Fiocruz
27/04/2023

A mensagem da floresta
A assembleia no Lago Caracaranã chamou atenção para a necessidade de retomar a demarcação das terras indígenas. — Foto: Eduardo de Oliveira

“Não queremos deixar nossa Terra Mãe morrer. É ela quem nos sustenta e nos dá vida.” As palavras do xamã e líder Yanomami Davi Kopenawa ecoam às margens do Lago Caracaranã, na Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, como se fossem o canto dos espíritos ancestrais que os povos originários da região dizem habitar nas águas do lago. É também uma mensagem potente capaz de unir os cerca de 2.500 indígenas presentes na 52ª Assembleia dos Povos Indígenas de Roraima em defesa da proteção territorial e da natureza.

O maior encontro político dos povos originários do estado aconteceu, entre 11 e 14 de março, em meio à grave crise sanitária vivida pelos Yanomami depois da invasão de seu território pelo garimpo — o que exigiu a decretação de uma Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin), em 20 de janeiro [Leia aqui a matéria sobre a Emergência]. Mais do que nunca, esse é um momento que exige a união dos povos originários para garantir a retirada dos invasores dos territórios, assim como a retomada da demarcação e da regularização das terras indígenas, como destacaram as lideranças presentes no encontro.

A assembleia reuniu diferentes etnias do estado, como Macuxi, Wapichana, Taurepang, Wai Wai, Ingaricó, Patamona, Ye’kuana, Sapará e Yanomami. Ocorrido às margens do Lago Caracaranã, um santuário ecológico pertencente à TI Raposa Serra do Sol, o evento, organizado pelo Conselho Indígena de Roraima (CIR), recebeu a visita do presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, em 13 de março, ao lado das ministras dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, e da Saúde, Nísia Trindade.

A equipe de Radis acompanhou a assembleia durante dois dias (12 e 13/3) e resume o que foi discutido no encontro, que se encerrou com o simbolismo de uma carta entregue ao presidente Lula exigindo a completa retirada dos garimpeiros da Terra Indígena Yanomami (TIY).

A voz contra o garimpo

O lago está em silêncio enquanto o xamã fala. Olhos atentos de indígenas vindos de diferentes cantos de Roraima e de outros estados contemplam o discurso emocionado do líder Yanomami, como um clamor deste povo amazônico conhecido por sustentar o céu. “O garimpo poluiu os nossos rios da Terra Yanomami. É por isso que peixe não tem mais. Mercúrio é veneno. Traz doença”, adverte Davi Kopenawa.

É possível dizer quando começou a tragédia dos Yanomami? “Eles [os invasores] chegaram há 523 anos e vieram nos matando, e assim repetiram e repetiram”, afirma, apontando que o descaso do último governo com os povos indígenas repete uma história de genocídio no Brasil, testemunhada desde o início da colonização. “Cresceu o número de garimpeiros e de invasores, com apoio de fazendeiros, deputados, senadores e do governador de Roraima”, afirma.

Os rios Palimiú, Mucajaí, Apiaú e Catrimani cortam a Terra Yanomami e hoje estão contaminados pelo mercúrio, com impactos incalculáveis na alimentação, na vida cotidiana e na espiritualidade dos indígenas que ali vivem. “Estragaram onde nascem os nossos rios, onde bebemos água e tomamos banho”. Kopenawa destaca que a invasão do garimpo ocorreu com a conivência do ex-presidente Jair Bolsonaro. “Garimpeiros que vieram de fora de Boa Vista entraram [em nosso território] e o Bolsonaro estava junto com eles [com apoio]”, declara.

“Abriram a porta para entrar os garimpeiros”. Em Surucucu, conta, houve também conivência dos militares: “Não fizeram nada”. Além da contaminação dos rios, a presença do garimpo levou à desestruturação do modo de vida dos indígenas, com a introdução de doenças como a malária, bem como da prostituição, do alcoolismo e da criminalidade. “Os parentes que moram perto do garimpo acabaram se acostumando, os garimpeiros deram comida para eles e bebida também. Agora eles ficaram doentes”, relata.

A morte de 570 crianças Yanomami, durante o governo Bolsonaro, é a face mais perversa da invasão do território, mas não a única. “Temos que pedir a Lula que retire os garimpeiros da Terra Yanomami. Se não tivermos a Terra Planeta, onde nós vamos comer e viver?”, indaga o xamã.

A cura das águas

Júnior Hekurari Yanomami tem usado, repetidas vezes, o simbolismo das águas para invocar a ideia de que, com os rios poluídos e sem peixe, não há saúde. “Precisamos de apoio para curar a água”, declara à Radis o presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana (Condisi-YY). “A água está contaminada. Os Yanomami precisam das águas para tomar. Sem isso, vão continuar as crianças adoecendo, com verminose, diarreia, malária. Precisamos que as comunidades sejam assistidas”, completa.

