Josué Modesto dos Passos Subrinho
01/10/2024

Imagem gerada com IA

A comunidade que acompanha com maior interesse o desempenho da Educação Básica sergipana recebeu neste ano de 2024 algumas notícias desalentadoras: os resultados do Sistema de Avaliação da Educação Básica, referentes ao ano de 2023, expressos no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) registraram uma piora relativa do conjunto das nossas redes públicas quando comparadas com as congêneres de outros estados. Assim sendo, no Ensino Médio o IDEB regrediu de 3,9, em 2021, para 3,7, em 2023, e nossa posição relativa de 12º lugar para 18º lugar entre as unidades da Federação. No Anos Finais do Ensino Fundamental, o IDEB regrediu de 4,4, em 2021, para 4,0, em 2023, e nossa posição relativa de 22º lugar para o 25º lugar.  Finalmente, nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, o IDEB cresceu de 4,8, em 2021, para 4,9, em 2023, porém nossa posição relativa se manteve em 23º lugar ente as 27 unidades federadas do Brasil.

Outro resultado desapontador veio com a divulgação do 1º Relatório de Resultados do Indicador Criança Alfabetizada no qual Sergipe ocupou o último lugar entre as 24 unidades da Federação que tiveram resultados apurados. Neste caso, apenas 31% das crianças matriculadas em escolas públicas sergipanas foram consideradas alfabetizadas, no segundo ano do Ensino Fundamental, enquanto a média nacional foi de 56% e o estado com melhor resultado, o Ceará, apresentou 85% das crianças alfabetizadas.

Não obstante esses resultados preocupantes, que no nosso entender deveriam estar mobilizando fortemente todos os setores comprometidos com o desenvolvimento socioeconômico do estado, estamos passando por mudanças estruturais que geram um novo potencial de melhoria dos resultados educacionais de nossas redes públicas. As mudanças são: a) melhoria no fluxo dos estudantes matriculados na Educação Básica; b) ampliação do atendimento na Educação Infantil e Ensino Médio c) recursos novos aportados nas redes municipais, principalmente, nas que dispõem de menores recursos; d) implementação das reformas educacionais aprovadas em 2019; e) generalização da seleção de diretores escolares baseada em mérito e desempenho.

Examinaremos, em uma série de artigos, cada uma das mudanças e o impacto que podem ter na eficiência, eficácia e efetividade da educação pública sergipana. Vejamos o fluxo de estudantes matriculados na Educação Básica Sergipana.

Os três gráficos expostos a seguir representam a matrícula na Educação Básica Sergipana, nos anos de 2013, 2018 e 2023. No eixo horizontal está ordenada a sequência de anos-séries escolares, 1F representa o primeiro ano do Ensino Fundamental e assim sucessivamente até 9F, nono ano do Ensino Fundamental, seguido de 1M, representando primeira série do Ensino Médio até 3M, terceira série do Ensino Médio. No Eixo vertical está ordenado o total da matrícula, por ano-série, no ano civil indicado pelo gráfico. Em cada um os gráficos, a linha inferior, na cor vermelha, representa a matrícula na rede privada e a linha superior, na cor azul, representa a matrícula nas redes públicas (estado e municípios). [1]

O(a) leitor(a) deve ter percebido a marcante diferença de forma das linhas nos três gráficos. A linha vermelha, representando a matrícula na rede privada, se assemelha a um segmento de reta ligeiramente inclinado para a direita, enquanto a linha azul, representando a matrícula nas redes públicas, se assemelha a uma sequência de morros e vales. Nos três gráficos o pico mais elevado, representando a matrícula máxima, é o da intersecção com o ponto 6F, no eixo horizontal.

