Agência FAPESP
14/05/2018
Um dos problemas do uso de agrotóxicos é o efeito que tais produtos acarretam em outros organismos, além daqueles para os quais foram projetados. “O crescente uso de agrotóxicos no mundo tem causado problemas ambientais, como a redução da população de organismos não alvo. Devido aos seus efeitos econômicos, a face mais notória desta história é a mortandade mundial de abelhas utilizadas comercialmente para a produção de mel e serviços de polinização”, disse Daniel Nicodemo, professor na Faculdade de Ciências Agrárias e Tecnológicas (FCAT) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Dracena.
Mas as abelhas melíferas não são os únicos insetos economicamente benéficos que sofrem pelo uso intensivo dos agrotóxicos na lavoura. “Outro inseto explorado pelo homem que também teve seu desempenho comprometido possivelmente devido à intoxicação por agrotóxicos é o bicho-da-seda”, disse Nicodemo.
Segundo ele, doenças, má nutrição e manejo inapropriado são fatores que costumam impactar negativamente o ciclo de desenvolvimento do bicho-da-seda (Bombyx mori), podendo mesmo levar à morte as populações manejadas pelos sericicultores, os criadores do bicho. No entanto, mesmo na ausência desses problemas, sericicultores brasileiros têm relatado a redução na produção de casulos tecidos pelas lagartas, a matéria-prima para a extração do fio da seda.
Em artigo publicado no Journal of Economic Entomology, Nicodemo, em parceria com o professor Fábio Ermínio Mingatto e alunos da FCAT investigaram o efeito do fungicida piraclostrobina, amplamente utilizado em culturas agrícolas, na bioenergética mitocondrial e na produção de casulos de bicho-da-seda. O trabalho teve apoio da FAPESP.
Os pesquisadores verificaram que a aplicação do fungicida nas amoreiras chega a triplicar a mortalidade das lagartas e reduzir sensivelmente o tamanho dos casulos que são tecidos pelas lagartas que sobrevivem, causando quebra na produção de seda.
A sericicultura, como é conhecido o processo de criação do bicho-da-seda, é realizada por pequenos agricultores que cultivam amoreiras para alimentar as lagartas com suas folhas, o único alimento desses insetos. O modelo de negócio inicia na indústria têxtil, onde as mariposas da espécie Bombyx mori cruzam produzindo ovos. Após a eclosão, as lagartas começam a ser alimentadas com folhas de amoreira, sendo criadas pelos sericicultores a partir da terceira idade.
“Nas propriedades rurais, as lagartas passam cerca de 20 dias sendo alimentadas com ramos de amoreira trazidos do campo. Ao fim do período, param de comer e começam a tecer os casulos, processo que dura três dias. Elas secretam uma substância gelatinosa que em contato com o ar se solidifica, transformando-se em fio de seda. Cada casulo é composto por um único fio, que costuma ter até 1.500 metros de comprimento,” disse Nicodemo.
Três dias após o encasulamento, as lagartas estão prontas para sofrer a metamorfose que as transformará em crisálidas e, em seguida, em mariposas. É nesse momento que os casulos são coletados pelos sericicultores e entregues à indústria, onde as crisálidas são mortas por exposição a altas temperaturas antes do rompimento dos casulos pelas mariposas, para evitar danos irremediáveis no fio. Em seguida, durante o cozimento dos casulos, a proteína que cola o fio do casulo é dissolvida na água, soltando o fio que então é enrolado em carretéis, junto de outros fios de outros casulos.
No Brasil, a grande maioria dos sericicultores está concentrada no norte do Paraná, mas também há produtores no oeste do Estado de São Paulo e no Mato Grosso do Sul. Ou seja, são pequenas propriedades isoladas em meio a monoculturas de cana-de-açúcar, soja ou milho, por exemplo, onde o uso de agrotóxicos é intensivo.
“Essa é uma das possíveis causas das quebras de safra dos sericicultores”, disse Nicodemo. Quando aplicado sobre as monoculturas o agrotóxico, seja ele um inseticida, herbicida ou fungicida, pode acabar sendo carregado pelo vento na direção das propriedades vizinhas ao campo de cultivo, onde podem existir plantações de amoreira.
“A produção do fio da seda depende principalmente da qualidade do alimento que é fornecido às lagartas. No entanto, a quantidade de folhas produzidas por cada planta é inversamente proporcional à sua qualidade nutricional. Portanto, preconiza-se que os ramos de amoreira sejam oferecidos às lagartas 90 dias após o último corte do ramo, mesmo com diminuição significativa da qualidade nutricional das folhas nas últimas semanas de desenvolvimento das plantas”, explicou Nicodemo.
As propriedades dos sericicultores têm, em média, 3 hectares, todos plantados com amoreiras. Ao dividir o terreno em três, a poda dos ramos é feita mensalmente, 1 hectare de cada vez. Assim, as amoreiras podadas durante janeiro, por exemplo, terão até o final de março para produzir novas folhas, que só serão colhidas em abril, portanto 90 dias após a última poda.
Ocorre que as folhas atingem o maior valor nutricional por volta dos 60 dias da poda. Já aos 90 dias, o volume de folhas é bem maior, porém sua qualidade nutricional é menor. O uso da piraclostrobina serviria justamente para fazer com que, após 90 dias e na hora da poda, as amoreiras estivessem com quantidade máxima de folhas e elevado valor nutricional. Isso seria importante, pois é justamente dos nutrientes das folhas ingeridas que as lagartas irão extrair os nutrientes necessários para produzir casulos. Quanto mais folhas com maior teor proteico, melhor será o desenvolvimento das lagartas e, consequentemente, melhor a qualidade e o peso dos casulos.
