuem a capacidade de locomoção (alguns animais, como as esponjas, também possuem essa característica). A impossibilidade de se locomover tornam as coisas mais complicadas: plantas precisam conseguir seus nutrientes do solo e, ao mesmo tempo, se defenderem de todo tipo de predador. Imagine, se você é uma planta fadada a viver enraizada, o quão assustador pode ser a aproximação de uma girafa? Pior, o que fazer quando um inseto está prestes a te triturar?

Há milhares de anos, as plantas e seus predadores (os herbívoros) vêm disputando uma corrida armamentista evolutiva, ou seja, a cada adaptação que uma espécie de planta desenvolve, há uma pressão para o desenvolvimento de novas características adaptativas na espécie que preda essa planta. Nessa luta para se defender, em pelo menos seis eventos evolutivos independentes (ou seja, sem ancestralidade) as plantas viraram o jogo e tornaram-se predadoras [2]. Exemplos não faltam: as droseras com seus tentáculos pegajosos, as plantas-jarro com suas piscinas convidativas e as Vênus papa-moscas com suas armadilhas rápidas para matar. Desde Darwin, os estudiosos vêm tentando desvendar os segredos dessas plantas, e os motivos que as teriam levado a mudar o cardápio. Este ano, dois trabalhos de diferentes grupos alemães fizeram descobertas incríveis sobre as Vênus papa-moscas: 1) Elas “memorizam” o número de toques em suas armadilhas, evitando falsos alarmes e 2) Elas adquiriram seu hábito carnívoro transformando seu sistema de defesa em armas ofensivas.

A Vênus papa-moscas tem folhas modificadas que parecem pequenas garras (ou bocas) conhecidas como armadilhas, com a parte interna contendo pelos sensíveis ao toque. Esses pelos permitem que a planta reconheça a presa por transdução de uma estimulação mecânica em um sinal elétrico, conhecido como potencial de ação (similar ao que neurônios disparam!). Essa primeira estimulação mecânico-elétrica faz com que a armadilha entre em modo de atenção. Em outras palavras, esse primeiro toque é memorizado, mas não fecha a armadilha. Se um segundo toque ocorrer, é gerado um segundo potencial de ação que fecha a armadilha em uma fração de segundos, bloqueando a saída da presa. Quando a presa tenta escapar, ela toca múltiplas vezes os sensores da armadilha, gerando vários potenciais de ação em cadeia [3].

Em janeiro desse ano, Jeniffer Böhm e colegas provaram que a Vênus papa-moscas é capaz de “contar” o número de potenciais de ação gerados e, assim, “memorizar” quantas vezes o inseto a tocou, evitando falsos alarmes [4]. Após o quinto toque, as armadilhas tornam-se completamente seladas e as glândulas existentes no interior delas passam a expressar genes que codificam enzimas digestivas. O estudo ainda mostrou que a estimulação mecânico-elétrica pode ser substituída pela administração direta de ácido jasmônico (um hormônio de plantas) na armadilha. Isso sugere que o número de sinais elétricos se traduz em um sinal químico que informa a planta o tamanho da presa e, aproximadamente, a quantidade de nutrientes que precisarão ser absorvidos [4].

Mas como é que esse impressionante mecanismo surgiu? Examinando os genes expressos desde o momento em que a planta sente o primeiro toque da presa, até quando a digestão ocorre, o grupo liderado pelo biofísico Rainer Hedrich e pelo bioinformata Jörg Schultz desvendou o mistério. Para entender o mecanismo, primeiro é preciso saber que quando um inseto ataca uma planta, ele libera enzimas que quebram as proteínas das folhas. Em uma planta não carnívora, o ataque de insetos faz com que o ácido jasmônico seja produzido em maior quantidade. O hormônio então induz a síntese de toxinas de defesa, que são liberadas pelas plantas para inibir as enzimas dos insetos. Como parte de seu contra-ataque, as plantas ainda secretam suas próprias enzimas, embora em pequenas quantidades, para destruir a quitina, que faz parte do exoesqueleto dos insetos [5].

Na Vênus papa-moscas, o ácido jasmônico desencadeia uma resposta voraz: milhares de glândulas secretam enzimas. O que em outras plantas é usado apenas para afastar inimigos, nas plantas carnívoras o inseto é completamente encharcado por essas enzimas até que isto leva a sua morte. Portanto, são os genes de defesa da planta que controlam os aspectos carnívoros dela. Ainda, o estudo confirmou o que já se assumia: as armadilhas são folhas geneticamente modificadas. Porém, as glândulas que promovem a digestão dos insetos não tem origem folear: os genes expressos nessas glândulas são os mesmos encontrados em raízes [6]! Para os pesquisadores, isso faz completamente sentido, já que essas plantas vivem em solos pobres de nutrientes e precisam capturar insetos para suprir suas necessidades nutricionais.

As plantas não copiaram os mecanismos existentes em carnívoros, elas utilizaram os genes que já possuíam e criaram um inteligente sistema de defesa e captação de nutrientes!

[1] Crédito da imagem: Furtwangl (Flickr) / Creative Commons (CC BY 2.0). URL: https://www.flickr.com/photos/furtwangl/3851840008/.

[2] AM Elisson and NJ Gotelli. Energetics and the evolution of carnivorous plants – Darwin’s ‘most wonderful plants in the world’. J Exp Bot 60, 19 (2009).

[3] M Escalante-Perez et al. Mechano-stimulation triggers turgors changes associated with trap closure in the Darwin plant Dionaea muscipula. Molecular Plant 7, 744 (2014).

[4] J Böhm et al. The Venus flytrap Dionaea muscipula counts prey-induced action potentials to induce sodium uptake. Current Biology 26, 286 (2016).

[5] A Mithöfer and W Boland. Plant defense against herbivores: chemical aspects. Ann Rev Plant Biol 63, 431 (2012).

[6] F Bemm et al. Venus flytrap carnivorous lifestyle builds on herbivore defense strategies. Genome Research 10.1101/gr.202200.115 (2016).

Como citar este artigo: Tábata Bergonci. Como plantas se tornam carnívoras? Saense. URL: http://www.saense.com.br/2016/06/como-plantas-se-tornam-carnivoras/. Publicado em 15 de junho (2016).

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