Vejamos a linha vermelha, representando a matrícula na rede privada. Em 2013, estavam matriculados 8.622 estudantes no primeiro ano do Ensino Fundamental e 4.206 na terceira série do Ensino Médio. Como explicar essa redução da matrícula na rede privada com o passar dos anos-série escolares? Sabendo-se que em Sergipe, como no Brasil como um todo, estamos passando por uma transição demográfica com persistente redução na taxa de natalidade, o esperado seria um crescimento na matrícula nos últimos anos da Educação Básica, visto que no espaço de uma década entre os primeiros anos do Ensino Fundamental e as séries do Ensino Médio, o número de nascimentos foi decaindo. Dito de outra forma, a geração que hoje está frequentando o Ensino Médio é mais numerosa do que a que hoje frequenta os primeiros anos do Ensino Fundamental.

Há um outro fator que deveria levar ao aumento da matrícula com o transcorrer dos anos escolares: a reprovação. As taxas de aprovação nas escolas privadas são muito superiores às das escolas públicas, mas nunca chegaram, em Sergipe, a 100%. Em 2013, por exemplo, a taxa de aprovação nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental foi de 97,6%, nos Anos Finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio foi de 91,8%. Nos anos mais recentes, essas taxas de aprovação estão se aproximando dos 100%. [2]

As baixas taxas de reprovação praticadas nas escolas privadas levariam a um crescimento suave na linha representando as matrículas. Como a soma da transição demográfica com a pequena taxa de reprovação não conseguiu aumentar a matrícula, a conclusão inelutável, já que há uma tendência de declínio da matrícula na rede privada, conforme o avanço nos anos de escolarização, constatada em todos os três anos expostos nos gráficos, é que há uma migração de estudantes anteriormente matriculados nas escolas privadas para as escolas públicas em Sergipe. Mas o ponto que queremos ressaltar é o que podemos ver claramente comparando as duas linhas, a que representa a matrícula na rede privada tem um aspecto retilíneo, não há formação abrupta de “morros” ou “vales” expressando a regularidade das trajetórias escolares vivenciada pela maioria dos estudantes deste segmento social.

O contraste com a linha que representa a matrícula nas redes públicas é marcante. Vejamos o gráfico 1, O número de alunos matriculados cresce significativamente conforme avançamos do primeiro para o terceiro ano do Ensino Fundamental. Ainda que possa ter havido uma migração de estudantes matriculados nas escolas privadas, a redução na matrícula nessas escolas foi muito pequena para explicar, o expressivo crescimento da matrícula na rede pública entre o primeiro e o terceiro ano do Ensino Fundamental. A razão principal é a elevada taxa de reprovação praticada em nossas escolas públicas que vai inchando a matrícula e exigindo a criação de turmas adicionais para abrigar simultaneamente os estudantes que seguem o fluxo regular e os que são reprovados.  Entre o quarto e o quinto Anos do Ensino Fundamental ocorre um declínio na matrícula, indicando um abandono da escola. Finalmente, no sexto ano, que marca o início dos Anos Finais do Ensino Fundamental, o salto no percentual de reprovação, leva ao máximo da matrícula em todos os anos-série da Educação Básica.

Vamos apresentar os percentuais de reprovação, na rede pública sergipana, no ano de 2013, para explicar o inchaço da matrícula, no transcorrer dos anos escolares.

Os dados do Quadro 1 demonstram a prevalência entre nós da chamada “pedagogia da repetência” [3]. Em nossas escolas públicas ainda é corrente a concepção de que a repetência de ano escolar é uma forma de estimular o estudante a ter melhor desempenho na aprendizagem. Os elevados percentuais de repetência acompanham a sequência dos anos-séries escolares, inflam a matrícula e multiplicam as turmas. Um efeito colateral é o desalento de parte dos estudantes e de seus familiares, provocando o abandono escolar que ao contrabalançar o efeito acumulado das repetências, em alguns anos-séries provocam a redução da matrícula em relação aos anos-série anteriores, conforme pode ser visto nos gráficos.