O presidente do Condisi-YY — órgão do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena responsável por fiscalizar, debater e apresentar políticas para o fortalecimento da saúde, na área abrangida por um Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) — reconhece que a decretação de uma Emergência Sanitária na TIY foi um passo importante, “mas ainda está longe de resolver [os problemas]”. “Toda essa força-tarefa que está trabalhando descobre grandes buracos deixados pelo governo passado”, constata.

“A nossa preocupação é a retirada total dos garimpeiros da Terra Yanomami. A luta continua: 70% dos garimpeiros saíram voluntariamente, mas muitas localidades ainda têm a presença deles”, diz. Por isso, as lideranças indígenas presentes na assembleia redigiram uma carta entregue ao presidente Lula que exige a garantia de proteção territorial. O documento pede a retirada total dos garimpeiros e destaca a necessidade de promover mais saúde nos territórios.

A carta e o presidente

“A retirada dos garimpeiros ilegais da TIY deve ser prioridade e não mais adiada, e pedimos que Ministério da Justiça e Polícia Federal atuem para responsabilizar os envolvidos, entres eles o ex-presidente Bolsonaro e o governador de Roraima, Antonio Denarium”, afirma a carta final do encontro [Leia: https://bit.ly/carta52agpi]. E completa: “Somos contra a anistia aos garimpeiros”.

No discurso aos milhares de indígenas presentes na assembleia, Lula se comprometeu com a retirada total dos garimpeiros da Terra Yanomami. Também ressaltou a necessidade da retomada das demarcações. “A gente precisa demarcá-las [as Terras Indígenas] logo, antes que as pessoas se apoderem delas”, destacou.

O presidente ressaltou que as demarcações vão permitir que os indígenas “possam aumentar a sua capacidade de produção e ajudar a gente a cuidar daquilo que passa a ser um bem precioso para nós, que é a necessidade de cuidar do clima”. “Se a gente não cuidar do clima, a humanidade vai desaparecer por irresponsabilidade”, completou.

Lula retornou à TI Raposa Serra do Sol após treze anos. Em seu primeiro mandato, ainda em 2005, o presidente foi o responsável por homologar o território e ordenou a retirada de fazendeiros, depois de décadas de litígios e conflitos. “Queremos mostrar que esse mundo pode produzir sem precisar derrubar mais nenhuma árvore da Amazônia”, declarou, em discurso.

O lago sagrado

Um vento forte sopra sobre o lago, como se fosse a voz das águas. É hora do almoço e as caravanas dos diferentes povos formam filas para distribuir as refeições. Em um exemplo de partilha comunitária, ninguém fica sem comida — nem mesmo os repórteres de Radis que vieram de Boa Vista para a cobertura do evento. O Centro Regional Lago Caracaranã fica a 180 km da capital de Roraima, no município de Normandia, quase na fronteira do Brasil com a Guiana.

Assim que termina o almoço, começa o tempo da alegria: crianças, mulheres e homens mergulham nas águas do lago, alguns com a própria roupa do corpo, sorrindo e brincando. A cena revela a conexão dos indígenas com a força das águas. Antes da demarcação, o Lago Caracaranã era explorado pelo turismo privado — hoje o local é administrado pelos indígenas e está aberto à visitação ecológica, em parâmetros que respeitam as tradições originárias.

Logo, o grande conselho dos povos é retomado — e todos voltam à tenda principal. Quem fala então é Edinho Macuxi, coordenador do CIR, que destaca o fato de que Roraima é referência nacional na luta dos povos originários. São 32 terras indígenas no estado e o contexto recente mostrou que a união dos diversos povos da região é essencial para garantir a sua sobrevivência. “Estamos apoiando os parentes Yanomami, as comunidades que estão em estado grave, pois foram invadidas pelo garimpo”, aponta, citando, como uma das ações, a distribuição de cestas básicas.

Não há tempo para descanso: as lideranças indígenas seguem atentas à pressão de setores do governo e da sociedade que defendem a construção de empreendimentos nos territórios. Um exemplo é o projeto da Usina Hidrelétrica (UH) na Cachoeira do Bem Querer, no Rio Branco, que está em discussão há mais de uma década e pode impactar nove terras indígenas. “Nós temos alternativas renováveis para contrapor a esse modelo”, pontua, em defesa de um modelo baseado em fontes renováveis, que utilize a energia do sol e do vento.

As discussões testemunhadas pelo Lago Caracaranã, ao longo dos dias de assembleia, destacam que somente a proteção dos territórios pode garantir a preservação da floresta e das vidas indígenas. [1], [2]

[1] Texto de Luiz Felipe Stevanim e Adriano De Lavor

[2] Publicação original: https://radis.ensp.fiocruz.br/reportagem/povos-indigenas/a-mensagem-da-floresta/

Como citar este texto: Fiocruz. A mensagem da floresta.  Texto de Luiz Felipe Stevanim e Adriano De Lavor. Saense. https://saense.com.br/2023/04/a-mensagem-da-floresta/. Publicado em 27 de abril (2023).

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