“A piraclostrobina é um fungicida utilizado para controlar fungos e ainda retarda a senescência vegetal, conferindo maior resistência ao estresse oxidativo em muitas culturas. Tais efeitos poderiam contribuir para a obtenção de folhas de amoreira de melhor qualidade e, sendo assim, os sericicultores maximizariam a produção qualitativa dessas folhas na hora da poda. O objetivo de nossa pesquisa foi verificar se o tratamento das folhas de amoreira com piraclostrobina contribuiria para melhorar a produção de casulos. Os resultados obtidos foram opostos ao esperado”, disse Nicodemo.
Há diversos fungicidas comerciais com piraclostrobina em sua fórmula, em associação ou não com outros agrotóxicos. Um fungicida comercial unicamente à base de piraclostrobina foi o eleito para o experimento em campo.
Inibidor da cadeia respiratória
A metodologia do trabalho foi a seguinte: foi utilizada uma cultura de amoreira tratada com piraclostrobina (0, 100, 200 e 300 gramas por hectare de ingrediente ativo), aplicada em solução de 1 mil litros por hectare, após 60 e 75 dias de cada poda de ramos de amoreira. Após cada poda, foram analisados o teor de clorofila nas folhas de amoreira, a produção foliar e seus teores de macro e micronutrientes.
Para os testes, folhas de amoreira foram oferecidas às lagartas do bicho-da-seda 15 e 30 dias após a aplicação do fungicida. Avaliou-se a bioenergética mitocondrial in vitro e in vivo de mitocôndrias da cabeça e intestinos das lagartas, bem como o consumo de folhas e a taxa de mortalidade das lagartas.
Como a mortalidade das lagartas foi muito grande quando alimentadas com folhas tratadas com piraclostrobina apenas 15 dias antes do período de alimentação, os testes foram continuados utilizando-se apenas plantas tratadas 30 dias antes do fornecimento das folhas às lagartas. Nesse caso, verificou-se que com doses de 50 micromolar (in vitro) e 200 gramas por hectare (in vivo), a piraclostrobina inibiu o consumo de oxigênio, dissipou o potencial de membrana e inibiu a síntese de ATP (substância que fornece energia para o funcionamento das células) nas mitocôndrias dos bichos-da-seda.
“A piraclostrobina atuou como inibidor da cadeia respiratória, afetando a bioenergética mitocondrial. Portanto, verificou-se que o principal efeito esperado para fungos também ocorre em lagartas do bicho-da-seda”, disse Nicodemo.
A taxa de mortalidade foi estatisticamente semelhante entre os grupos que receberam folhas de plantas tratadas ou não tratadas com piraclostrobina 60 dias após a poda. No entanto, a taxa de mortalidade foi 30,7% maior no grupo de lagartas que receberam folhas tratadas com a maior dose de piraclostrobina em relação ao controle, evidenciando-se um efeito dose dependente.
Ao fim do período de alimentação, o manejo das larvas foi realizado para permitir que as lagartas tecessem seus casulos. Cem casulos foram pesados por grupo experimental, que foram posteriormente cortados para remover as pupas do bicho-da-seda. No final do processo, as cascas dos casulos foram pesadas separadamente.
Verificou-se que a presença do fungicida não interferiu no consumo alimentar dos bichos-da-seda, mas afetou negativamente o peso dos casulos a partir da dose de 100 gramas de piraclostrobina por hectare. O peso dos casulos (-10%) e das cascas do casulo (-7%) foi menor nas lagartas alimentadas com piraclostrobina em relação às lagartas alimentadas com folhas que não foram tratadas com o fungicida. Não houve diferença na qualidade dos casulos devido à dose de piraclostrobina utilizada.
De acordo com Nicodemo, a letalidade de qualquer substância é uma variável importante para determinar o impacto direto na capacidade de indivíduos de uma dada espécie de permanecer vivos devido à exposição a um determinado produto e sua dose, concentração ou ambos.
“No entanto, a não letalidade não significa que a substância não seja prejudicial, pois pode haver danos sofridos de várias maneiras quando ainda estão vivos. De acordo com o presente estudo, embora a mortalidade das lagartas fosse relativamente baixa quando foram alimentadas com folhas da amoreira tratadas com piraclostrobina 30 dias antes do fornecimento do alimento, ocorreram prejuízos na bioenergética das mitocôndrias isoladas da cabeça e do intestino das lagartas, influenciando negativamente a produção de energia dessas organelas e a produção de casulos”, disse Nicodemo.
O artigo Pyraclostrobin Impairs Energetic Mitochondrial Metabolism and Productive Performance of Silkworm (Lepidoptera: Bombycidae) Caterpillars (doi: https://doi.org/10.1093/jee/toy060), de Daniel Nicodemo, Fábio Ermínio Mingatto, Amanda de Carvalho, Paulo Francisco Veiga Bizerra, Marco Aurélio Tavares, Kamila Vilas Boas Balieira e William Cesar Bellini, está publicado em https://academic.oup.com/jee/advance-article/doi/10.1093/jee/toy060/4925588. [2]
[1] Crédito da imagem: Lilly Mreal name Małgorzata Miłaszewska (CC BY-SA 3.0), from Wikimedia Commons. https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Bombyx_mori_001.JPG.
[2] Esta notícia científica foi escrita por Peter Moon.
Como citar esta notícia científica: Agência FAPESP. Fungicida prejudica a produção de seda. Texto de Peter Moon. Saense. http://www.saense.com.br/2018/05/fungicida-prejudica-a-producao-de-seda/. Publicado em 14 de maio (2018).