As linhas azuis dos gráficos 2 e 3 vão apresentando um aspecto mais achatado dos “morros e vales”. A diferença percentual entre a matrícula no primeiro ano do Ensino Fundamental e o sexto ano do Ensino Fundamental, em 2013, é de 73% e poderia ser maior se parte dos estudantes não tivesse abandonado a escola. Quando observamos a matrícula no nono ano do Ensino Fundamental, ela está no mesmo patamar numérico do primeiro ano do Ensino Fundamental, mas não representa a mesma turma que ingressou no Ensino Fundamental há oito anos. Esta é uma turma mesclada dos poucos alunos que fizeram uma trajetória regular, sem reprovações e ou abandonos e, portanto, que ingressaram no Ensino Fundamental há oito anos com outros com nove, dez e mais anos de acesso ao Ensino Fundamental.

Há um longo e persistente movimento de redução das taxas de reprovação nas redes públicas sergipanas, como podemos observar no Quadro 2.

Comparando-se os dados do Quadro 1 com os dados do Quadro 2 podemos constatar que em um intervalo de dez anos as taxas de reprovação nas redes públicas sergipanas tiveram importante e consistente redução. Graças a esse processo, tivemos uma redução na geração de matrículas excedentes para abrigar todos os estudantes na idade de escolarização e possivelmente tivemos uma redução no número de estudantes que abandonam a escola. Um aspecto positivo é o crescimento da matrícula no Ensino Médio, conforme podemos ver abaixo.

Entre os anos de 2013 e 2023, a matrícula nas redes públicas sergipanas nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental foi reduzida de 158.175 para 118.773, ou seja, numa proporção de 25%. Nos Anos Finais do Ensino Fundamental, no mesmo período, a redução na matrícula foi de 131.926 para 114.122, ou seja, uma redução de 13,5%.

Ao não levar em conta os efeitos da transição demográfica sobre a população na idade de escolarização obrigatórias e da redução nas taxas de reprovação na geração de matrícula inflada, alguns setores alardeiam exclusão da escolarização e apresentam esses números de redução da matrícula nas redes públicas. Evidentemente sempre podem encontrar exemplos de crianças e jovens fora da escola, parte deles desalentados pelas reprovações e pouco acolhimento nas escolas que frequentaram. Esses merecem atenção especial para retornar, permanecer e ter sucesso na aprendizagem, mas não eliminam o fato mais amplo que estamos passando por um processo de redução da matrícula inflada pelas reprovações e da matrícula das crianças com fluxo escolar regular, decorrente da diminuição da população nesta faixa etária.

A redução da matrícula tem sido acompanhada pela redução no número de turmas ofertadas pelas redes públicas, conforme o quadro a seguir.

Entre 2013 e 2023 o número total de turmas dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental das redes públicas decresceu de 6.252 para 5.349, ou seja, uma redução de 14,5%. Nos Anos Finais do Ensino Fundamental o decréscimo na matrícula, no mesmo período, foi de 5.847 para 4.947, ou seja, uma redução de 15,4%. Quanto ao Ensino Médio, acompanhando o aumento da matrícula na rede estadual, no período citado, houve aumento no número de turmas. O leitor pode constatar, no quadro 3, que a redução na matrícula nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental foi proporcionalmente maior do que a redução no número de turmas, enquanto para os Anos Finais do Ensino Fundamental e a redução no número de turmas foi proporcionalmente um pouco maior. Em ambos os casos, o número médio de alunos matriculados por turma se mantém em parâmetros considerados adequados para as etapas. Em 2023, a turma média na rede pública sergipana, nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental era de 20,7 alunos e nos Anos Finais do Ensino Fundamental era de 26,3.

