Jornal da USP
01/10/2020

A perseguição começa quando os governos tomam conhecimento da sexualidade não normativa dos indivíduos. Nos países pesquisados, é comum a denúncia partir da própria família da pessoa, relata estudo – Foto: Sammy-Williams / Pixabay – Fotomontagem Jornal da USP

Ser homossexual é crime em 70 países. E, em nove deles, a punição é a morte. A perseguição motiva milhares de pessoas com sexualidades não normativas a fugirem de seus países em busca do direito de uma existência em sua totalidade. O Brasil é um dos 33 Estados-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) que aceitam receber imigrantes forçados perseguidos em razão da orientação sexual. Ao longo de seis anos, o professor Mário Luis Villarruel da Silva acompanhou o cotidiano de centenas dessas pessoas  na cidade de São Paulo. O pesquisador constatou que, embora o Estado admita os imigrantes forçados em razão de perseguição sexual, a burocracia enfrentada por eles para conseguir a permanência legal por aqui ainda é um grande problema.

Os dados são da tese de doutorado Narrativas fractais e tramas legais na experiência migratória forçada de muçulmanos com sexualidades dissidentes na cidade de São Paulo. A pesquisa, realizada entre 2014 e 2019, foi centrada em pessoas vindas de quatro países que professam o islamismo como religião oficial:  Irã, Gana, Síria e Líbano. O método de estudo usado foi a etnografia, no qual o pesquisador acompanha o cotidiano das pessoas pelo tempo que for possível.

Apenas o público masculino adulto foi estudado porque o pesquisador não conseguiu contato com mulheres. A escolha do recorte de países foi feita depois de ele notar, em São Paulo, um grande fluxo de solicitantes de refúgio vindos de países islâmicos, principalmente em razão de perseguição sexual, na zona leste da cidade.

A ONU recomenda que os países aceitem os refugiados sexuais, mas é apenas uma recomendação, não existem dispositivos que obriguem Estados a aceitá-los. A Convenção de 1951 do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) prevê que os países devem aceitar estrangeiros perseguidos por pertencerem a um grupo social minoritário.

Dos Estados que assinaram o documento, 33 deles reconhecem que os LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, intersexuais) podem ser considerados como pertencentes a um ‘grupo social’ e, por isso, aceitam receber pessoas perseguidas em virtude da orientação sexual. O Brasil faz parte do grupo que aceita.

A perseguição

“Na Síria, é costume que o Estado crie perfis em sites de relacionamento para poder identificar e caçar os indivíduos”, conta o pesquisador – Foto: Gerd Altmann / Pixabay

A perseguição começa quando os governos tomam conhecimento da sexualidade não normativa dos indivíduos. Nos países pesquisados, é comum a denúncia partir da própria família da pessoa. O governo também se organiza para procurar esse grupos. “Na Síria, é costume que o Estado crie perfis em sites de relacionamento para poder identificar e caçar os indivíduos”, conta o pesquisador ao Jornal da USP. 

Depois de descobertos, sair do país torna-se uma questão de sobrevivência. Mesmo que nem todos os países adotem a pena de morte como punição, existem milícias formadas com a intenção de rastrear homens e mulheres “não conformes”. 

“Desse contexto, Youssef se viu obrigado a empreender fuga, apesar de sua família ser sabedora de sua sexualidade o controle estatal ainda foi maior. Nascido em Damasco no ano de 1983, formou-se em Filosofia e Sociologia. Antes de se ver obrigado a abandonar um país que, antes foi quem o abandonou, atuava junto ao Unicef”, conta o pesquisador sobre Youssef, um dos muitos imigrantes forçados pela perseguição em razão da orientação sexual. 

Nesses países, as minorias sexuais são vítimas de discriminação generalizada. Existe violência física e psicológica que, em muito casos, conta com a conivência dos Estados. Na ausência de um governo que exerça devidamente a função de proteger as pessoas, a fuga acaba se tornando a única opção e, a partir daí, a pessoa já se enquadra na categoria de imigrante forçado por perseguição sexual.

“O refugiado que foge em razão de sua sexualidade é duplamente refugiado” conta o professor.  Isso porque as minorias sexuais são perseguidas pelo seu próprio povo até mesmo nos campos de refugiados.

A chegada ao Brasil

Para professor, “o refugiado que foge em razão de sua sexualidade é duplamente refugiado”, já que até nos campos feitos para recebê-los, minorias são perseguidas – Fotomontagem Jornal da USP

Nem todos os imigrantes forçados são refugiados, isso porque o refúgio ou asilo é um conceito jurídico, é preciso passar pelos devidos ritos legais para ser considerado como tal. No Brasil, quando um requerente de refúgio chega, ele é recebido pelo Comitê Nacional para Refugiados (Conare) e já recebe CPF e Carteira de trabalho antes de passar pela entrevista que decidirá o recebimento do status de refugiado.

O Brasil é rota de passagem para a grande maioria dos imigrantes forçados. “A intenção é ir para a América do Norte, mas a maioria acaba ficando por perceber a receptividade das pessoas em São Paulo”, diz o pesquisador. A cidade tem a maior parada gay do mundo: em 2019 o evento contou com mais de 3 milhões de pessoas, é um ambiente mais acolhedor. Há também aqueles que já têm certo conhecimento sobre o País e optam por ir para a cidade de São Paulo pelo reconhecimento internacional como polo econômico. 

Grande número de imigrantes forçados não porta documentos, visto que a fuga é uma atitude limítrofe, em momento de emergência. Por isso, o Estado precisa checar a veracidade das afirmações feitas pelos requerentes e certificar-se de que a pessoa precisou sair de seu país. Em geral, a confirmação é bem simples para os que fogem em razão de perseguição política ou guerras, basta a confirmação de órgãos internacionais para saber se há conflito na região de origem do imigrante.

No caso dos perseguidos sexuais o processo é mais complexo. Não existem meios para a comprovação da sexualidade de alguém. Então, o processo de checagem ocorre por meio de uma entrevista, com os agentes do Comitê Nacional para Refugiados (Conare), que  decide se a pessoa terá o direito ao refúgio. Entretanto, o pesquisador afirma que a conversa é baseada em uma visão estereotipada sobre a homossexualidade.

“Eles perguntavam coisas como: ‘você conhece a Beyoncé?’ [cantora e compositora pop norte-americana], ou outros absurdos apoiados em visões estigmatizadas sobre o universo pop e a homossexualidade no Ocidente”, conta Mário sobre o que ouviu de alguns entrevistados.

Outros solicitantes de refúgio disseram que os agentes perguntaram se eles eram ativos ou passivos durante a relação sexual.

São referências inexistentes no país de onde eles vêm e isso dificulta o processo para a aceitação do pedido de refúgio. A grande maioria dos homossexuais que fogem o faz por preservação à vida, não por um senso de justiça social compartilhado por um grande grupo de pessoas. 

A decisão sobre a permanência cabe ao agente do Conare que faz a entrevista. É possível recorrer, o problema é que o processo corre no ritmo da justiça brasileira. Se a pessoa é recusada na conversa com o agente, ela perde a carteira de trabalho e o CPF até que a justiça reveja sua permanência no País. “Assim, os imigrantes percebem que é melhor se valer de outras motivações na hora de ficar cara a cara com o agente do Conare”, diz o pesquisador.

Devido ao procedimento, é muito difícil para o imigrante forçado conseguir o refúgio no Brasil usando a perseguição sexual como motivação. Nenhuma das pessoas com quem o professor conviveu conseguiu o direito. Uma delas ainda estava aguardando quando a pesquisa acabou, em 2019. É mais prático usar outra motivação para pedir o refúgio — como guerras, por exemplo — e não mencionar a perseguição sexual na hora da entrevista, assim, há mais chances de conseguir o direito legal de permanecer no Brasil. Os pesquisados obtiveram o direito dessa forma ou ainda aguardam a decisão.

O trabalho contou com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Mais informações: e-mail mariovillarruel@alumni.usp.br, com Mário Luis Villarruel da Silva. [1]

[1] Texto de Beatriz Azevedo.

Como citar esta notícia: Jornal da USP. Estrangeiros perseguidos por orientação sexual buscam refúgio no Brasil, mas enfrentam problemas.  Texto de Beatriz Azevedo. Saense. https://saense.com.br/2020/10/estrangeiros-perseguidos-por-orientacao-sexual-buscam-refugio-no-brasil-mas-enfrentam-problemas/. Publicado em 01 de outubro (2020).

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