Qual a relevância da diminuição da matrícula no Ensino Fundamental nas redes públicas sergipanas? Intuitivamente o cidadão não muito familiarizado com o funcionamento dos sistemas educacionais pode ficar preocupado. Diminuir matrícula não parece ser uma boa notícia. Se for adicionada a informação que ainda há crianças e jovens fora da escola, esse cidadão poderá ser convencido que um dos principais problemas da educação pública sergipana é a deficiência na oferta de vagas, no Ensino Fundamental. Nada mais longe da realidade. Tanto nossos municípios quanto a rede estadual ofertam vagas e turmas em quantidade inflada pela elevada taxa de reprovação praticada nelas. Esse excesso de turmas e de matrículas representa um duplo desperdício de recursos. Primeiramente de recursos públicos que poderiam ser utilizados de forma mais produtiva remunerado professores, monitores e outros profissionais envolvidos na intensificação da aprendizagem dos estudantes matriculados. Com aprendizagem adequada e consequente aprovação dos estudantes matriculados estancaríamos a produção de matrículas excedentes para atender os estudantes que eram reprovados. A generalização do programa de correção da distorção idade-série para todos os municípios combate os efeitos das reprovações ocorridas no passado e, muito provavelmente, o abandono escolar.

O outro desperdício é o do talento das crianças e jovens frustrados com as reprovações e percepção de pouco acolhimento em nossas escolas. Essas crianças e jovens serão os adultos com as piores condições para acesso ao mercado de trabalho, além do prejuízo para os indivíduos há uma redução do potencial econômico de toda a sociedade. [4]

A mudança ocorrida nos últimos dez anos, com redução da matrícula e das turmas ofertadas pelas redes municipais e rede estadual tem um caráter estrutural. Os custos com a contratação de professores e outros profissionais necessários ao funcionamento de um sistema escolar são os mais importantes no custo total. Um sistema que reprova parte significativa dos estudantes produz um imenso desperdício de recursos. Portanto, essa mudança, ainda que insuficiente, deve ser saudada como um fato alvissareiro, nem sempre compreendido e nem sempre adequadamente divulgado.

Parte da redução das taxas de reprovação nas redes públicas sergipanas, verificada nos últimos anos, se deve a um processo longo e contínuo de erosão da “pedagogia da repetência”. Outra parte se deve ao evento da pandemia da COVID-19 que levou a adoção, nos anos de 2020 e 2021, da aprovação automática dos estudantes matriculados e, finalmente, de um programa especialmente desenhadas para isso, o Sergipe na Idade Certa. [5] É importante reforçá-lo e obter a adesão de todos os municípios. Ainda há muito para ser feito para a redução das taxas de reprovação. Quando chegarmos ao patamar dos melhores sistemas educacionais, nos quais a reprovação é algo excepcional, a linha que representa a matrícula nas redes públicas, conforme os gráficos que apresentamos, adquirirá o aspecto retilíneo. E, principalmente, representará um sistema educacional eficiente, eficaz e efetivo.

[1] Os dados foram obtidos em Sinopses Estatísticas da Educação Básica. https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-escolar/resultados.

[2] INEP. https://www.gov.br/inep/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/indicadores-educacionais/taxas-de-rendimento-escolar.

[3] Ribeiro, Sérgio Costa. A pedagogia da repetência. https://www.scielo.br/j/ea/a/JyfPSdxSCrxKHxV6H3whNNz/. Claudio Macedo. A contraproducente reprovação escolar. Saense. https://saense.com.br/2023/09/a-contraproducente-reprovacao-escolar/. Publicado em 21 de setembro (2023).

[4] Josué Modesto dos Passos Subrinho. Produzindo a geração nem nem. Saense. https://saense.com.br/2024/06/produzindo-a-geracao-nem-nem/. Publicado em 03 de junho (2024).

[5] Josué Modesto dos Passos Subrinho.  A resiliência da reprovação escolar.  Saense. https://saense.com.br/2023/06/a-resiliencia-da-reprovacao-escolar/. Publicado em 07 de junho (2023).

Como citar este artigo: Josué Modesto dos Passos Subrinho. O potencial das mudanças estruturais na Educação Básica sergipana. Saense. https://saense.com.br/2024/10/o-potencial-das-mudancas-estruturais-na-educacao-basica-sergipana/. Publicado em 01 de outubro (2024).

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